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    Paola Jochimsen

    Paola Jochimsen é doutoranda em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Mestre em Romanistik pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Membro do Coletivo Brasil-Alemanha pela Democracia.

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    O racismo no futebol latino-americano e o encobrimento do outro

    Entre a herança colonial e uma supremacia inventada

    Meia Luighi do Palmeiras em entrevista coletiva após sofrer racismo em campo (Foto: Reprodução/Sport TV)

    O racismo no futebol latino-americano não é um fenômeno isolado. Ele reflete estruturas coloniais que continuam moldando as sociedades da região e persistem na forma de hierarquias raciais, exclusão social e a tentativa constante de apagamento das identidades negras e indígenas. O filósofo Enrique Dussel, ao desenvolver o conceito de “encobrimento do Outro”, descreve como a colonização impôs uma narrativa em que apenas o olhar europeu tem validade, apagando e desumanizando aqueles que não se encaixam nesse modelo. Esse encobrimento não se limitou ao passado, mas continua a operar dentro das instituições, da cultura e, particularmente, do esporte. No futebol, essa lógica se manifesta na forma de ataques racistas sistemáticos, tanto dentro como fora de campo, e na conivência de federações, clubes e torcedores que perpetuam esse sistema de exclusão.

    A ideia de Dussel é essencial para compreender a maneira como certos países da América Latina, especialmente Argentina, Uruguai, Chile, Peru e Equador, constroem sua identidade nacional a partir de uma lógica de branquitude e europeização. Durante os séculos XIX e XX, esses países implementaram políticas de branqueamento que incentivaram a imigração europeia em larga escala, promovendo a ideia de que seriam “mais civilizados” e, portanto, superiores a outras nações do continente. O Brasil, por outro lado, sempre foi visto como um país de mestiçagem, com uma grande presença de afrodescendentes e indígenas, o que o tornou um alvo constante de racismo e xenofobia no futebol e fora dele.

    Esse sentimento de supremacia racial dos países que passaram por um processo mais intenso de branqueamento se reflete nos estádios, onde o futebol se torna um espaço privilegiado para a reprodução de discursos racistas. Jogadores brasileiros negros são frequentemente alvos de insultos racistas quando enfrentam equipes argentinas, uruguaias, chilenas e até mesmo peruanas e equatorianas. Os casos de Vinícius Júnior, atacado na Espanha, e de Luighi Hanri, vítima de racismo em um jogo da Libertadores Sub-20 contra o Boca Juniors, não são isolados, mas fazem parte de um padrão que se repete há décadas.

    O caso do Equador e do Peru chama ainda mais a atenção pelo fato de serem países com uma grande população negra e indígena. No Equador, por exemplo, os afro-equatorianos representam uma parcela significativa da sociedade e tiveram enorme contribuição no futebol do país, como no caso do lendário jogador Alberto Spencer, maior artilheiro da história da Libertadores. Ainda assim, o racismo segue presente nos estádios, onde jogadores negros são frequentemente alvo de insultos por torcedores equatorianos e peruanos. O Peru, que tem uma história colonial profundamente ligada à exploração dos povos indígenas e africanos, também carrega essa contradição: um país de grande diversidade racial, mas que, nos estádios, frequentemente ataca jogadores negros, inclusive brasileiros.

    O racismo no futebol não é apenas um problema externo ao Brasil. Ele está enraizado também dentro do país, onde a lógica colonial continua a operar. O caso do goleiro Aranha, que em 2014 foi alvo de insultos racistas por parte da torcida do Grêmio, é um exemplo claro de como o Sul do Brasil — região que passou por um processo de imigração europeia intensa e frequentemente se coloca como “diferente” do restante do país — também reproduz essa estrutura de exclusão racial. A mesma lógica que faz torcedores argentinos imitarem macacos contra jogadores negros brasileiros se reflete no racismo presente dentro dos próprios estádios brasileiros.

    O racismo no futebol, entretanto, não afeta apenas os jogadores profissionais. Ele se espalha por todas as camadas da sociedade e impacta até mesmo suas famílias. Um dos exemplos mais chocantes aconteceu recentemente com o filho do jogador Zé Welison, do Fortaleza, que sofreu racismo na escola. A criança foi chamada de “macaco” por colegas, demonstrando como a violência racial normalizada nos estádios reverbera na sociedade como um todo. Quando torcedores imitam macacos nas arquibancadas sem receber punições adequadas, isso transmite uma mensagem de que esse tipo de comportamento é aceitável, reforçando o racismo em espaços como a educação, o trabalho e a vida cotidiana.

    A conivência das entidades esportivas e a impunidade

    A fala do presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, ao comparar a ausência do Brasil no futebol sul-americano a “Tarzan sem Chita”, é só mais uma entre tantas falas equivocadas e ilustra como esse discurso de subalternização do Brasil continua presente, mesmo em ambientes institucionais. Essa declaração surge em um contexto muito específico: pouco depois de Leila Pereira, presidente do Palmeiras, sugerir que os clubes brasileiros poderiam deixar a Conmebol para disputar torneios na Concacaf, diante da falta de punições eficazes contra o racismo no futebol sul-americano.

    Em vez de tratar com seriedade as críticas e as denúncias constantes de discriminação contra jogadores brasileiros, a resposta da Conmebol veio na forma de uma metáfora que remete à relação entre um homem branco e um animal subordinado. Ao reduzir a importância brasileira no futebol a essa imagem, Domínguez reforça o mesmo tipo de mentalidade colonial que sustenta a ideia de que certos grupos devem ocupar posições de poder, enquanto outros, apesar de serem essenciais para o espetáculo, permanecem em um lugar de inferioridade.

    O racismo no futebol persiste porque há conivência das entidades esportivas, que adotam punições superficiais, como multas simbólicas ou sanções brandas a clubes e torcedores racistas. Essa impunidade fortalece a continuidade da violência racial, tornando os estádios espaços onde a hierarquia colonial continua a ser reafirmada. Seguindo a lógica de Dussel, podemos compreender que o racismo no futebol não é um fenômeno isolado, mas um reflexo da estrutura colonial que ainda encobre o Outro. O que ocorre nos estádios não é apenas uma hostilidade pontual contra jogadores negros, mas a manifestação de um sistema que, historicamente, negou a humanidade dos povos racializados. Assim como no processo colonial, a solução não está apenas em denunciar os atos racistas individuais, mas em desmantelar as estruturas que continuam permitindo essa hierarquização racial no futebol.

    Descolonizar o futebol é urgente

    Para combater essa lógica, é necessário um processo de descolonização do futebol, que inclua punições severas para atos racistas, reconhecimento do racismo estrutural no esporte e uma mudança na forma como as instituições lidam com esses episódios. A luta contra o racismo no futebol não pode ser reduzida a campanhas publicitárias ou gestos simbólicos. É preciso transformar profundamente as relações de poder dentro do esporte, garantindo que o futebol seja, de fato, um espaço de inclusão e igualdade.

    A contradição de países como Equador e Peru, que possuem uma grande população afrodescendente e indígena, mas ainda assim reproduzem o racismo contra brasileiros e outros jogadores negros, reforça que o problema não está apenas na composição racial de uma nação, mas na ideologia racial colonial que segue operando. Mesmo em países com forte presença negra e indígena, os modelos de poder e dominação herdados do colonialismo ensinam que a ascensão de determinados grupos deve ser combatida, ridicularizada ou marginalizada. Isso mostra que a colonialidade do poder segue sendo uma estrutura vigente, mesmo nos espaços onde a diversidade deveria ser um fator de orgulho e não de exclusão. Enquanto as federações, clubes e governos não encararem essa questão como um problema estrutural e não apenas como incidentes isolados, o futebol seguirá sendo um dos espaços mais evidentes da continuidade do racismo na América Latina.

    E se o futebol pode revelar a permanência da colonialidade e do racismo estrutural, a escrita sobre futebol também expõe seus próprios espaços de exclusão. Não é por acaso que a voz de uma mulher, ao se aventurar nesse campo, seja constantemente colocada em questão, como se precisasse provar, a cada palavra, que pertence a esse espaço. O conhecimento, quando vem de uma mulher, é frequentemente silenciado, deslegitimado, submetido a um escrutínio que não se aplica a outros. Este nem é meu tema principal de trabalho, mas como tantas vezes fui encoberta, interrompida e reduzida à condição de espectadora da minha própria fala, fiz essa reflexão. Meu encobrimento é outro – mas isso já é outro debate.

     

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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