O ser humano, a religião, Deus e a figura de Jesus
"Deus jamais rechaçaria ninguém que busca fazer o bem pelo mero fato de não fazê-lo em seu nome"
Desde que se estuda a evolução histórica da humanidade, o sentimento religioso esteve constantemente presente em boa parte de nossa espécie. O certo é que os que, como eu, não concebem o mundo e a vida como criações de uma divindade suprema, a quem denominaríamos Deus, sempre representamos uma minoria.
Agora, com a aproximação do período natalino, queria aproveitar a oportunidade para fazer uma reflexão sobre o significado da religiosidade entre nós e a maneira como deveriam encará-la tanto os religiosos como aqueles que não são.
Tendo a crer que, independentemente de acreditar ou não na existência de um criador e regente da nossa existência, o comportamento e a maneira de levar a vida não deveria sofrer grandes variações em função dessa crença, ou não-crença. Na verdade, o que me parece de muito maior relevância é ter clareza de quais são os objetivos almejados tanto por uns como pelos outros.
Aceitando a priori a hipótese de que Deus de fato existe e é o criador de tudo e de todos, deveríamos, então, concluir que deve haver razões muito fortes para que ele dotasse os seres humanos com a capacidade de raciocinar e refletir sobre a realidade que nos circunda. Portanto, diferentemente do que ocorre com o restante dos animais, nós podemos analisar as coisas de modo crítico, avaliar, moral e eticamente, nosso comportamento para determinar se estamos ou não agindo de acordo com os preceitos com que Deus desejaria que atuássemos. Logicamente, não haveria nenhuma justificativa aceitável para que este raciocínio crítico não fosse aplicado mesmo com relação ao próprio Deus. Por que o ser supremo deveria temer a capacidade de reflexão com a qual ele teria dotado os seres humanos?
Por isso, a primeira e mais importante questão a considerar tem a ver com o que entendemos que sejam os desígnios de Deus, para que, em vista disto, sejamos convencidos a aceitá-los, praticá-los e defendê-los em seu nome. Dito isto, não tenho nenhum receio em afirmar que Deus precisa, obrigatoriamente, estar associado ao bem e à bondade, nunca à maldade. Pois, nenhum ser, por mais criador e poderoso que fosse, mereceria ser seguido e obedecido sem contestação se estivesse operando em função da maldade. Eu não quero, e ninguém deveria querer, adorar, respeitar e obedecer a um ser que nos orientasse para a prática de atos que entendemos como malignos. Deus deveria sempre ser aceito pela justeza de suas orientações, nunca por serem elas rotuladas com seu nome. Estar disposto a seguir a um ser supremo em tais condições equivaleria a estar disposto a servir ao próprio diabo.
Porém, como nós fomos criados com a capacidade de raciocinar e, a partir de nosso raciocínio, concluir se estamos sendo dirigidos por um caminho que nos conduz ao bem ou ao mal, todos estamos plenamente capacitados para avaliar se nos corresponde aceitar ou rejeitar alguma determinação que nos seja dada em nome de Deus.
Suponhamos que nos seja dito que o ser supremo tem um povo escolhido, um povo ao qual ele dá preferência e prioridade. Em tal caso, bastaria pôr a funcionar nossa capacidade de refletir para rejeitarmos de imediato essa proposição. Admitamos, por hipótese, que o tal povo escolhido seja algum que habitasse uma região do Oriente Médio, ali pelas redondezas onde hoje temos a Palestina, Israel, etc.
Assim, podemos nos perguntar: Isto implicaria que uma criança nascida em, por exemplo, algum ponto da China já chegaria ao mundo excluída da legião dos privilegiados? E, por outro lado, outra cujos pais são integrantes daquela comunidade viria naturalmente inserida no grupo seleto? É possível aceitar tamanha aberração em que a mera casualidade do nascimento atribua um privilégio a uma criança e não a outra? Alguém é capaz de meditar sobre isto e aceitar que se trata realmente de uma disposição proveniente de Deus? Concordar com isso equivaleria a admitir que Deus pode ser um racista, um discriminador, em outras palavras, um ser imensamente injusto, imoral e até mesmo indecente. Se Deus fosse mesmo assim, eu desejaria estar bem distante dele.
Imaginemos também que aquele a quem veneramos como nosso Criador venha a nós e nos exija uma prova cabal de lealdade por meio de nossa concordância em sacrificar nosso próprio filho para dar esta demonstração. Seria admissível que, a despeito de nossa capacidade de raciocinar, aceitemos que uma exigência tão egoísta e criminosa possa de fato ter vindo de um Deus digno de assim ser considerado? Em realidade, no caso de que se tratasse tão somente de teste para aferir nossa verdadeira fidelidade a seus princípios, a única reação que Deus esperaria receber nesta situação seria uma rotunda e categórica recusa a acatar a monstruosa solicitação. Esta, sim, seria uma demonstração inequívoca de haver assimilado a essência do espírito de bondade característico de um Deus digno de consideração.
Mas, avançando em nossas conjecturas, vamos supor que recebemos uma ordem em nome do Criador para invadir uma certa localidade e exterminar da mesma a todos os seus habitantes, sem poupar nem mesmo as crianças, pois ninguém ali teria o direito de continuar vivendo. Diante de tal situação, como deveríamos reagir? Convenhamos, acatar uma diretiva monstruosa e ignominiosa de tal magnitude seria inadmissível para qualquer pessoa dotada de um mínimo de coerência e capacidade de raciocinar dentro de parâmetros de justiça e bondade. Caso a divindade maior fosse assim tão diabólica, ela jamais seria merecedora de obediência e nem de respeito de parte de ninguém que tivesse algum sentimento de ética e justiça. O justo é que fosse combatida e repelida com todo nosso vigor, pois um ser com tais características não passaria de um vil expoente do mal e da perversidade, por mais que se apresentasse como nosso grandioso Senhor.
Assim, não há sérias incompatibilidades entre os que creem na existência de Deus e desejam seguir suas diretrizes e aqueles que, embora não compartilhem dessa crença, também aspiram a tornar o mundo mais justo e solidário. É que a única ideia admissível de Deus é a de um ser inteiramente voltado para a bondade, para a prática do bem e da solidariedade. Portanto, qualquer pessoa que se empenhasse em alcançar uma meta compatível com esses desígnios estaria agindo em conformidade com as aspirações que seriam provenientes de um Deus verdadeiro, ou seja, um ser bom e justo. É que o que de fato importa é o propósito que temos na vida. Se para alcançá-lo recorremos ou não a alguma crença religiosa é de muito pouca, ou nula, relevância.
É neste ponto que entra a figura de Jesus, pois, para ele, buscar a graça de Deus nunca significou uma disposição cega de acatar sem questionamento toda e qualquer medida, por mais cruel e injusta que fosse, tão somente por estar a mesma escrita em algum dos ditos livros sagrados. Sabendo como sabia que os termos constantes dos livros foram ali inseridos por seres humanos, os mesmos poderiam estar sujeitos às mesmas vicissitudes e interesses que caracterizam e influem em suas vidas. Por isso, Jesus representou e representa o mais elucidativo exemplo de que, para ser verdadeiramente fiel a Deus, não podemos abdicar de recorrer à razão. De acordo com a compreensão emanada de Jesus, religiosos e não religiosos podem coexistir sem nenhum atrito entre si, desde que os objetivos de ambos grupos estejam nitidamente delineados em função da construção de um mundo onde impere a justiça, a bondade e a solidariedade entre todos.
Então, como Jesus procurou deixar evidente, a fé e a razão podem andar juntas, pois é pelo uso da razão que o ser humano consegue reforçar sua convicção de que sua crença está devotada a uma causa conscientemente digna de sua fé. Por sua vez, com base neste princípio, Deus deve estar muito mais preocupado com os objetivos e as consequências das ações de suas criaturas do que em garantir que tudo seja sempre feito em seu nome.
Nossa intenção ao escrever este texto não era o de motivar aos religiosos a deixarem de sê-lo, nem, tampouco, induzir aos não-crentes a aderirem a alguma religião. A conclusão sintetizada que gostaríamos que fosse extraída após a leitura é a de que, para efeitos práticos de vida, não há nenhuma diferença substancial entre ter ou não ter uma crença religiosa. O que de fato é determinante são os propósitos que norteiam as condutas tanto dos que acreditam na existência e no poder de Deus, quanto dos que não compartilham destes supostos.
É que, para qualquer ser humano imbuído de sinceros desejos de que venham a prevalecer entre nós os valores da justiça, da fraternidade e da solidariedade, o que menos importará será a motivação da qual tais sentimentos provêm. Em outras palavras, Deus jamais rechaçaria ninguém que busca fazer o bem pelo mero fato de não fazê-lo em seu nome, assim como nenhum materialista que almeja a construção de um mundo igualmente justo se recusaria a aceitar a contribuição neste sentido daqueles que agem com base na crença de estarem servindo a Deus.
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