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Cristiano Addario de Abreu

Doutor do Programa de Pós-graduação de História Econômica/USP (PPGHE/USP).

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O sonho de Haddad ser o JK de Lula precisa retomar um plano: o tripé de JK

O novo plano precisa enfrentar o tripé da direita: agro, financeirização, serviços uberizados

Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante reunião no Palácio do Planalto, em Brasília 17/09/2024 REUTERS/Ueslei Marcelino (Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino)

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Muito se tem comentado sobre o futuro da esquerda no Brasil após os governos Lula, e é evidente o investimento político feito pelo presidente Lula no histórico quadro petista que é o ministro Haddad. Como sempre ocorre nas corridas de apostas sobre o futuro, a melhor forma de se encontrar as tendências vindouras não se encontram nos astros, mas no estudo da história.

Nesse possível esquema de substituição de lideranças, Lula representaria um Vargas do séc. XXI, e Haddad o substituiria como um novo JK, e parece que o próprio Haddad já comentou tal analogia. Mas para a história se reciclar na espiral de Vico é preciso mais do que analogias simbólicas: é preciso materialidade histórica, planos e metas. Lula já carrega a áurea de um “pai dos pobres”, e já se consolidou na história do Brasil como um recuperador do trabalhismo varguista: gerando empregos, aumento real do salário-mínimo acima da inflação, renda mínima, aumento de vagas nas universidades, e todo um colchão de proteção social. Mas a situação do governo Lula III acumula impasses, e a falta (ou melhor: o impedimento...) de um plano de crescimento mais arrojado, que ameaça empacar o governo. O último plano de crescimento forte tentado no Brasil foi com o Pré-sal e o conteúdo nacional, mas a reação do imperialismo, aliado às forças reacionárias internas, gerou o pesadelo do golpe de 2016: as forças anti indústria da mídia corporativa, da “Faria Lima”, estão determinadas a seguir no “projeto República Velha” para o Brasil no séc. XXI ser um “fazendão” neocolonial.

Tripé da direita: agro, financeirização, serviços/uberizados

Como Haddad pode surgir no horizonte histórico como um JK do Brasil do séc. XXI? Ele precisa representar uma agenda que confronte a agenda da direita. E para ser um “novo JK”, precisará retomar, mesmo que minimamente, algum desenvolvimentismo. Está se fechando sobre o governo Lula III, e o futuro da esquerda, o golpismo de sempre, que tem como horizonte produtivo um Brasil fazendão, com a riqueza financeirizada, e os empregos concentrados no setor de serviços. É o tripé da direita, tripé do golpismo: financeirização, agro, e serviços/uberizados. Sob a sombra da privatização geral da economia.

Não há desenvolvimento, com empregos de qualidade, progresso econômico, sob o chumbo colonial deste tripé. E a irritação popular com isso é candente e cristalina, apesar de não direcionada para as causas (privatizações), mas apenas para as consequências (culpando a “política”, no genérico). Num recente debate sobre a situação atual da esquerda no ICL, houve muitas análises boas, porém de forma gritante houve a falta da defesa de uma palavra vital para a esquerda: ESTATAIS. E é isso o que a esquerda precisa voltar a falar: pela defesa de empresas públicas nacionais, de empregos valorizados e pela reindustrialização do Brasil. Neste debate ficou muito evidente a necessidade da esquerda disputar ideias politicamente, e defender melhoras econômicas concretas: pois a pauta das estatais pode realizar isso de forma unificada, além de roubar o discurso nacionalista fake da direita: defendendo um capital nacional produtivo ESTATAL.

Contra o tripé neocolonial da direita, a retomada do Tripé de JK

Pois para se contrapor a este tripé da direita é preciso a esquerda explicitá-lo (pois eles não o declaram) e propor e retomar o tripé de JK, dos “50 anos em 5”, feito por: empresas estatais, multinacionais, e empresas da burguesia interna.

O modelo do tripé de JK era basicamente organizado dessa forma: empresas estatais nos setores de energia e indústria de base, multinacionais em bens duráveis, e a burguesia interna em bens industriais não duráveis e complementares, e demais setores secundários. Defender tal tripé não é nada revolucionário, dirão muitos na esquerda, mas em verdade, no atual contexto, a volta da defesa das ESTATAIS é algo vital para qualquer possibilidade de crescimento e independência do Brasil (como aliás, sempre foi...), e neste contexto de extrema direitização popular, defender o capital industrial produtivo representado pelas estatais já é quase “revolucionário”, além de ser uma chave de conexão ideia/matéria, política/economia, para a esquerda falar de política com a população mantendo o enfoque no econômico, onde ganha da direita nos ouvidos populares, se contrapondo a direita de forma competitiva.

Nesta eleição para prefeito o colapso de abastecimento energético em São Paulo, causado por uma única tempestade, não foi explorado pela campanha do Boulos como poderia ter sido: com a defesa de empresas estatais em setores estratégicos de energia, água, transporte... Um caso ainda mais gritante é o de Porto Alegre: o neoliberalismo dogmático (e sempre corrupto...) destruiu e sucateou as estruturas de segurança contra enchentes, construídas no governo Vargas (claro!), e o colapso foi abissal, escancarando a fraude das privatizações e do neoliberalismo como caminho para qualquer melhora da gestão de bens públicos, coletivos. Mas, curiosamente, a esquerda não tem conseguido explorar a regressão causada pelas privatizações.

No caso de São Paulo a empresa italiana Enel foi criada como uma estatal na Itália, abriu capital depois, mas o governo italiano segue com participação acionária(https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/10/15/enel-e-uma-estatal-entenda-a-participacao-do-governo-italiano-na-empresa.ghtml), escancarando a centralidade estatal na feitura e gestão de tais empresas com controles de larga escala, como são as de água e energia (que são estruturalmente monopólios). E o desmonte feito pela Enel em São Paulo, diminuindo seu quadro de funcionários locais de 27 mil, para 15 mil (https://pt.org.br/apagao-em-sp-privatizacao-da-energia-deixa-habitantes-no-escuro/ ) só entre 2020 e 2023 é um indicador gritante da piora dos serviços prestados por uma empresa com finalidade apenas no lucro e não no bem comum. Piorando os serviços prestados ao povo e os empregos gerados localmente, e ainda aumentando as tarifas aos consumidores. Isso é muito fácil de explicar ao povo!!! A população entende muito bem!!!

É preciso falar isso com o povo: defender empresas ESTATAIS. Para melhorar os serviços prestados e a segurança nos abastecimentos, além de aumentar e melhorar os empregos locais, e não ceder empresas estratégicas para exploração estrangeira em detrimento da segurança nacional, da segurança energética, comunicacional e de abastecimento de serviços vitais básicos do país.

A defesa das ESTATAIS num mundo que caminha para guerras sistêmicas: desnudar o “nacionalismo” fake da extrema direita colonial

O monopólio midiático, totalmente ligado com a agenda financeirizante da “Faria Lima” (no caso brasileiro), segue desde os anos 1980 defendendo as privatizações (qualquer uma) de forma desonesta, dogmática, colonial e obsessiva: a concentração de capitais a qualquer custo. De fato, mesmo o povo humilde segue repedindo sim o dogma “privatiza que melhora”, com populações pobres repetindo os enunciados vindo de cima. O que é tristemente comum em qualquer sociedade: a narrativa hegemônica sai das classes hegemônicas, e escorre pelo resto do corpo social. Mas já passou da hora da esquerda ridicularizar quem repete essa lobotomia ultrapassada: como ensina Fernand Braudel “a moda é uma criação dos ricos, para não ser mais reproduzida quando alcança os pobres”. Mais audácia e ironia faz-se necessárias na esquerda! Na atual guerra cultural, capitaneada pela extrema direita que leu Gramsci, exige-se da esquerda hoje pensar em armas, seduções, e desarmamentos do outro campo, de forma mais criativa e sedutora: desarmar e destruir o discursinho das privatizações é uma obrigação histórica da esquerda.

E uma obrigação cada dia mais fácil, em se tratando dos fatos, dados e estatísticas. Ou seja, em se tratando do que é objetivo é fácil destruir a narrativa pró privatizações, sendo o desafio no caso a destruição do dogma subjetivo cristalizado em populações idiotizadas por 40 anos: é muito doído as pessoas aceitarem que foram feitas de idiotas por tantos anos...

Pois tal narrativa dogmática defendendo as privatizações tornou-se uma idolatria cega, um bezerro de ouro adorado de forma estúpida (e muito desonesta), e já passa da hora da esquerda assumir a missão histórica de destruir este dogma central do neoliberalismo: é preciso achincalhar, desnudar e destruir o bezerro dourado das privatizações, quebrando assim a espinha dorsal do neoliberalismo. É preciso quebrar tal narrativa, repetida de forma lobotômica pelos vassalos da direita desde os anos 1980, sem nuança ou elaboração alguma: a narrativa da direita é um esqueleto morto, falta forças políticas com coragem de gritar isso na cara do público: o rei está nu! Com as privatizações sendo revertidas mundo afora, por preços e serviços ruins prestados pelas empresas privadas(https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/03/07/tni-884-reestatizacoes-mundo.htm) E se é objetivamente fácil destruir a validade atual desta narrativa (“privatiza que melhora”), havendo uma onda nos países centrais de reestatização (https://www.sinjusc.org.br/o-futuro-e-publico-a-onda-mundial-de-reestatizacoes-no-seculo-21/ ), ( https://www.sintsama-rj.org.br/post/privatiza%C3%A7%C3%B5es-revertidas-em-35-pa%C3%ADses), (https://www.nexojornal.com.br/externo/2024/05/04/a-tendencia-global-de-remunicipalizacao-do-saneamento-basico) a difícil parte de reconfigurar a subjetividade do público dogmatizado por tais comandos narrativos, será facilitada com uma narrativa alternativa: estatiza setores estratégicos que melhora! Estatiza energia e setores estratégicos, recriando o tripé de JK, que melhora a economia: retomaremos assim a régua e compasso JÁ realizada no Brasil, no seu período de maior crescimento econômico de sua história, dos 1930 aos 1980: retomando o tripé de JK é que melhora!!!É preciso uma contra narrativa para desconstruir o dogma privatista, e no caso é uma narrativa baseada na história econômica do Brasil, sendo o tripe de JK uma estrutura mesclada de produção, equilibrando interesses internos, externos, públicos e privados, com o Estado como mediador participante. Um modelo, inclusive, apontado até por Elias Jabbour, como inspirador do modelo de avassalador sucesso do crescimento chinês desde 1978, com a China com um forte setor público, fortes estatais, mesclado com multinacionais (https://aterraeredonda.com.br/o-grande-vencedor-do-neoliberalismo/), sendo cada vez comentado as características mistas desse modelo, que é o maior sucesso econômico do mundo. Características mistas: com forte presença estatal. Curiosamente o Brasil do tripé de JK inspirou a China, mas é esquecido no Brasil.

Haddad, para vestir a capa de JK e vencer a extrema direita precisará de um plano de metas que inspire sonhos e entregue resultados concretos. Essa mescla de sonho político, com concretude econômica, que tanto escutei ser cobrada no debate do ICL sobre as esquerdas, me parece ser possível de ser realizada: com a retomada do tripé de JK como bandeira! Toda a direita se recusa a admitir, mas a fase das privatizações foi superada, e tal fase foi uma catástrofe para o Brasil. É preciso coragem para dizer isso! E usar um presidente democrata, homenageado até pela direita paulista com uma avenida com seu nome cruzando a Faria Lima, como sendo o símbolo para a retomada de uma gestão econômica com ESTATAIS, é um eficaz caminho político e narrativo.

Num mundo no qual as guerras se tornam estruturais, a defesa de empresas estatais é uma questão de segurança nacional, produtiva (incluindo além de energia, comunicações), e a defesa das estatais ainda ajuda a destruir o nacionalismo fake de camisa da CBF dos candidatos da direita. Para o Brasil seguir independente e crescer no séc. XXI (https://forbes.com.br/forbes-money/2024/06/quinta-economia-do-mundo-nossa-meta-para-2050/) é preciso retomar na nossa história os passos dados quando mais crescemos (Vargas/JK), e tanto para vencer a extrema direita, quanto para seguir alcançando resultados, a bandeira do tripé de JK já deve ser aberta o quanto antes por Haddad, para a esquerda e o Brasil seguir tendo futuro. O amanhã precisa começar hoje, e se escora fortemente em nosso passado.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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