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    Pablo Nacer

    Jornalista, autor do livro Meu Avô A´uwê - sobre três viagens a uma aldeia indígena xavante - e ex-Brasil 247, atualmente vive na Austrália

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    O Taiti não é ali

    Ao tentar explicar ao filho de 5 anos o motivo do surfe das Olimpíadas ser no Taiti e não na França, uma esquivada para não falar de 46 testes nucleares

    Morador surfa perto do local de surfe das Olimpíadas de Paris 2024 em Teahupo'o, Taiti, Polinésia Francesa (Foto: Reuters/Carlos Barria)

    (Publicado originalmente no Blog do Pablito)

    Em casa tem um mapa de 167 cm por 115 cm pendurado na parede que, apesar de ser de 1981 e mostrar países que não mais existem como União Soviética, Zaire e Iugoslávia, ele é muito útil para, ludicamente, ajudar o nosso filho de quase cinco anos a ter uma ideia espacial do planeta onde vive.

    Já é claro, na cabeça dele, que existem três Américas, e não somente uma como as pessoas acreditam por aqui, que a África é um continente imenso com dezenas de nações e não um país de dimensões continentais, e que a Austrália não é chamada de down under por acaso.

    Em tempos olímpicos, não só reforçamos onde fica a França, como também é uma ótima oportunidade para corrermos ao mapa a cada novo país que o Martín ouve na TV.

    Tudo caminhava bem no módulo Países do Mundo – Paris 2024 – Básico, quando uma transmissão ao vivo na hora do almoço criou uma grande confusão e desencadeou no módulo Colônias do Mundo – França século XVIII – Intermediário.

    Por conta de ter avó e família no Brasil, nosso filho sabe da existência do tal do fuso-horário, pois quando, na Austrália, ele fala com ela pela manhã, ele sabe que está anoitecendo no Brasil. E vice-versa. Uma laranja e uma lanterna foram suficientes para ele compreender este nada complexo conceito de que a Terra é redonda.

    Pois bem, no final da tarde e noite do último sábado fizemos uma maratona olímpica (sem trocadilho) em casa, usando todos os gadgets possíveis para assistir simultaneamente ao máximo de esportes possíveis, e explicamos que iríamos dormir mas as competições continuariam durante a madrugada. Já no dia seguinte, ao acordarmos, seria noite na França e passaríamos o dia sem disputas ao vivo, pois os atletas estariam dormindo em suas horrorosas camas de papelão.

    Mas eis que no domingo, hora do almoço, o Martín vê a surfista brasileira Tatiana Weston-Webb na água. É ao vivo, pai? Sim! Está acontecendo nesse exato momento? Sim, filho. Mas ela não deveria estar dormindo? 

    Martín… Mapa!

    Ele está tão acostumado a essa frase que, como dois atletas do nado sincronizado, levantamos ao mesmo tempo do sofá – em câmera lenta – e caminhamos até o mapa com os braços e as pernas movimentando-se simultaneamente.

    Filho, aqui fica o Taiti, apontando para a parte mais sudoeste da carta geográfica, a 16 mil quilômetros de Paris.

    Mas aí não é a França, pai. Ela não fica lá em cima? Aí é mais perto da Austrália do que da França. Você tem razão, filho, acontece que o surfe não acontece em Paris, nem na França, mas em um outro lugar chamado Teahupo’o, no Taiti. Mas, pai, você não falou que tudo seria na França?

    Nesse momento, a caneta que eu usava para apontar no mapa se transformou em um charuto aceso.

    Obviamente não citei os 46 testes nucleares conduzidos pela França entre 1966 e 1974 nos atóis de Moruroa e Fangataufa, na Polinésia Francesa, onde está localizada Teahupo’o. Nem mesmo mencionei a desastrosa Operação Centaure, o teste nuclear número 41, de julho de 1974, cuja nuvem atômica atingiu uma altitude menor do que o esperado, pegou o caminho errado e foi parar nas ilhas do Tahiti e Sotavento contaminando cerca de 110 mil pessoas.

    Eu poderia ter ido um pouco mais a oeste e apontado o charuto para um popular destino de férias dos australianos, a Nova Caledônia, cuja população nativa, o Kanak, está sob estado de emergência e toque de recolher impostos por Emmanuel Macron, desde que protestos estouraram em maio deste ano quando o governo francês estendeu o direito de voto nas eleições provinciais a milhares de colonos franceses nas ilhas.

    Por conta da pouca idade, não falei nada disso. Apenas expliquei que estes são territórios governados pela França, que a exemplo do que aconteceu com os aborígenes na Austrália, também foram invadidos pelos europeus e se tornaram colônias. E, não por acaso, quem esteve na Polinésia entre 1769 a 1777 foi o mesmo capitão Cook que em 1770 mapeou a costa leste da Austrália, onde vivemos, e a reivindicou para o Reino Unido.

    E sabe o que é pior, filho? A população do Taiti não queria que os Jogos Olímpicos fossem realizados lá. Eles vêm tolerando nas últimas décadas uma etapa anual do campeonato mundial de surfe profissional da WSL, mas desde que o impacto ambiental seja mínimo.

    Já o Comitê Olímpico Internacional foi justamente na direção oposta e, como bem vimos nos eventos sediados no Brasil, chegaram com a arrogância colonizadora de sempre, exigiram que a velha torre de madeira para os juizes fosse substituída por uma novinha de alumínio – além de outras aberrações – e, como consequência, danificaram os recifes de corais e desrespeitaram as tradições religiosas dos locais. Nem mesmo um manifesto assinado por 250 mil pessoas, incluindo nomes como Kelly Slater, adiantou para reverter a imposição do COI.

    Por isso, filho, continuei. Vamos torcer para os surfistas brasileiros, se não der para eles ganharem, vamos com os australianos mas, também, com a surfista Vahiné Fierro, que nasceu no Taiti e, apesar de defender as cores da França, poderá usar o espaço para dar voz a seu povo.

    Papai, posso enviar uma bola de luz pra ela ganhar? Deve, filho, falei no momento em que o charuto virou um incenso – também aceso – e passamos para o módulo Crenças do Mundo – Esoterismo – Avançado.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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