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    Roberto Numeriano

    Jornalista e professor com doutorado e pós-doutorado em estudos sobre a atividade de Inteligência de Estado

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    O veto do Brasil à Venezuela (e ao Brics+): irracionalidade e atavismo políticos

    Considero que a decisão do presidente Luiz Inácio só pode ser analisada nos termos daquela conjunção de fatores atávicos personificados na elite brasileira

    Presidentes Lula e Maduro durante encontro da Unasul em Brasília 29/05/2023 (Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino)

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    O Brasil ainda não é uma nação, se aplicarmos o devido rigor conceitual, nos  termos da Teoria Geral do Estado, ao significado do vocábulo. É apenas um país, noção semanticamente mais aberta, fluída e, por isso mesmo, melhor aplicável à condição  brasileira. Historicamente, considero ter existido no país um projeto de nação durante o  Império, sob D. Pedro II, e durante a era Vargas, mediante as quais houve uma concepção,  esboçaram-se projetos e, até certos limites, foram realizadas agendas reformistas /  revolucionárias profundas. 

    A referida asserção é sustentável já a partir do caráter político-ideológico  dominante da sua elite, profundamente reacionário à identidade social e antropológica da  formação brasileira. Se houver algum atavismo (quase, por assim dizer, uma marca  filogenética), para explicar o comportamento dessa elite, creio ser possível identificá-lo  em a) sua submissão a poderes políticos externos objetivamente adversários dos  interesses geopolíticos e geoeconômicos nacionais; b) seu racismo em face da massiva  miscigenação entre os três grandes vetores étnico-raciais; c) sua síndrome do que  denomino de “vergonha das origens”, relativamente à colonização portuguesa  (supostamente negativa se comparada ao que seria à exploração (expropriação) “ideal”,  pois calvinista e anglo-saxã); d) seu arraigado preconceito à cultura e religiosidade  populares, sobretudo se expressão de fontes negras, índias e brancas, menos ou mais  sincréticas no imaginário e prática sociais; e e) sua repulsa / nojo às classes assalariadas,  “horda” de preguiçosos, estúpidos e bastardos sociais que representariam a razão do  “atraso” brasileiro ancestral. 

    Peço desculpas pelo intróito talvez longo, mas, como cientista que tenta explicar fenômenos focando na racionalidade do ator político, considero que a decisão do  presidente Luiz Inácio em vetar a integração da Venezuela e da Nicarágua ao Brics+,  durante a cúpula de Kazan, só pode ser analisada nos termos daquela conjunção de fatores atávicos personificados na elite brasileira. De fato, algumas delas (senão todas), explicariam, no caso, a profunda irracionalidade dos vetos, os quais são, a rigor, um veto  ao Brics+ como bloco e, subliminarmente, um veto à Rússia, à China e ao Irã. 

    Se não é possível, imediatamente, discernir os efeitos mais importantes da decisão  (a referência àquelas três potências energéticas / petrolíferas e bélicas não é casual),  podemos especular suas causas, pois também por meio da Ciência Política (assim como  pela Psicologia) é possível deduzir as “razões da loucura” dos dirigentes de Estado.  Sempre como suposição, vou considerar quatro causas incidentes nos vetos, a saber: a)  um "conselho” / acordo advindos, provavelmente, da Casa Branca**; b) uma  “demonstração de força” na escalada das tensões entre os dois Estados; c) um ato de  vaidade política onipotente e arrogante; e d) um sinal ao eleitorado reacionário e à elite  integrante da frente de governança que o Executivo se dispõe a aplicar e prova, na prática,  sua adesão às agendas não apenas econômicas, mas também político-ideológicas da  direita / extrema-direita. 

    Essas causas não se excluem, entre si. E arriscaria considerar, aqui, que elas  convergiram in totum para um ponto de virada, fatal e irreversível, na história da  “esquerda” petista e na história política de Luiz Inácio; virada a qual desnudou realeza e  reinado nos limites de um perjúrio ideológico que não é difícil vislumbrar na ascensão do  PT ao poder. Não é defensável, sob qualquer hipótese, o veto à Venezuela, à Nicarágua e  ao Brics+. Nas linhas a seguir, ao resenhar as referidas causas, vou tentar demonstrar a  dimensão radicalmente irracional da decisão, e como, per se, ela se conecta ao  comportamento histórico da elite do país. Elite contra a qual, diga-se de passagem, o  antigo operário Lula construiu, com pregações até radicais, sua carreira de profissional  da política.

    Numa perspectiva puramente hipotética, não é exagero afirmar que o duplo veto  brasileiro se articula com os interesses estratégicos dos Estados Unidos na região:  bloqueia a ascensão política e econômica da Venezuela ao Brics+ e seu fortalecimento na  própria América do Sul e Central; golpeia o Presidente Nicolás Maduro, enfraquecendo 

    o perante a oposição de direita / extrema-direita, no país e no exterior; e demonstraria  que, abaixo da Linha do Equador e dos Estados Unidos, a única subpotência regional é (e  só poderá ser) o Brasil. Ora, sob qualquer desses aspectos o veto seria irracional, dado  que enfraquece a confiabilidade do Brasil no interior do bloco, desmoraliza o PT como  partido progressista e o presidente Luiz Inácio como líder solidário e de “esquerda” no  contexto do Sul global e das agendas anti-imperialistas.

    Se na guerra é sempre aconselhável deixar ao inimigo uma via de escape para suas  tropas baterem em retirada, cercar e massacrar politicamente o governo venezuelano – é  disso que se trata, ao fim e ao cabo, para além de teorias à “esquerda” que tentam salvar  as aparências –, é apostar na sua capitulação absoluta, sem mediações de armistício. A  elite bolivariana nunca se rendeu ou temeu aos Estados Unidos. Por que se renderia à elite  brasileira, em geral tosca, predatória, pró-imperialista e essencialmente reacionária /  fascista? Acuado, denunciando traição à luta anti-imperialista e os ataques à soberania do  país, o governo venezuelano saiu em contra-ataque. Já há um grande derrotado nessa  escalada que o governo brasileiro / Casa Branca decidiram bancar. E não é o Presidente  Nicolás Maduro. Nem o Departamento de Estado norte-americano. 

    Outra consideração pertinente para tentar avaliar a irracionalidade do veto se  circunscreve à dimensão da persona do ator político. Maquiavel, fundamentalmente,  discorreu em suas análises sobre a dimensão da vaidade do “Príncipe”, para além das  razões de Estado, como variável poderosa a guiar (ou desviar) a decisão política. Daí ser  necessário contemplá-la, sem falsos pudores, no exame do veto amplo, geral e irrestrito  ao Brics+ e à Venezuela / Nicarágua. Na crítica do sábio florentino ao perigo da arrogância / onipotência do “Príncipe”  está implícito um conselho: se o homem de Estado cede à paixão / hybris da sua natureza  humana, ele tende a julgar / decidir como se estivesse acima do bem e do mal. Em  momentos assim (e a dedução, agora, é exclusivamente minha), seu pensamento será  sempre irracional, ainda que o resultado da decisão lhe seja benéfico. Não é necessário  qualquer exame mais profundo para perceber essa dimensão pessoal, terra a terra, como  um fator igualmente forte para submeter e humilhar politicamente a Maduro / Venezuela.  O ato enfraquece a potencial projeção de poder do Brics+ na região, manieta a Venezuela,  rebaixa a influência do Brasil como subpotência, levanta suspeitas sobre o real papel  político de Luiz Inácio no processo multipolar e fortalece os Estados Unidos em termos  geopolíticos, econômicos e ideológicos na sua cruzada para barrar o Brics+ no Atlântico  Sul. Diante disso tudo, só o fanatismo político mais radical e beócio poderá ver na decisão  do “Príncipe”, mito infalível e preclaro, um golpe de maestria política.

    No limite, a decisão só se explicaria racionalmente em cotejo com o item (d).  Tratar-se-ia, a rigor, de um sinal / prova de que o Executivo está disposto a transigir sobre  qualquer agenda (à exceção, é claro, dos sacrossantos “princípios identitaristas”, únicas  cláusulas pétreas da gestão). Em outras palavras, derrotar o movimento bolivariano e “encoleirar” o Brics+ no espaço geopolítico e geoeconômico sul e centro-americano só é  racional no âmbito estreito das alianças para dentro do governo de “frente ampla”. Para a  elite ideológica hegemônica na direção do PT e na condução do Executivo, esse seria o  jogo possível e pragmático. A agenda econômica neoliberal de Haddad / Luiz Inácio  assim o demonstra, desde sempre. 

    Nos dois anos que restam ao governo, não há outro caminho senão aprofundar o  ponto de virada, a despeito do choro e ranger de dentes dos iludidos com o programa da  chapa presidencial de 2022. Pelos sinais das urnas nas eleições de 2024, não haverá  presidência petista no dia 1º de janeiro de 2027. Mas haverá Nicolás Maduro no governo  da Venezuela, encaminhando-se ao Brics+ (se a Casa Branca não derrubá-lo via golpe de  Estado, enquanto a gestão Luiz Inácio pede a recontagem dos votos). Putin e Xi Jinping  não são amadores. Façam suas apostas. 

    * Roberto Numeriano é mestre, doutor e pós-doutor em Ciência Política, com  estudos especializados em controle e fiscalização de agências de Inteligência estatais,  guerra interestatal e geopolítica. 

    ** Sou avesso por formação científica a “teorias da conspiração”, mas não me  surpreenderia se, daqui a alguns anos, documentos desclassificados pelos Estados Unidos  demonstrarem que tal “conselho” terá relação com o golpe de Estado de 2023, claramente  derrotado no país porque, desde a Casa Branca, alguém avisou aos generais brasileiros  que não haveria apoio ao golpe (um eufemismo para dizer que a ação seria neutralizada pelo Comando Sul dos EUA, o gendarme anglo-saxão a tutelar as Forças Armadas do  Brasil no Atlântico Sul). 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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