O vídeo da reunião de 22 de abril pode ser um libelo contra Bolsonaro
As instituições democráticas, diferentemente do que se afirma, todos os dias, aqui e ali, não estão funcionando adequadamente. Prova disso é a nota divulgada pelo general Augusto Heleno
A repercussão da divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril de 2020 é reveladora do grave momento brasileiro.
Os apoiadores de Bolsonaro comemoraram a atuação do “mito” e os opositores, em sua grande maioria, consideraram que a gravação é, na verdade, uma peça publicitária para o presidente, inclusive com vistas à reeleição, em 2022. Estarrecedor.
O injustificável fato de que, num momento de catástrofe decorrente da pandemia de covid-19, não se tenha discutido qualquer plano emergencial para enfrentamento do problema, já seria suficiente para indignar todos os cidadãos, em qualquer lugar do mundo, menos no Brasil.
Mas não ficou nisso. Ao contrário, o que se ouve são críticas pesadas e ameaças de prisão aos prefeitos e governadores que estão adotando providências necessárias e a revolta do Presidente com a causa mortis registrada no atestado de óbito de um policial rodoviário.
Para além disso, o conteúdo do vídeo é gravíssimo. Em menos de duas horas, à primeira vista, diversos crimes de responsabilidade teriam sido praticados pelo presidente e por alguns ministros de Estado, capazes de conduzi-los ao impeachment, o que se evidencia pelo cotejo das disposições da Lei n.º 1.079/1950 com as falas captadas.
Comecemos pela inacreditável vulgaridade demonstrada pelo chefe de Governo e por alguns ministros, de fazer corar o mais libertino dos irreverentes.
Bolsonaro profere dezenas de palavrões e expressões chulas, inclusive para se referir a autoridades públicas.
Comportamento inaceitável em qualquer ambiente civilizado, quanto mais em uma reunião da cúpula do governo.
Mais do que isso, nos termos do art. 9.º, 7, da referida lei, configura crime de responsabilidade o presidente da República “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.
Os trechos que foram suprimidos por determinação do ministro Celso de Melo, já se sabe, correspondem a ataques do Presidente, do Ministro das Relações Exteriores e do Ministro da Economia à República Popular da China.
Acusa-se a China de pretender dominar o Brasil, de haver infiltrado espiões no país, de ser responsável pela pandemia, entre outras coisas.
Ocorre que, nos termos da lei de impeachment, é crime “cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade” (art. 5.º, 3).
Independentemente de comprovarem ou não as acusações do ex-ministro Sérgio Moro, aspecto que será definido, a tempo e a modo, pelas autoridades competentes, as falas do presidente revelam, sem nenhuma dúvida, repreensão pública a Moro (e aos ministros militares e chefe do GSI, por razões semelhantes) pelo fato de não ter recebido informações que queria da Polícia Federal, além de demonstrarem a determinação em interferir em estruturas da Administração, para proteger familiares e amigos, com ameaças de exoneração.
Segundo a Lei, é crime de responsabilidade “expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição” (art. 9.º, 4).
Também o é “usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagi-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim” (art. 9.º, 6).
O presidente assiste ao ministro da Educação qualificar de vagabundos e propor a prisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal e não adota qualquer providência.
A fala do ministro configura, em tese, crime comum e infração disciplinar grave.
A omissão do presidente, na ocasião e depois, configuraria a hipótese do art. 9.º, 3, da Lei de Impeachment:
“não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”.
Na mesma linha, o ministro do Meio Ambiente afirmou que queria aproveitar o momento de pandemia da Covid-19 para passar reformas infralegais, “simplificando normas, de Iphan, de Ministério da Agricultura, Ministério do Meio Ambiente, ministério disso, ministério daquilo”, relativas à proteção do patrimônio natural, histórico e cultural, todas de status constitucional, e não demonstrou discordância.
De todas as declarações, a mais grave, entretanto, coube ao presidente da República e merece transcrição:
“Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua.
(…)
Aí, que é a demonstração nossa, eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais.”
(…)
É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado”.
Os ditadores a que se refere o presidente são os prefeitos e governadores que decretaram isolamento social, que seria a ditadura.
E a solução apresentada é armar a população para que ela possa se insurgir contra as autoridades municipais e estaduais, ir para a rua e resistir.
O que se propõe, abertamente, é a insurgência armada da população, contra prefeitos e governadores!
A determinação presidencial configuraria, em princípio, vários crimes de responsabilidade tipificados na Lei n.º 1.079/50:
*praticar contra os poderes estaduais ou municipais ato definido como crime neste artigo (art. 6.º, 7);
* intervir em negócios peculiares aos Estados ou aos Municípios com desobediência às normas constitucionais (art. 6.º, 8);
*subverter ou tentar subverter por meios violentos a ordem política e social (art. 7.º, 6);
*praticar ou concorrer para que se perpetre qualquer dos crimes contra a segurança interna, definidos na legislação penal (art. 8.º, 4);
*permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública (art. 8.º, 7);
*expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição (art. 9.º, 4).
O fato de quase ninguém haver falado em nada disso é sintomático.
Significa que Bolsonaro conseguiu naturalizar o crime de responsabilidade. É como se a ele fosse permitido fazer e dizer o que bem entende, porque, supostamente, há forças mais ou menos ocultas a suportá-lo.
As instituições democráticas, diferentemente do que se afirma, todos os dias, aqui e ali, não estão funcionando adequadamente.
Prova disso é a nota divulgada pelo general Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional, ameaçando o Supremo Tribunal Federal (terá sido a enésima ameaça de militares ao STF), caso viesse a ser determinada a requisição do telefone celular do Presidente.
Crime de responsabilidade escancarado (usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício – art. 6.º, 6), praticado por Heleno, pelo ministro da Defesa, ao chancelar a nota e, potencialmente, pelo próprio presidente, ao avisar que não entregará o telefone em nenhuma possibilidade.
Para quem testemunhou o impeachment de uma presidente por suposta “pedalada fiscal”, reduzir o conteúdo do vídeo à discussão quanto à comprovação ou não das acusações de Moro (pusilânime, nada disse na reunião em face do que ouviu), tudo parece absurdamente estranho. Surreal.
Hugo Cavalcanti Melo Filho é Doutor em Ciência Política, Professor de Direito da UFPE, Juiz do Trabalho no Recife e membro da Associação dos Juristas pela Democracia.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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