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    Bernardo Ricupero

    Professor do Departamento de Ciência Política da USP

    11 artigos

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    Os antepassados de Bolsonaro

    "É evidente a semelhança e a inspiração dos camisas verdes brasileiros nos camisas negros italianos. No entanto, o integralismo não é mera reprodução do fascismo, refletindo as peculiares condições brasileiras", escreve o professor de Ciência Política da USP Bernardo Ricupero

    (Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil)

    Por Bernardo Ricupero

    (artigo originalmente publicado no site A Terra é Redonda)

    Em 2016 fomos surpreendidos quando multidões vestidas de verde e de amarelo ocuparam as ruas das cidades brasileiras para defenderem o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Bradavam palavras de ordem, como: “nossa bandeira jamais será vermelha”; “o gigante acordou”; “quero meu país de volta”.

    De onde teria emergido essa massa que, de maneira aparentemente inédita, não tinha vergonha de defender teses de direita? O choque talvez tenha sido particularmente forte para aqueles que cresceram durante a chamada transição, período em que a lembrança de nossa última ditadura ainda estava fresca e mesmo um político como Paulo Maluf sentia a necessidade de se definir como de centro-esquerda.

    Não faltou quem percebesse as semelhanças, até mesmo estéticas, da nova direita brasileira com o neoconservadorismo norte-americano. Tais coincidências não são mero acaso até porque, como logo se soube, os tupiniquins se inspiraram nos ianques.

    Nessa referência, talvez se pudesse perguntar se no Brasil, assim como nos EUA, se teria constituído uma hegemonia de direita. Até porque o país da Moral Majority é quase um exemplo acabado de como se pode estabelecer direção intelectual e moral.

    Com efeito, depois do fim da Segunda Guerra, quando a orientação dada por Franklin Roosevelt ao governo dos EUA parecia assumir ares de quase consenso, forjou-se uma improvável aliança entre intelectuais conservadores, defensores do livre mercado e cristãos tradicionalistas. Essa espécie de exército de Brancaleone logo criou revistas, fundou think tanks, atuou na sociedade civil, até que elegeu, em 1980, Ronald Reagan presidente.

    Desde então, a direita passou a dar a tônica do debate político-cultural norte-americano, mesmo quando não está no poder. Sinal da nova hegemonia é que uma afirmação como a do crítico literário Lionel Trilling de que no seu país “o liberalismo não é apenas a tradição intelectual dominante, mas a única tradição intelectual” deixou de fazer sentido desde quando foi proferida em 1950.

    No Brasil, em contraste, a ascensão da extrema-direita se deu repentinamente, talvez em não mais de cinco anos, a partir das chamadas Jornadas de Junho de 2013. Nesse sentido, não houve tanto um lento processo de constituição da hegemonia, mas uma espécie de colapso do regime instaurado pela Constituição de 1988. Seria questionável, portanto, considerar que a sociedade civil está impregnada por ideias de direita.

    Por outro lado, não deixa de chamar a atenção as semelhanças do discurso da atual extrema-direita brasileira com as formulações de egressos do que é normalmente estudado como um movimento puramente literário, o grupo modernista Verde-Amarelo [1]. Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio Salgado eram colaboradores do Correio Paulistano, órgão oficial do Partido Republicano Paulista (PRP), e constituíam uma das facções modernistas quando, a partir de 1924, o movimento deixou de ser uma “frente única”.

    Na verdade, os diferentes grupos modernistas se definiram basicamente em relação uns aos outros, os verde-amarelos assumindo boa parte de seus contornos em contraste com o Pau Brasil. Não aceitavam, em particular, o “primitivismo” favorecido por Oswald de Andrade, defendendo, em contraste, um projeto “construtivista”. No entanto, me interessa particularmente como os integrantes do Verde-Amarelo se comportam depois da Revolução de 1930, quando a rigor o movimento já não existe como tal e segundo João Luiz Lafetá, há a passagem do projeto estético para o projeto ideológico do modernismo.

    Plínio rompe com o PRP e em 1932 funda a Ação Integralista Brasileira (AIB), o primeiro partido de massas brasileiro. Seu documento de fundação, o “Manifesto de Outubro”, se abre com a proclamação: “Deus dirige os destinos dos povos”. Também em termos tradicionalistas, defende a família e se volta contra a imoralidade dos costumes, o cosmopolitismo e o comunismo, temas que voltaram a ganhar centralidade no Brasil atual. Mas igualmente se coloca contra o liberalismo.

    O documento escrito pelo chefe integralista se preocupa especialmente com a divisão social, contra a qual se posicionaria o Estado integral, pretensamente capaz de garantir a harmonia no interior da sociedade. Em termos mais específicos, para combater a desordem seria preciso garantir o princípio de autoridade, a hierarquia e a disciplina. Seguindo uma preocupação comum na década de 1930, defende a organização das classes profissionais. Além disso, enfatiza a importância do município. Diante da orientação dominante no país, declara que os integralistas deliberadamente prefeririam estar “proscritos da falsa vida política da nação”.

    Num sentido amplo, Plínio defende uma sociedade organizada hierarquicamente e baseada em valores espirituais. Em termos específicos, da mesma forma que uma vasta literatura existente sobre o país, vê o Brasil dividido em dois: o falso e cosmopolita país do litoral, cópia da Europa, e o país real do Sertão, onde se encontrariam os gérmens da nacionalidade. Nesse sentido, paradoxalmente o Brasil teria sido mais brasileiro durante a colônia, quando fora praticamente esquecido pela metrópole portuguesa.

    No entanto, quando se discute o integralismo, normalmente a principal preocupação é entender sua relação com o fascismo [2]. É evidente a semelhança e mesmo a inspiração dos camisas verdes brasileiros nos camisas negros italianos. No entanto, o integralismo não é mera reprodução do fascismo, refletindo as peculiares condições brasileiras. Mesmo assim, o integralismo e o fascismo não deixam de refletir o clima intelectual e político mais amplo do entre-guerras.

    Mas talvez seja especialmente interessante explorar o que fica das formulações de outro escritor verde-amarelo com vinculações menos óbvias com o fascismo, Cassiano Ricardo. Diferente de Plínio, o autor de Martim Cererê não rompe com o PRP depois da Revolução de 1930 [3]. Apoia a Revolução Constitucionalista de 1932 e chega a ser chefe de gabinete do governador de São Paulo, Armando Salles de Oliveira. Em prol da sua campanha para a eleição presidencial de 1938, que acabou não ocorrendo devido ao golpe de 1937, cria o movimento Bandeira, que congrega além de egressos do movimento Verde-Amarelo, escritores como Monteiro Lobato e Mário de Andrade.

    No entanto, Cassiano, assim como Menotti del Picchia, aproxima-se de Getúlio Vargas com o Estado Novo. Escreve um livro, Marcha para o Oeste (1940), evocação do discurso do presidente pronunciado às 00.00 de 31 de dezembro de 1937, em que proclamava a necessidade de integrar as diferentes regiões brasileiras numa economia centralizada.

    Marcha para o Oeste é um documento muito sugestivo. A começar pelo fato que é, como fazia questão de deixar claro seu autor, uma reelaboração do poema épico Martim Cererê (1928), escrito quando o escritor verde-amarelo ainda era vinculado ao PRP. Os dois textos narram como a mestiçagem entre o branco e o índio – com uma participação mais discreta do negro – teria criado um gigante: o bandeirante. Seria ele o principal responsável pelo que é o Brasil.

    A evocação do herói paulista insere-se numa literatura criada a partir do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), fundado em 1894, e do PRP, em que o bandeirante se torna um verdadeiro mito. Na década de 1920, com a publicação dos testamentos e inventários dos velhos paulistas por iniciativa do então presidente de São Paulo, Washington Luís, esse quase gênero ganha impulso nas obras de autores como Afonso d’Escragnolle Taunay, Alfredo Ellis Junior e José de Alcântara Machado, até mesmo Plínio Salgando escrevendo, já em 1934, um romance, A voz do Oeste, sobre o tema. Em resumo, o mito bandeirante relaciona-se com um certo projeto de hegemonia paulista.

    A realização particular de Cassiano Ricardo e, em termos mais profundos, de Getúlio Vargas está em incorporar o mito bandeirante ao projeto ideológico do Estado Novo, convertendo antigos inimigos em aliados do governo forte. Significativamente, o escritor verde-amarelo torna-se, em 1941, editor do diário A Manhã, órgão oficial do Estado Novo.

    Segundo o livro Marcha para o Oeste, dos três grupos que formariam a sociedade brasileira – o feudal e imóvel dos engenhos de açúcar, o comunista e nômade indígena e o democrático e móvel bandeirante – seria o último aquele que poderia criar uma nação. Em outras palavras, a nação brasileira é identificada basicamente com seu território. O chefe da bandeira se comportaria de maneira impiedosa com aqueles sob seu comando, mas, na verdade, não seria “apenas o mandão: é o protetor”.

    Depois do século XVII, outras “bandeiras” teriam continuado a ocupar o imenso território do país, com destaque para o café, não por acaso, chamado de “ouro verde”. Mais recentemente, a bandeira indicaria as linhas que o Estado moderno e mais especificamente o Estado Novo seguiriam: “comando seguro e fraterna solidariedade dos indivíduos obedientes à firme unidade de comando”.

    De maneira mais direta, como é comum na década de 1930, Cassiano Ricardo faz questão de qualificar a democracia. Rejeita a democracia política, supostamente pouco adequada ao Brasil, em favor de uma pretensa democracia étnica, favorecida pelos bandeirantes e da qual surgiria uma democracia social.

    Bolsonaro provavelmente nunca leu Plínio Salgado ou Cassiano Ricardo. Há, além do mais, diversos pontos contrastantes entre os atuais e antigos cultores do “Brasil grande”. A começar pela postura diante do liberalismo, encarado com desconfiança pelos verde-amarelos e elevado à condição de principal aliado do atual presidente.

    Verdade que os dois liberalismos não são exatamente os mesmos; a hostilidade nos anos 1920 e 1930 voltava-se principalmente contra o liberalismo político, a simpatia atual dirige-se especialmente em favor do liberalismo econômico. Também o Deus que Plínio Salgado e Cassiano Ricardo evocavam não é exatamente o mesmo de Bolsonaro. Até porque nos últimos oitenta anos o Brasil deixou de ser um país quase exclusivamente católico para se converter num país crescentemente evangélico.

    No entanto, a imagem da nação favorecida pelos verde-amarelos e Bolsonaro é surpreendentemente similar: um Brasil grande, no qual não há verdadeiro espaço para seus habitantes, particularmente os mais débeis. Nele a marcha para a pretensa grandeza não deve levar em conta o que encontra pela frente, seja a natureza ou os homens e as mulheres que atrapalhariam seu curso. O lócus privilegiado a vencer tais obstáculos seria a “fronteira”, a Amazônia, em especial, sendo vista como uma região a ser desbravada pelo agrobusiness.

    Ou seja, a não consciência de se estar repetindo elaborações do passado é indício de como elas se tornaram fortes, tendo até penetrado no senso comum. Mesmo que as fórmulas variem – Cassiano Ricardo falava em “pequena propriedade e grande família”, ao passo que atualmente se afirma, “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo” – a ideia básica permanece. Em poucas palavras, como também se costumava afirmar em outros tempos: “ninguém segura este país”.

    Notas

    [1] Bons estudos sobre o movimento Verde-Amarelo que não prestam atenção apenas à sua dimensão literária são os de Mônica Velloso (1993), Maria José Campos (2007) e Lorena Zem El-Dine (2017).

    [2] Na década de 1970, não por acaso durante a última ditadura brasileira, apareceram diversos trabalhos importantes sobre o integralismo. Hélgio Trindade (1974) destacou sua semelhança com o fascismo, ao passo que José Chasin (1978) enfatizou sua especificidade brasileira, Gilberto Vasconcelos (1979) lidou principalmente com sua “utopia autonomística”, Ricardo Benzaquén de Araújo (1978) tratou da lógica interna do seu pensamento e Marilena Chauí (1978) investigou as características de sua ideologia.

    [3] Sobre Cassiano Ricardo, ver especialmente Luiza Franco Moreira (2001).

    Referências bibliográficas

    ARAÚJO, Ricardo Benzaquén de. “As classificações de Plínio: uma análise de Plínio Salgado entre 1932 e 1938”. Revista de Ciência Política, v. 21, n. 3, 1978.

    CAMPOS, Maria José. 2007. Versões modernistas sobre o mito da democracia racial em movimento: estudo sobre as trajetórias e as obras de Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo até 1945. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, 2007.

    CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978.

    CHAUÍ, Marilena. “Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira”. In: CHAUÍ, Marilena; FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. Ideologia e mobilização Popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

    EL-DINE, Lorena R. Zem. A alma e a forma do Brasil: o modernismo paulista em Verde-Amarelo. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, 2017.

    LAFETÁ, João. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Editora 34, 2000.

    MOREIRA, Luiza Franco. Meninos, poetas & heróis: aspectos de Cassiano Ricardo do modernismo ao Estado Novo. São Paulo: EDUSP, 2001.

    TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 1930. São Paulo: DIFEL, 1974.

    VASCONCELOS, Gilberto. A ideologia curupira. São Paulo: Brasiliense, 1979.

    VELLOSO, Mônica. “A brasilidade Verde-Amarela: nacionalismo e regionalismo paulista”. Estudos Históricos, v. 6, n. 11, 1993.


    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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