Os desafios dos governos progressistas na América Latina
Com a democracia restabelecida no continente latino-americano no fim da década de 80, criou-se a expectativa de que esta traria consigo a solução para todos os problemas básicos. No entanto, na década de 90 o continente sofreu profundamente com a aplicação do projeto neoliberal que, como principais consequências, provocou a financeirização da economia, a precarização laboral e uma onda de desemprego
Com a democracia restabelecida no continente latino-americano no fim da década de 80, criou-se a expectativa de que esta traria consigo a solução para todos os problemas básicos. No entanto, na década de 90 o continente sofreu profundamente com a aplicação do projeto neoliberal que, como principais consequências, provocou a financeirização da economia, a precarização laboral e uma onda de desemprego. Esse período neoliberal afetou negativamente a maior parte da população do continente, o que teve um peso decisivo nos termos do debate político mais geral, e acabou por ajudar a eleição dos governos progressistas ou de esquerda. Vivemos por quase duas décadas sob uma hegemonia progressista, mas ela parece estar chegando ao fim.
Hoje o continente enfrentauma conjuntura única. Os vários países da região que elegeram governos progressistas atravessam uma grave crise política, econômica, cultural e de direitos que parece apontar para o fim de um período desenvolvimentista, e tudo indica que voltaremos a viver sob a égide neoliberal. Nos últimos anos vimos o ressurgimento de grupos de direita, a difusão da ideologia neoliberal, a perda de força e isolamento dos sindicatos, a criminalização dos movimentos sociais, erros estratégicos da esquerda, etc. Todos estes movimentos estabeleceram uma nova relação de forças dentro das sociedades latino-americanas com uma desvantagem muito evidente para o campo da esquerda.Países como Venezuela, Brasil, Argentina, Bolívia, Uruguai, Equador parecem se aproximar do fim de um ciclo de desenvolvimento. E pior, já começa a aparecer,num horizonte próximo, a possibilidade concreta de retirada de direitos conquistados pela classe trabalhadora, somada ao aumento da inflação, do desemprego e da miséria. Argentina e Brasil, por exemplo, já dão sinais claros de que a volta ao modelo proposto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) trará novamente prejuízos à classe trabalhadora e o aumento da pobreza.
Após 2010, seja através do processo eleitoral, da mobilização popular (na maioria das vezes comandadas por partidos de direita e grupos de mídia), de boicotes econômicos, interesses externos ou golpes de Estado, a direita do continente vem conseguindo, ano após ano, retomar o controle do governo em diversos países. O esforço – fora e dentro da Lei – que tem sido feito pelas forças conservadoras parece ter como principal meta barrar o processo emancipatório iniciado com os governos progressistas. Uma vez colônia, sempre colônia! Esse novo ciclo conservador que estamos vivendo, embora ainda sem uma prova cabal, parece contar com o apoio dos Estados Unidos da América (EUA) no financiamento de partidos políticos, grupos “independentes” da sociedade civil, boicotes econômicos, etc. Hoje não temos os tanques, mas entraram os meios de comunicação, o ódio e uma justiça parcial, representada por juízes que assumem uma clara posição de classee que perseguem, sem nenhuma cerimônia, partidos e figuras ligados à esquerda.
A estratégia para a derrubada dos governos progressistas está concentrada nos meios de comunicação, na batalha cultural e na luta constante contra movimentos sociais. Seminários, fóruns, clubes, jornais, revistas, sitese blogs, todos promovendo e irradiando o discurso neoliberal contra o que é popular e que possua umcaráter transformador da sociedade. Em resumo, tudo que seja democrático. A direita, apoiada na burguesia local e historicamente alinhada comos EUA,está avançando não só sobre as riquezas naturais e direitos conquistados, ela está buscando também desarticular a iniciada (e ainda frágil) integração regional, tentando acabar de vez com o sonho integracionista e democrático que os líderes progressistas do continente começaram a construir.
Embora hojea batalha pareça perdida e a volta do modelo neoliberal de governar avance pelo continente, não podemos olhar para trás e baixar a cabeça. Temos de olhar para o curto período progressista que vivemos e celebrar. Temos também, é claro, de olhar os erros e acertos do período e fazer uma avaliação criteriosa e justa, para que os erros cometidos não se repitam. Mas devemos celebrar sim, pois pela primeira vez, em séculos, a população que sempre conviveu com a miséria, a pobreza, o desemprego e tantas outras privações, conseguiu viver com mais dignidade.
Apesar de ainda sermos uma das regiões mais desiguais do mundo, foi possível perceber uma redução da miséria no continente com a diminuição acentuada no número de indigentes, e isso mostra a eficácia e a importância dos programas de combate à extrema pobreza que existem atualmente.Várias análises realizadas nestes países mostram quefoi feito um considerável esforço para aumentar a redistribuição da renda, essa redistribuição (que teve como destaque o Brasil) ajudou o continente a reduzir as taxas de sua profunda e histórica desigualdade ao menor nível da história. Mas esta redistribuição de renda só foi possível graças à aplicação, em quase todos os países, de uma “nova” forma de gestão da economia: o Estado como protagonista na produção e distribuição das riquezas e priorização dos interesses nacionais.
Mesmo com esta melhoria substancial na vida de milhares de pessoas,um sentimento muito forte de insatisfação, multiplicado artificialmente pela mídia,vem sendo disseminado nestes países. Entre os setores da direita a insatisfação existe porque dizem que está gastando-se muito como social, sem nenhum critério. Já os setores de esquerda, que fazem oposição aos governos progressistas (que por vezes utilizam o discurso conservador),dizem que as conquistas econômicas, políticas e sociais obtidas não são suficientes e que poderiam ter sido alcançadas sem os acordos feitos com os partidos de centro ou de direita. Estes são adeptos de uma visão purista, algo quase impossível quando faz-se política no dia a dia.
Neste período, além da redução da pobreza e da indigência, vimos aparecer uma sociedade civil renovada com outros atores e suas lutas, como comunidades indígenas,movimento negro (com destaque para as mulheres negras),sindicatos, população LGBTT, empregadas domésticas, entre outros. Com um explícito movimento democrático por parte dos governos, foi incrementada também a ideia de participação, promovendo o compartilhamento de decisões com a sociedade. Além disso, com o fortalecimento do Mercosul, houvea valorização da integração dos países da região.
Tivemos muitos acertos durante os últimos 15 anos, mas temos de admitir que o número de erros também foi grande. Eles, sem dúvida, não invalidam o que foi feito e devem servir de parâmetro para que não se repitam em futuros governos progressistas.
Os principais erros
Segundo Karl Marx a economia capitalista é feita de ciclos e uma determinada doutrina econômica não perdurará para sempre. Vivemos sempre ciclos econômicos.Com isso em mente, temos que torcer para que o próximo ciclo neoliberal que se aproxima (para alguns países esse cenário já é realidade)seja curto e que os estragos que venha a causar sejam possíveis de serem revertidos. Temos então de fazer uma análise detalhada dos equívocos ocorridos, para que a volta dos governos progressistas ao comando da maioria dos paísesdo continente seja pautada por mais, e duradouros, acertos visto que é possível,e necessário,aprender com nossas falhas.
Um dos principais erros dos governos progressistas foi não conseguir romper com a lógica do cidadão consumidor. O sucesso da redistribuição de renda foi visível, mas para nós foi visível também que está redistribuição não veio acompanhada por uma discussão sobre a sociedade consumista em que vivemos. Perdemos a batalha das ideias. Muitos governos não souberam, ou tentaram e fracassaram, travar a batalha pela interpretação das coisas, uma interpretação de mundo. Essa, sem dúvida, é uma das lutas mais árduas a serem travadas, porque se luta contra ideias pré-concebidas há muito tempo, reforçadas diuturnamente por meios de comunicação alinhados ao grande capital.
Um outro aspecto a ser mencionado é o problema do papel das liderançasoriundas da sociedade civil. Em muitos casosas lideranças têm deixado suas bases (fábricas, sindicatos, associações, igrejas e etc.) para ingressar na carreira política ou assumir cargos na administração pública.Temos de entender que com o fim das ditaduras militares no continente, abriu-se para os partidos progressistas a oportunidade de disputar estes espaços de poder. Ser um gestor público ou parlamentar era vedado à grande maioria das lideranças populares, e por isso existe uma grande demanda na sociedade por ocupar estes espaços.Mas temos de destacar que esta saída tem deixado um grande vazio em algumas instituições. Por isso, devemos nos perguntar o que é mais importante em alguns casos: ter um representante na câmara, no executivo, no parlamento ou uma liderança que mantenha sua base mobilizada para a luta diária?
Os governos progressistas também falharam no combate à corrupção. Sabemos que a corrupção não é um fenômeno novo, dela temos documentos que são milenares, ela está em textos literários e em estudos da história, havendo exemplos ocorridos nas mais diferentes épocas e em distintas formas de organização estatal. No entanto, mesmo tendo provas de que tenha sempre existido, a corrupção hoje trazà tona uma renovada apreensão: ela viceja em uma nova realidade, oferecendo mostras de que se tornou mais intensa e mais complexa.Diante deste panorama, o combate à corrupção também foi um tema problemático para os governos progressistas da região. Seria ingenuidade supor que estes governos solucionariam esse problema, já que é um fenômeno sistêmico (existindo também na iniciativa privada, não podemos nos esquecer disso), mas a maioria dos governos fracassou em tentar punir políticos envolvidos em escândalos e falharam também em – pelo menos – tentar criar leis que a coibissem. Além disso, os governos progressistas como parte de um pacto de governabilidade, decidiram não investigar os governos antecessores – quase que exclusivamente de direita – e isso acabou colaborando, involuntariamente ou não, com estas práticas.
Junto a isso, os governos da região não conseguiram colocar em prática uma real integração econômica, embora tenha avançado muito nos últimos 15 anos. O Mercosul não vai acabar, pois nenhum governo está preparado para assumir o ônus dessa decisão, mas, mantida a atual política (esse pode ser um problema, pois os governos de cunho liberal – Brasil e Argentina – tendem a enfraquecer o bloco e se submeteremaos ditames econômicos dos EUA), o futuro do Mercosul é continuar a ser penas um fórum de discussões políticas e sociais. Nada além disso.
Uma nova época
Entramos agora numa nova onda neoliberal no continente. Esse aparente final de ciclo traz consigo (para todos os países) não só a interrupção de uma agenda progressista, ele vem acompanhado por uma campanha muito forte pela retirada dos direitos conquistados pelas minorias. Esse novo momento exige um esforço de honestidade intelectual para, a partir da lealdade e do compromisso com os processos, tentar ler melhor o momento das esquerdas latino-americanas e tentar unificá-las. Nesse sentido, existe a necessidade de fazer um diagnóstico do momento histórico no qual nos encontramos, para que juntos possamos encontrar soluções a curto e médio prazo, para que os problemas que enfrentamos no passado, e no presente, não sejam obstáculos novamente no futuro.
Essa reflexão tem de levar em consideração, o fato de que durante boa parte do processo de mudança que assistimos nas últimas duas décadas vimos uma direita desorientada e na defensiva. Em muitos casos, foram as embaixadas dos EUA que fizeram o papel de principal opositor aos governos progressistasda região, e que possivelmente patrocinou os golpes de Estado, duros ou brandos. Os opositores locais eram simples marionetes, ainda ancorados no discurso do Consenso de Washington e distribuídos entre os velhos partidos defensores do neoliberalismo. Entretanto, hoje temos uma direita renovada, assessorada pelos gurus do marketing político neoliberal que camuflam as ideias neoliberais sob uma estética mais atraente e um discurso mais amável, reconfigurado, a ponto de não atacar diretamente as conquistas alcançadas nas últimas duas décadas.
Junto às mudanças estratégicas (de cunho prático) que os partidos progressistas do continente precisam pôr em prática, a solução para a crise no continente também passa pela construção de um novo modo de encarar a democracia. Hoje quando falamos em democracia não podemos nos ater à simples representação política. Poder votar e ser votado já foi, sim, o ideal democrático de vários países, mas hoje não. Na atualidade os direitos políticos são apenas uma pequena parte da democracia que precisamos para alcançarmos voos mais altos. E mais: a luta que recomeça agora na América Latina não é uma luta apenas pela democracia, é umaluta por justiça social. É lutar por democracia com poder de mudança.
Não pode interessar às forças democráticas e populares uma democracia que não resolva, pelo menos em parte, o problema social. Se esse não for o objetivo principal dos governos progressistas eleitos pelo povo, eles não conseguirão servir ao povo e serão abandonados por este e, logo em seguida, serão derrotados pela oligarquia, pelo imperialismo e pela reação que se aproveitará do descontentamento do próprio povo para implementar suas políticas de desestabilização dos governos. Acabamos de assistir este filme.
Temos de iniciar uma luta democrática que congregue várias bandeiras, vários atores, vários direitos. Temos de conseguir fazer com que essa batalha seja ampla e com ampla participação, até chegarmos à“radicalização” democrática. Sabemos que em muitos países (inclusive no Brasil) a participação ainda possui muitos entraves (burocracia, falta de informação, apatia da sociedade, grupos cooptados pelo aparato estatal e etc.), mas temos de construir um novo tipo de participação, precisamos construir novos mecanismos de participação popular para fortalecer a legitimidade da administração pública seja ela municipal, estadual ou federal. Temos de resolver o problema da quantidade de pessoas que participam do processo decisório, mas não podemos descuidar jamais da qualidade da participação que é preciso oferecer.
Quantidade com qualidade é a radicalização democrática que precisamos oferecer.As forças progressivas do continente não podem dar-se por vencidas por conta da chegada desta nova onda neoliberal no continente. Temos de criticar (de forma construtiva e no momento adequado) tudo que foi feito para que possamos melhorar, e não podemos esquecer que este é o caminho para que se construa um continente mais justo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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