Os golpes de Estado de 1964 e 2016 comprometeram a democracia, a soberania e o desenvolvimento nacional
O golpe perpetrado em 1964 teve o propósito de impedir a materialização de um projeto democrático e popular de desenvolvimento nacional, apoiado em geral pelo movimento sindical e as forças progressistas
O golpe de 1964 não se limitou a destruir a incipiente democracia brasileira, amordaçando a imprensa, os sindicatos, os partidos políticos, institucionalizando a tortura e o assassinato de opositores. Além das atrocidades políticas, os golpistas deixaram um legado econômico maldito, comprometendo em longo prazo o desenvolvimento nacional.
É preciso lembrar que o golpe foi perpetrado em 1964 com o propósito de impedir a materialização de um projeto democrático e popular de desenvolvimento nacional, apoiado em geral pelo movimento sindical e as forças progressistas. Goulart governou em sintonia com as demandas do povo por desenvolvimento e bem estar social.
Entre as famosas reformas de base que seu governo tencionava promover destacava-se a realização da reforma agrária com o objetivo de democratizar a propriedade no campo, fortalecer o mercado interno brasileiro e a produção de alimentos, desapropriando latifúndios improdutivos e distribuindo terra aos camponeses que ansiavam cultivá-la.
Também constavam da agenda de João Goulart as reformas tributária, bancária e constitucional, todas elas com um sentido democrático. O herdeiro de Getúlio Vargas também encaminhou ao Congresso Nacional a lei que taxava as remessas de lucros e dividendos ao exterior pelas multinacionais.
Burguesia, latifundiários e EUA
O programa do governo encontrou forte oposição dos latifundiários do campo, dos grandes capitalistas urbanos e, sobretudo, de poderosas empresas multinacionais, cujos interesses orientam a política externa das grandes potências, em especial dos EUA. Estes chegaram a deslocar a Frota do Caribe para o litoral brasileiro em apoio aos golpistas na chamada Operação Brother Sam, fato que só veio à tona muitos anos depois.
O regime militar bloqueou o caminho de desenvolvimento orientado para a satisfação das demandas populares capitaneado pelo governo trabalhista liderado por João Goulart. Adotou um outro modelo econômico, em harmonia com os interesses das forças sociais que lhe deram respaldo, ou seja, os latifundiários, a burguesia nacional e os capitalistas estrangeiros, liderados pelos banqueiros dos EUA.
Para saciar esses interesses arrochou os salários da classe trabalhadora, reprimiu os sindicatos, perseguiu, torturou e assassinou lideranças operárias, acabou com a estabilidade no emprego, revogou a lei das remessas de lucros e recorreu a um excessivo e perigoso endividamento externo.
Milagre econômico com arrocho salarial
Num primeiro momento, as coisas pareciam ir no rumo certo para a perspectiva do desenvolvimento nacional. O modelo promoveu o crescimento das forças produtivas, a expansão das empresas públicas e até um celebrado “milagre econômico” (1969 a 1973), quando o PIB cresceu entre 7% a 13% ao ano.
O ex-ministro Delfim Netto exaltava os resultados do PIB e minimizava o arrocho salarial, para o qual contribuiu com a manipulação do índice de inflação em 1973, e a crescente concentração da renda. Dizia que primeiro era “preciso fazer o bolo crescer para depois distribuir”.
O bolo cresceu e nunca foi distribuído, continuou sendo apropriado (a parte do Leão) pela burguesia, nacional e estrangeira. Durante alguns anos houve crescimento sem distribuição de renda.
A crise da dívida externa
Mas a prosperidade não durou muito. O modelo eleito pelos generais pode ser comparado a um gigante com pés de barros. A dependência e notória vulnerabilidade externa, agravada pela insensatez do endividamento, não tardou a cobrar seu preço.
Os problemas começaram ainda na década de 1970, após o fim do lastro do dólar em ouro (1971), e a primeira crise do petróleo (1973), que acelerou a inflação e reduziu a taxa de crescimento da produção. A situação piorou na sequência com a explosão do endividamento externo.
Entre a primeira (1973) e a segunda crise do petróleo (1979), a dívida externa brasileira saltou de US$ 12,5 bilhões para US$ 50 bilhões. Entre a segunda crise e o fim do regime militar, em 1985, ela praticamente dobrou, beirando os US$ 100 bilhões.
Nas mãos do FMI
Contraídos à base dos juros flutuantes, com patamares ditados pelo banco central dos EUA (o Federal Reserve – FED), os débitos acumulados despreocupadamente ao longo da ditadura cresceram exponencialmente nos primeiros anos da década de 1980, depois que o então presidente do FED, Paul Volcker, decidiu elevar as taxas de juros a 20% ao ano para evitar o colapso do dólar.
A expansão descontrolada da dívida resultou da lógica dos juros compostos e provocou uma dramática inflexão histórica no processo de desenvolvimento nacional.
Quando a torneira do financiamento externo foi fechada bruscamente pela banca, o governo militar, liderado por João Figueiredo (o general que declarou preferir o cheiro dos cavalos ao do povo) decidiu entregar a economia brasileira ao funesto comando do FMI, que nasceu e sempre foi muito fiel aos interesses da oligarquia financeira internacional.
As reformas impostas pelo FMI garantiram o pagamento religioso dos juros extorsivos cobrados pelos bancos estrangeiros, mas a um custo imensurável para o povo brasileiro. Os lucros obtidos no comércio exterior, com a conversão do déficit em superávit, foram transferidos integralmente para o bolso dos banqueiros em detrimento dos investimentos nacionais.
Década perdida
O “ajuste externo”, impulsionado pelo acordo com o Fundo em 1981, drenou a poupança nacional para o exterior, alimentou a inflação, deprimiu a taxa de investimentos e desencadeou a mais grave e nociva recessão da história do país. Desde então a economia nacional nunca mais registrou os índices de crescimento alcançados entre os anos 1930 a 1980.
Os anos 80 do século passado ficaram conhecidos como década perdida pelo fato de que constituíram a primeira década fechada com redução do PIB per capita (cerca de 4% menor). A tragédia não se resumiu nisto.
As taxas médias de crescimento anual do PIB despencaram de 7% nas décadas compreendidas entre 1930 a 1980 para 2% nos anos seguintes e menos ainda na última década. O crescimento sustentado de outrora deu lugar a seguidos voos de galinha. Teve curso acelerado a política de privatizações e desindustrialização da economia.
A indústria brasileira em 1980 produzia um valor superior ao da indústria chinesa, mas foi perdendo musculatura, mercado e vigor desde aquela década que foi considerada perdida do ponto de vista econômico, apesar dos notáveis avanços políticos decorrentes da redemocratização. A China nos ultrapassou e está hoje a anos luz de distância do nosso país neste e em outros setores da atividade humana.
A herança do regime militar
Quando foram escorraçados do Palácio do Planalto, no rastro da memorável campanha das Diretas Já, cujos ecos produziram a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, os generais tinham deixado por herança uma economia em frangalhos, uma inflação incontrolável, um desemprego massivo, muita miséria, carestia e uma insatisfação social explosiva.
A desmoralização da casta militar foi temperada por sucessivos e rumorosos escândalos de corrupção. Os setores mais extremistas desta casta ainda sonharam com um novo golpe após a morte de Tancredo Neves, mas foram dissuadidos e isolados politicamente pelas gigantescas manifestações populares durante o cortejo fúnebre do político mineiro. Figueiredo saiu pelas portas do fundo do Palácio do Planalto.
O papel do Estado
As crises econômicas têm caráter objetivo, mas isto não significa que sejam indiferentes às escolhas políticas dos governantes. Há séculos que as políticas econômicas ditadas pelos Estados nacionais são fundamentais para o florescimento ou a decadência da indústria e, por extensão, da economia. A partir do século 20 o papel e o protagonismo do Estado foram consideravelmente ampliados em resposta a crises e necessidades objetivas das economias, fato que despertou a reação neoliberal.
A crise do desenvolvimento nacional no Brasil, configurada na queda das taxas médias anuais de crescimento do PIB de 7% (1930/1980) para cerca de 2% nas décadas seguintes e menos de 0,3% na última (2011 a 2020), foi o fruto de políticas econômicas moldadas pelos interesses da burguesia financeira, nacional e estrangeira, que não estão em harmonia com os interesses nacionais e o desenvolvimento.
A tragédia não pode ser atribuída à fatalidade, aos desígnios do destino. Foi a obra maior, embora pouco compreendida e comentada, do regime militar. Se o Brasil não fosse retirado à força dos tanques e canhões do caminho desenhado pelas forças populares e democráticas e concretizasse as reformas de base, não estaria tão vulnerável às mudanças de humor da oligarquia financeira internacional e muito provavelmente teria escapado à armadilha da crise da dívida externa.
No comando do Estado nacional, as classes conservadoras e reacionárias continuam impondo um caminho contrário às demandas e necessidades do povo brasileiro.
A resistência popular
Mas nada disto ocorre de forma linear. Trata-se de um movimento dialético, impulsionado por choques e contradições políticas e sociais.
As forças democráticas e populares sempre lutaram contra os retrocessos e em defesa do povo e dos interesses nacionais, conquistando neste processo importantes vitórias. A derrocada da ditadura, a realização de uma Assembleia Nacional Constituinte (1986 a 1988) e a eleição do Lula em 2002 são acontecimentos que comprovam isto.
A Constituinte projetou para o Brasil uma sociedade de bem estar social, criou o SUS, preconizou uma política externa soberana centrada na integração da América do Sul e Latina, democratização das universidades, vinculação dos orçamentos públicos ao financiamento da educação e da saúde, valorização do trabalho e proteção da indústria nacional.
Nada disto parecia muito conveniente aos interesses da grande burguesia brasileira, dos capitalistas estrangeiros e dos EUA. Por esta razão a Carta Magna foi desde o berço submetida à investida reacionária das classes dominantes, sendo muitos de suas normas e concepções subvertidas e deturpadas por emendas constitucionais. Arautos do Estado mínimo e de políticas fiscais restritivas seus detratadores argumentam que “a Constituição não cabe no orçamento”.
Na última década do século passado, com os governos Collor e Fernando Henrique Cardoso, prevaleceu por aqui a política neoliberal voltada para a desconstituição da sociedade de bem estar social prevista na Constituição, a destruição do Direito do Trabalho (travestido em “fim da Era Vargas”), a entrega das empresas estatais e o estabelecimento do chamado Estado mínimo.
Este caminho, subordinado e dependente economicamente dos EUA, levou o Brasil de volta aos braços do FMI. Desta vez quem fechou, entre 1998 a 2002, três humilhantes e desastrosos acordos com a instituição criada pelos EUA e as potências europeias em Bretton Woods foi o sociólogo tucano Fernando Henrique Cardoso, cujo governo também inaugurou e praticou a diplomacia dos pés descalços.
O governo FHC teve um fim melancólico, com crise econômica, taxa de desemprego recorde e inflação em alta. O tucano não conseguiu fazer de José Serra o seu sucessor e saiu do Palácio do Planalto desmoralizado.
Os governos Lula e Dilma (2003 a 2015) começaram a implementar um projeto democrático e popular, embora traduzido num reformismo tímido em comparação com as Reformas de Base de João Goulart. Não ousaram nenhuma reforma estrutural. Promoveram uma forte valorização do salário mínimo, um novo marco regulatório para a exploração do petróleo, fortalecendo a Petrobras, políticas afirmativas para negros e mulheres e uma nova política externa batizada de “altiva e ativa” que foi saudada no Brics mas desapontou Washington.
O Brasil saiu do mapa da fome da ONU durante os governos petistas.
O golpe do capital contra o trabalho
A valorização dos salários, de mulheres e negros no governo Lula foi bom para o povo e também para a economia nacional, uma vez que resultou no aumento da capacidade de consumo da população e fortalecimento do mercado interno.
O desempenho da economia, embora em nada comparável ao espetáculo do crescimento chinês, foi sensivelmente melhor do que nos anos anteriores, milhões de brasileiros e brasileiras foram retirados da pobreza extrema, o Brasil conquistou prestígio e respeito internacional e chegou à posição de sexta maior economia no ranking mundial.
A burguesia não deixou de lucrar e os banqueiros, em especial, ganharam muita grana no período. Mas continuaram hostis à valorização dos salários e ascensão dos mais pobres.
Patrão dos patrões, os EUA não apreciaram o fim da diplomacia dos pés descalços e se empenharam numa empreitada golpista que compreendeu a espionagem contra Dilma, Petrobras e Odebrecht, as relações perigosas com a Lava Jato, o financiamento das manifestações golpistas (em 2013, 2014, 2015), culminando no impeachment da ex-presidenta.
O golpe de Estado de 2016 foi apoiado pelas mesmas forças sociais que sustentaram a quartelada de 1964: a burguesia, os latifundiários, os EUA. Foi também, em sua essência classista, um golpe do capital contra o trabalho, focado na destruição do Direito do Trabalho, arrocho dos salários, precarização do emprego, liquidação das empresas públicas, interrupção e reversão das políticas afirmativas e de valorização do salário mínimo, assim como o vergonhoso resgate de uma diplomacia servil aos EUA.
Um saldo desastroso
O saldo do golpe, que foi coroado com a eleição de Bolsonaro em 2018, é calamitoso. Entre 2011 e 2020, o Brasil registrou outra década perdida, com queda acumulada de 5,5% da renda per capita. A emergência da pandemia, abordada com singular negligência, negacionismo e irresponsabilidade pelo governo neofascista, agravou o quadro.
A fome voltou a frequentar os lares de milhões de famílias pertencentes à classe trabalhadora. O desemprego vitima dezenas de milhões. Mais de 50% da população brasileira em idade ativa não tem ocupação, o que evidencia um desperdício colossal de forças produtivas.
O desastre não era inevitável e tem tudo a ver com as políticas de restauração neoliberal impostas desde o governo do usurpador Michel Temer, as reformas trabalhistas e da Previdência (esta última do seu sucessor), a terceirização irrestrita, a EC 95 (Teto dos Gastos), a PEC Emergencial, o enfraquecimento da Petrobras e outras empresas públicas e as privatizações. A contribuição da Lava Jato neste sentido também não foi pequena.
Notemos que o projeto neoliberal foi rejeitado pelo povo e derrotado nas urnas desde a primeira eleição de Lula em 2002. Para restaurá-lo, as classes dominantes recorreram ao golpe em 2016, assim como em 1964 usaram os generais para impedir a realização das Reformas de Base de João Goulart.
Os resultados concretos das políticas neoliberais, em contradição com as promessas de seus promotores, mostram que elas seguem na contramão dos interesses nacionais e da sociedade de bem estar social consagrada na Constituição. Longe de promover o crescimento das forças produtivas, o caminho imposto pelas classes dominantes conduz à degradação e ao empobrecimento da nação.
A luta das forças democráticas e progressistas por um projeto de desenvolvimento nacional voltado para a satisfação das necessidades e anseios do povo, com proeminente protagonismo do Estado prossegue, ganha corpo e mais cedo ou mais tarde será vitoriosa.
A economia brasileira não está condenada aos voos de galinha, precisa e pode voltar a crescer a taxas mais robustas e de forma sustentável. Uma mudança radical no caráter da política econômica é uma pré-condição para alcançar este objetivo. Os fatos sugerem que só governos orientados para a satisfação das necessidades e demandas populares lograrão tirar o Brasil do pântano em que foi precipitado pelos golpes de Estado de 1964 e 2016.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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