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    Pepe Escobar

    Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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    Os pashtuns sobreviverão a todos os impérios, mas serão eles capazes de sustentar um Afeganistão centralizado?

    "'Um império dentro de um império', os pashtuns são essenciais para a compreensão das complexidades do Afeganistão como estado-nação nos dias de hoje. O que é o 'universo pashtun' e por que eles sempre irão sobreviver àqueles que tentam governá-los?", escreve Pepe Escobar

    (Foto: REUTERS/Abdul Khaliq Achakzai)

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    Por Pepe Escobar, no The Cradle

    Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

    Era fatal que acontecesse: a remixagem do momento Saigon no aeroporto de Cabul e do estarrecedor retorno do Emirado Islâmico do Afeganistão, liderado pelos pashtuns, desencadeou por todo o Ocidente uma avalanche de orientalismo barato.

    O Afeganistão inteiro é agora 'ameaçado' pelo retorno dos 'bárbaros'. 

    Mais uma vez. as mulheres afegãs 'precisam ser protegidas', todos os afegãos 'têm que ser socorridos', os 'terroristas irão se reconstruir' e o Afeganistão talvez até mesmo tenha que ser re-invadido em nome da 'civilização'. Tudo por causa daqueles bárbaros e selvagens das tribos pashtun.

    As patologias imperialistas não morrem nunca. 'Bárbaro' vem do grego barbaros - pessoas que não sabiam falar grego ou falavam de forma errada.

    Ao se defrontar com os sofisticados persas, o conceito de bárbaro evoluiu. E então os romanos lhe deram seus contornos finais, incluindo gente que não falava nem grego nem latim, os que dominavam habilidades militares, eram ferozes e cruéis com seus inimigos ou vinham de uma cultura não greco-romana.  

    Tudo isso acabou por se amalgamar em um tóxico construto ocidental usado durante séculos, a suprema denominação pejorativa  para um Outro bélico: rude, incivilizado, rural, não-urbano, dado a violência e crueldade, talvez não completamente selvagem, mas quase.  

    A China Imperial, ao contrário, sempre se referia às diversas tribos e povos da Eurásia Central como bélicos, civilizados, urbanos, nômades, agrários, mas nunca como bárbaros.

    O Afeganistão pashtun é um universo muito mais sofisticado que o reducionismo vigente, que evoca uma economia rural de subsistência,  uma arquitetura de tijolos de barro, caravanas nômades, burcas e homens barbudos calçando sandálias e brandindo kalashnikovs.

    Então, como tributo ao grande antropólogo social norueguês Fredrik Barth, já falecido, subvertamos o Orientalismo fazendo um  voo - orientalista! - em um tapete mágico às intrincadas  reviravoltas do mundo pashtun.

    É tudo Turco-Pérsia

    O Afeganistão pode ser visto como o sul da Ásia Central, como o oeste do Sul da Ásia e como o leste da Ásia Ocidental. 

    Permanece o fato de que o Afeganistão, historicamente, sempre foi um nó crucial da Turco-Pérsia - tanto em termos culturais como linguísticos e geográficos. A Turco-Pérsia se estende para o leste a partir da Anatólia e das montanhas Zagros, cobrindo o planalto iraniano até as planícies indianas. Essa região foi nada menos que o coração dos impérios persas.

    Os pashtuns têm uma etnogênese imensamente complexa. Há historiadores que identificam tribos pashtun no Afeganistão já em 500 A.C, no império aquemênida.

    Os pashtuns talvez descendam dos heftalitas que, por sinal, não são os hunos brancos da Ásia Central, como demonstrado pelo acadêmico Etienne da la Vaissière. Os heftalitas derrotaram o império sassânida no século V e ocuparam vastas regiões da Báctria e da Transoxiana.

    Mas os pashtuns talvez descendam também dos sacas - povos irânicos nômades da estepe eurasiana. O que, é claro, os colocaria como descendentes dos sogdianos e dos citas.  

    Heródoto escreveu que os persas chamavam os citas de saca, e mais tarde, Oswald Szemerenyi, em seu clássico de 1980 Four Old Iranian Ethnic Names: Scythian-Skudra-Sogdian-Saka, mostrou que saca era o nome persa para todos os citas. Uma forma mais antiga, sacla, sugere historicamente a conquista de toda a estepe pelos iranianos do norte - literalmente os citas.

    O que é certo é que os pashtuns têm múltiplas origens: afinal, eles são uma confederação tribal.

    Os pashtuns têm um talento para unir múltiplas linhagens (zai, em pashto, significa 'filho de') com dezenas de milhões de pessoas em uma genealogia única, chegando até seu - supostamente mítico - ancestral comum: Qais, contemporâneo do Profeta Maomé.
    Essas linhagens fundem-se em clãs maiores (khel, em pashto) e levam a confederações tribais, as mais importante sendo os durranes, os guilzais e os karlanres, que os britânicos chamavam de  patanes. Os patanes são os habitantes nativos das montanhas que se estendem ao longo do que agora é uma fronteira artificial entre o Afeganistão e o Paquistão. Só bem mais tarde eles se tornaram pashtuns, adotando sua língua e sua cultura.

    No século XI, a capital dos gaznavidas turcos situava-se naquilo que mais tarde se tornaria território dominado pelas tribos guilzais. Essa mistura é compreensível por porque o Afeganistão sempre foi a fronteira oriental dos Impérios Persa e, em seguida, Turco-Mongol.

    As grandes confederações de tribos nômades só vieram a surgir em inícios do século XIII, em oásis do sudoeste do deserto afegão, ou congregando camponeses das montanhas do leste. Essas confederações são uma série de grupos heterogêneos interligados por um código e um sistema de valores que estabeleciam suas relações sociais: o Pashtunwali.

    O Pashtunwali é o maior

    O Pashtunwali integrou um bom número de elementos da moral muçulmana, embora contradiga a Lei Sharia em muitos aspectos. O acadêmico francês X. de Planhol o descreveu sucintamente como "um conjunto de regras que molda os costumes (adat) e o caráter (khoui) em relação às exigências sociais (raouadj), definindo assim a identidade étnica (khouyouna)". O Pashtunwali regulamenta a honra individual e também um conjunto de sanções, entre as quais a morte ocupa papel de proeminência.   
    No mundo pashtun, tudo tem que ser decidido por uma jirga (assembleia). As assembleias acontecem em todos os níveis – em casa, na aldeia, no clã, na tribo, sempre que necessário. O número de participantes varia de uma dúzia a milhares. Assisti a algumas delas. É um exercício fascinante da democracia direta.

    Não há 'condutor'. Os resultados não vêm de eleições, mas de um consenso que surge naturalmente quando não há oposição a uma decisão. Os anciãos são muito mais influentes que os jovens. Foi assim que o Talibã decidiu sobre seu governo interino.

    Embora o código pashtun seja um dos mais meticulosos do planeta, o Islã deu ênfase a diversas questões morais, às vezes em contradição com o Pashtunwali. Tornando as coisas ainda mais complexas, há normas jurídicas impostas por uma nobreza hereditária que vêm desde os turco-mongóis. 

    A partir do século XI, o Afeganistão recebeu um fluxo de nômades turcos que antecedeu as conquistas mongóis do século XIII. Naquela época, praticamente toda a Báctria era turquicizada - com a exceção dos pashtuns.

    Balkh, a lendária capital da Báctria, que os maravilhados invasores árabes descreveram como a Mãe das Cidades, a satrapia mais rica do Império Persa, foi, durante milênios a principal cidade das planícies setentrionais do Afeganistão, localizada ao norte do Hindu Kush. Essas ondas de nômades de língua turca vinham do Turquestão, que incluía os canatos de Bucara e Samarcanda: eles se misturaram com a população persa local e o dari - que é o farsi (persa) com um sotaque diferente, continuou sendo a língua predominante. 

    Peshawar era uma história completamente diferente. Em termos históricos, Peshwar mantinha vínculos estreitos com Cabul por ter sido, durante séculos, sua capital de inverno (Cabul foi um reino hindu até meados do século XI). Os afegãos perderam Peshawar para os sikhs em 1834. Mais tarde, com a derrota dos sikhs, a cidade se tornou parte do Raj. 

    Peshawar é a Meca pashtun. As tribos pashtun que vivem nos vales montanhosos acima de Peshawar em nenhum momento, ao longo de sua história, responderam a um governo. Para eles, não há fronteiras nem carteiras de identidade: apenas seus rifles. 

    Uma característica pashtun importante é que eles sempre viveram basicamente às margens dos grandes impérios. Eles evoluíram com base em suas próprias normas e tiveram a  liberdade de construir seus próprio sistema de referência. E isso explica por que eles são tão independentes.

    Os pashtuns identificam dois tipos de terra: a yaghestan (a terra dos rebeldes) e a hokumat (a terra do governo). Pode haver graves diferenciações internas, mas a totalidade do corpo social pashtun se une quando se trata de enfrentar ameaças externas, o que explica o feroz espírito de luta contra qualquer invasor estrangeiro, seja ele britânico, soviético ou americano.

    Estamos então falando de uma extraordinária coesão social - com uma reação coordenada a acontecimentos externos. Não é de admirar que os pashtuns acreditem que as estruturas políticas desenvolvidas por eles sejam superiores. A história mostrou que sempre que as estruturas imperiais vizinhas começavam a enfraquecer, os pashtuns acabavam por forjar "seu próprio" estado.

    E não se esqueçam dos turco-mongóis 

    Entre os séculos XVI e XVII, o Afeganistão se viu espremido entre três impérios: os uzbeques do Sul da Ásia Central, os mughals da Índia e os safávidas iranianos. Os mughal e os safávidas lutavam por Herat e Kandahar. Os pashtuns preferiam os safávidas, embora estes fossem xiitas. O território afegão, uma extensão natural das montanhas e planaltos iranianos, facilitava a influência safávida.

    Foi assim até inícios do século XVIII, quando as tribos afegãs se rebelaram contra o poder safávida então em declínio. Uma entidade política independente surgiu em 1747 em torno da tribo durrane, e Ahmad Shah foi coroado rei dos afegãos em Kandahar, em uma loya jirga (grande assembleia).

    O primeiro estado afegão ao sul do Hindu Kush foi bastante homogêneo. Sua estrutura era essencialmente turco-persa, na verdade turco-mongol, muito mais que baseada na tradição tribal pashtun.

    Desde fins do século X, todos os grandes impérios, das fronteiras do Norte da Índia até a Transoxiana, o Iran e a Anatólia, foram fundados ou por turcos ou por mongóis. Alguns deles durariam séculos - como o dos turcos otomanos. O Afeganistão foi de fato governado por turco-mongóis por nada menos que 750 anos, até que os pashtuns formaram um estado em meados do século XVIII. 

    Mas foi apenas depois do Grande Jogo entre os impérios russo e britânico que um estado afegão foi definitivamente instaurado. O Afeganistão do século XX era configurado como um estado tampão entre a Ásia Central russa e o Raj. Os britânicos precisavam bloquear o acesso à estrada para a Índia e ao Mar de Oman aos russos, que se aproximavam cada vez mais, depois de estabelecerem um protetorado em Bucara, em 1873. 

    Traçar as fronteiras russo-afegã e sino-afegã não foi problema. A questão era a fronteira com o Raj ao longo da linha Durand de 1893, que dividia o território de inúmeras tribos pashtun para que o Império Britânico pudesse controlar os principais pontos de acesso ao subcontinente indiano, o passo Khyber e o corredor Quetta. O traçado definitivo da Linha Durand só ocorreu em 1921. Ela divide em duas partes as terras pashtun - e jamais foi nem será reconhecida no Afeganistão como uma fronteira real. 

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    Então, enquanto o primeiro estado afegão tinha uma forte maioria pashtun, o segundo foi uma invenção colonial trazendo um complexo mosaico étnico. Antes da incursão soviética de 1979 e a jihad dos anos 1980, os pashtuns representavam entre 40 e 55% do total, 35 a 45% eram de grupos étnicos de língua persa e de 10 a 15% de grupos étnicos de língua turca. Esse quadro não mudou muito desde então. 

    O criador do Afeganistão moderno, o "Emir de Ferro" Abd-ur-Rahman, de fato 'pashtunizou' o Turquestão do Norte, transplantando populações pashtuns sedentárias do sul das confederações tribais durrane e guilzai e incentivando os nômades a migrarem.  

    E essa é uma das razões de a composição étnica do Afeganistão ser extremamente complicada, especialmente no oeste e no norte. Todos estão sempre em movimento perpétuo – inclusive as alianças (o que beneficiou o Talibã no vertiginoso avanço que precedeu a tomada de Cabul em 15 de agosto). 

    O que é imutável é que por toda uma nação estruturalmente instável, os pashtuns se veem como o topo da pilha  - e os "donos" do estado afegão. Entretanto, sua perpétua rivalidade intra-étnica  sempre ganha da solidariedade comunitária. Há sempre um forte embate entre os durranes – que de fato vêm dominando o estado desde o século XVIII - e outros grupos pashtun, principalmente os guilzais. Os guilzais são de espírito mais igualitário e não aceitam a hegemonia durrane, que eles veem como apenas mais manipuladores. 

    Mullah Omar, por exemplo, é guilzai. Mas o ex-presidente afegão Hamid Karzai é de descendência sadozai durrane, uma linhagem impecável, e ele mais tarde herdou a liderança do sub-clã popalzai.

    A elite durrane apoiou Karzai em fins de 2001 porque o via como a volta de seu grupo ao poder após o interregno do Partido Popular Democrático do Afeganistão (PPDA) socialista, da guerra civil e do Talibã. As demais tribos eram profundamente desorganizadas e incapazes de chegar a acordos.  A única outra opção possível seria Massoud, o Tajique, um verdadeiro nacionalista e respeitado até mesmo pelos pashtuns. Mas ele foi assassinado em 9 de setembro de 2001. 

    Abaixo o estado-nação 

    Os pashtuns têm uma aversão natural ao conceito westfaliano de estado-nação. Afinal de contas, eles se veem como um império dentro de um império. O poder centralizado geralmente tenta neutralizá-los pelo suborno, construído como um sistema de governo (esse foi o modus operandi durante os anos Karzai).

    A vida política afegã, na prática, é movida por facções: as sub-tribos, as coalizões islâmicas (que o Talibã de fato forjou para voltar ao poder) e grupos regionais, geralmente liderados por chefes guerreiros desde a jihad dos anos 1980. Acrescente-se a isso o infindável conflito religioso entre o sunismo dominante, o xiismo dos hazaras e o ismaelismo dos tajiques do Pamir.

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    No Afeganistão, o Islã é tanto ideologia (a constituição de 2004 reconhece uma República Islâmica do Afeganistão) quanto religião. Ele é a pedra angular da identidade afegã, pashtun ou não-pashtun. Todos os membros de uma tribo aderem de todo o coração ao Islã, mesmo que haja diferenças gritantes entre a Sharia e o Pashtunwali. Os afegãos como um todo podem ser quintessencialmente definidos como muçulmanos natos.

    O Talibã 'histórico' da década de 1990 – que hoje representa a maioria do governo interino - é composto de pashtuns tribais que falam pashto e assim afirmam sua identidade, o que é mais importante do que enfatizar seu pertencimento a uma tribo específica. O que é inabalável para esses homens saídos do conservadorismo rural é sua atitude de suspeita em relação às cidades – especialmente Cabul e seus modernistas – e o complexo de superioridade pashtun em relação aos demais grupos étnicos.

    Mesmo que os anos Karsai de ocupação pela OTAN tenham sido um desastre, o Talibã esteve em crise e em desorganização interna a maior parte desse tempo. Sua ideologia pode ser acusada de ser mais paquistanesa que afegã: afinal o Talibã foi um movimento nascido nas madrassas paquistanesas, e durante todos esses anos sua liderança esteve sediada no Baloquistão.

    O Talibã 2.0 talvez sugira que eles estejam se aventurando para além da identidade tribal, e a perene confrontação durrane–guilzai venha sendo empurrada para o fundo da cena. Mas as acerbas negociações para a formação do governo provisório parecem apontar em outra direção, opondo os 'moderados' de Doha, alguns deles durrane e outros guilzai, aos haquanos 'guerreiros', que são karlanri.

    No Afeganistão, antes das horrendas quatro décadas de guerra, o centro da ordem política rural girava em torno dos cãs proprietários de terras. Eles, em geral, eram aliados do estado. Mas então, começando com a jihad dos anos 1980, essa velha elite foi esmagada por jovens e aventureiros comandantes militares, que rapidamente construíram suas próprias bases políticas. Essa nova geração, que lutou frontalmente contra a OTAN, hoje espera ter um futuro nesse novo acordo de Cabul. No que se refere à construção de um estado, essa negociação será extremamente complexa.

    Agora a questão crucial, portanto, é como a velha cepa pashtun, tendo apreendido as lições de sua tenebrosa experiência de governo em 1996-2001, será capaz de contornar a fraqueza inerente a todos os governos centrais afegãos. O sistema tribal periférico fatalmente continuará muito forte, com territórios quase autônomos controlados por chefes guerreiros que não são chefes tribais, mas que competem com estes pelo poder regional e pelas fontes de receita que deveriam estar alimentando os cofres públicos.

    Este é o desafio supremo para esses guerreiros pashtun: forjar um sistema islâmico onde o poder central consiga se sustentar. A alternativa sinistra, parafraseando Yeats, será o desencadear da mera anarquia sobre o mundo afegão. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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