Os povos originários e a última chance
É uma pena que os “civilizados” de hoje insistam em não os escutar
Os sinais que a humanidade caminha para um triste fim estão por toda a parte, sobretudo dos que vêm de sua nefasta relação com a natureza. O espírito de destruição é uma marca do homem aliado à sua capacidade única de realizar duas práticas só a si concernentes, a crueldade e a tortura, como bem lembrou José Saramago em uma de suas muitas entrevistas.
Olhando pelo retrovisor da história, existem três momentos em que “(...) esse bicho da terra tão pequeno”, como bem definiu Camões, outro ilustre lusitano, teve a oportunidade de mudar o rumo da prosa e melhorar sua relação com o outro e com a mãe terra. Duas pertencem ao território do mito. A primeira com a personagem Noé, que teria vivido novecentos e cinquenta anos segundo a forma de marcar a “passagem das horas” no livro do Genesis. É tempo para dedéu! Insatisfeito com o destino de suas crias depois do fracasso do casal original, o criador deu uma nova chance a seus descendentes. Para isso, fez com que a morada do homem, que estava prenhe de “corrupção e violência”, recebesse uma chuvarada por quarenta dias e quarenta noites. Na época do Dilúvio, Noé estaria com seiscentos anos.Ele teve a incumbência de reunir os seus chegados e um casal de cada espécie de bicho. Findo o aguaceiro, pôde descer da arca construída para tal fim. Uma obra com requintes de engenharia para suportar tanta água céu abaixo. O problema é que Noé era um patriarca e seus herdeiros mantiveram a organização da família pautada na submissão da mulher. Em termos de legitimação desse relato, fica-se com a seguinte dúvida: o que ele tem que o torne diferente da Macondo de Gabriel García Márquez, no romance Cem anos de solidão, cidade onde choveu “durante quatro anos, onze meses e dois dias”?
A segunda chance deu-se durante a vida, paixão e morte de Jesus. Para além dos efeitos especiais que envolveram curas, multiplicações, ressurreições e andanças sobre águas, ele deixou meia dúzia de frases revolucionárias que, seguidas ao pé da letra, tornariam possível a existência do homem nesse vale cheio de lágrimas: “Atire a primeira pedra...”, “Amar o outro como a si mesmo”, “Dai a César o que é de César...”. O problema é que, naquele tempo, Jesus encontrou a todo vapor a ordenação chamada Estado, a solidificar a divisão entre ricos (protegidos) e pobres (mão de obra para a sustentação do poder). Deu no que deu: crucificação, suicídio, negação e fuga de seus poucos seguidores.
A última oportunidade surgiu quando o processo de expansão econômica, etiqueta do colonialismo representada pelas nações mais ricas que, sob o manto da aventura marítima, encontrou formas sociais destoantes das existentes no mundo europeu. No caso brasileiro, a perspectiva genocida e predatória teria sido evitada caso se cumprisse o desejo de Oswald de Andrade nos versos curtos e irônicos de “Erro de português”(1927): “Quando o português chegou/Debaixo duma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena!/ Fosse uma manhã de sol/ O índio tinha despido/ O português”. Ao invés de ver nos povos originários uma fonte para revisar seus valores calcados no patriarcalismo, no patrimonialismo e na acumulação, os colonizadores optaram pela dicotomia civilizados x selvagens, opondo-se a estes com o poder das armas e o beneplácito do catolicismo.
Incompreensível, portanto, aos seus olhos, que não houvesse alinhamento, por exemplo, no hoje discutido conceito de gênero: o homem indígena, no espaço doméstico, envolto em atividades “femininas” como fiar e tecer enquanto a mulher caçava e pescava; a prática sexual entre indivíduos do mesmo sexo em algumas tribos como os Tupinambá, inclusive com casamento, desde que indivíduos de clãs diferentes como acontece entre os Ticuna; a relação com a natureza fora da trilogia dominação, exploração e acúmulo. Sem contar as “amazonas”, mulheres guerreiras e sem maridos, registradas em páginas do padre dominicano Gaspar de Carvajal. “Preguiça”, “luxúria”, “barbárie”, “pecado”, “demônio” foram os conceitos aplicados a quem tem outros modos de viver em sociedade e de tratar a natureza. Apesar de quatro séculos de extermínio e aculturação ainda há núcleos indígenas resilientes. É uma pena que os “civilizados” de hoje insistam em não os escutar.
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