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    Rogério Puerta

    Engenheiro agrônomo, atuou por doze anos na Amazônia brasileira em projetos socioambientais. Atuou em assentamentos da reforma agrária no Distrito Federal por dez anos e atualmente vive em São Paulo imerso em paixões inadiáveis: música e literatura. Escreveu diversos livros

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    Papai Noel cospe nos pobres

    Hoje menos, mas o bom velhinho já foi símbolo de ostentação

    Ação social na periferia de São Paulo (Foto: Eudes Soares)

    "[...] Papai Noel velho batuta / Rejeita os miseráveis / Eu quero matá-lo / Aquele porco capitalista / Presenteia os ricos / Cospe nos pobres [...]". Música e letra da banda punk Garotos Podres, oriunda dos idos dos anos 80, região proletária da grande São Paulo, autoria de Mao, um estudioso da revolução chinesa, dentre outras. Mao do galego, Mao Júnior. Embora pareça, não é alcunha derivada de Mao Tsé-Tung.

    Incômoda e direta tal qual toda banda punk que se preze, ademais em pleno apagar de luzes da ditadura militar brasileira, a letra da música era cantada, em parte, com sonoridade similar e sentido ainda mais ofensivo. Muitos gritavam "Papai Noel filho da puta". Velho batuta soa similar.

    Anos 80 em São Paulo, a rebeldia de um movimento punk no ápice, a revolta das juventudes que ousariam mais e mais, ainda um novo ímpeto a impulsioná-las devido à revolução cultural propiciada pelo festival Rock in Rio I, de janeiro de 1985.

    Por hábito a expressão pejorativa porco capitalista, muitos a citam. Mais adequado seriam os tubarões capitalistas, os monstros vorazes animalescos que devoram cegamente competidores inteiros, os abocanham sem piedade, os engolem. A lei universal de oferta e procura, o forte subjugando e se nutrindo de qualquer fraco que esteja logo ao seu lado.

    No entanto adequado é o suíno quando porcos baseados na obra-prima de George Orwell, A Revolução dos Bichos, em que são eles mesmos, os porcos, os quais dominam as outras espécies de bichos de uma fazenda metafórica, com cavalo, vaca, galinha, todos eles falantes e pensantes.

    Mais perspicazes os porcos de tal fazenda, numa provável alusão do autor do livro aos esclerosados dirigentes comunistas da época. Na estória, são os porcos da fazenda que impõem um domínio segregacionista sobre o restante daquela localizada e metafórica comunidade animal rural.

    Mas por que o inocente e bon vivant Papai Noel foi tão odiado pelos jovens rebeldes brasileiros nos anos 80? Bon vivant já não é uma qualidade das melhores. Hoje em dia pode soar incoerente, uma ofensa gratuita, mas lá atrás de fato o que se via nos meios de comunicação eram papais noéis invariavelmente brancos, quase todos associados às famílias tradicionais conservadoras de razoável poder aquisitivo, o Natal uma época de gastanças, ostentações, consumismo. Quase não se via o Natal associado às pessoas miseráveis, o Noel sofrendo por subir sob sol escaldante ladeiras íngremes e por adentrar vielas de comunidades periféricas. Hoje felizmente isto mudou.

    Imagens valem mais do que mil palavras, quase sempre. Valerão bem mais do que as mil e quatrocentas palavras desta crônica, certamente. Comparar o contraste da imagem da capa e a contracapa do vinil "Mais Podres do que Nunca" da citada banda punk, impacta e choca, mas é real, nua e crua, bem sabemos, ainda mesmo no nosso tecnológico século XXI. Gente passando fome mundo afora, uma desigualdade e injustiça social gritantes.

    Aí provavelmente a ideia, o mote, a raiz da revolta jovem frente a um nosso mundo imoralmente injusto e não isonômico. Neste contexto entra um Papai Noel inventado e oportunista, de esbanjamentos e gastanças, hoje menos. Afinal, de consumismo em consumismo, data comercial mais prolífica do ano, o recém-eleito presidente do Brasil já disse taxativamente ao povo a respeito do dinheiro circulante na economia: "Comprem!".

    Atualmente, confiemos, há de fato algum avanço comportamental progressista. Veem-se mais mamães noéis, noéis negros, gente fantasiada se derretendo ao calor tropical e distribuindo presentes baratos à criançada mais carente e sedenta por mínimo afago nas periferias e rincões rurais nacionais. Um alento.

    Aos conservadores, uma blasfêmia ofender o Papai Noel. Você ouvia quando menino que o sujeito barbudo obeso nórdico tolerante à lactose chegado pelos céus em um trenó voador puxado por renas, em rota direta e sem interrupções desde a gélida Lapônia, você ouvia que Papai Noel era Deus, um ente imaculado de bondades e felicidades plenas. Papai Noel não esqueceria de nenhuma das criancinhas do mundo, só que não aparecia junto àquelas meio sujas e com a pequenina camiseta de Mickey puída e rasgada.

    Injusto negar a uma criança qualquer mínima possibilidade de afago, diversão, surpresa. São contumazes e inapropriados os comentários desarrazoados no sentido de demonstrarmos às crianças, sem preâmbulos, toda a crueza e aspereza da sociedade humana. Proibi-las um sorvete, um algodão-doce em domingos, pois são só açúcar refinado e gordura trans. Que diabos uma criança vai se importar com isto? Ao menos uma vez ou outra, que seja.

    Então pais e mães intelectuais vão querer explicar às crianças desde bem cedo, em detalhes, que Papai Noel é um símbolo, que o coelhinho da Páscoa não bota um ovo, dois ovos, três ovos pra mim. E dá-lhe Papai Noel não existe, dá-lhe vovó não virou estrelinha do céu límpido noturno depois de morrer. Coisas do tipo.

    O período de Natal, celebrações fartas com nozes europeias, damascos, bacalhau, somente comida sofisticada e cara, tal elaborado ritual anual talvez tenha mesmo algum mínimo motivo para atrair certas antipatias. Dentre elas, a solidariedade instantânea e descartável, hipócrita, a tentativa ingênua de se limpar a própria consciência de todas as maledicências, de todo o vilipêndio cometido intencionalmente durante um ano inteiro de estresses e egoísmos.

    Todo mundo em seu bairro conhece um Márcio da farmácia, algum sujeito meio egocêntrico, que se acha o máximo, muita gente fala que Márcio da farmácia é um santo, então santo ele se sente. A fachada de sua farmácia exibe em letras garrafais "Farmácia do Márcio". Não bastasse, o Márcio se inspirou em colega de profissão que adora aparecer em propagandas da tevê e que ousa oficializar o logotipo de sua rede nacional de ultrafarmácias com o próprio semblante bela e artisticamente reproduzido.

    Márcio da farmácia, todo o bairro sabe, no dia de Natal, impreterivelmente, religiosamente aleluia deus pai, promove um almoço servido na rua em frente à Farmácia do Márcio. Aleluia deus pai pois ultimamente foi muito comentado pelo pessoal do bairro, a comida melhorou, teve umas lascas de pernil com passas, até Coca-Cola autêntica teve, mas o Márcio agora passa a exigir que se reze sete pais nossos e sete aves marias antes do almoço filantrópico, pois sete é seu número de sorte e lhe trouxe fortuna no passado.

    A primeira entonação das rezas pelo povo na rua, frente à farmácia, soa muito bem. A sétima só mesmo o Márcio reza, com o microfone, e nem percebe que performa um solo, nem percebe o silêncio do povo em frente ao pequeno palco montado na calçada da rua.

    Ano passado inteiro Márcio passou preso preventivamente, não conseguiram provar nada, mas a rádio boca a boca da região crava a informação de que Márcio deu dez mil reais para a mãe da Julinha, para que ela não desse ouvidos à filha que nunca mais foi a mesma depois de reclamar para a mãe de uma ferida na virilha.

    No bairro pagam cem reais por dia mais a alimentação para quem se dispuser a vestir roupa de Papai Noel e passar de cinco da tarde as dez da noite sentado em trono de madeirite ao canto do lojão 1,99. Mês passado o fantasiado foi demitido, durou uma semana no cargo, saiu depois que um menino de cinco anos cuspiu sem querer um pedaço de bolo amorfo, massa gosmenta e úmida, bem na coxa do Papai Noel do lojão. O menino chorou alto por uns vinte minutos depois que Papai Noel apertou-lhe forte a orelha. Por sorte ninguém viu, mas desconfiou e denunciou.

    Papai Noel cuspia nos pobres, hoje bem menos, mas dizem que o Natal ainda é uma simbologia nitidamente associativa às comidas importadas extravagantes, belas criancinhas brancas limpinhas, luzes, felicidades, lares pudicos bem estruturados de famílias católicas conservadoras.

    Pouco importa o fato de um Jesus Cristo taxativamente não nascido aos vinte e cinco de dezembro. A data anual mais lucrativa aos comércios é, e sempre foi, uma celebração de aniversário, de renovação de intenções, uma cerimônia religiosa em geral mais exclusiva aos cristãos, que não são mais numerosos do que os outros religiosos somados mundo afora.

    Que venham mais noéis negros, mulheres, de chinelo e bermuda, que seja, noéis nas praias, em rios amazônicos, sem trenó, sem neve, intolerantes à lactose.

    Se todo o sofisticado cerimonial do Natal for um impeditivo ou dificultador, que estejam mais noéis presentes, de forma prática e funcional, calçando chinelo de dedo mesmo, mas que sobretudo distribuam a ideia mesma de Jesus Cristo, a atenção e altruísmo, o alívio aos mais miseráveis sem qualquer distinção.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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