Pedro Páramo
A quarta adaptação cinematográfica de Pedro Páramo se propôs a trazer uma visão fresca e imersiva deste clássico de Juan Rulfo
“Depois de Pedro Páramo não houve outro livro de Juan Rulfo. Ele foi, sim, o mais silencioso dos escritores latino-americanos. Um gigante que preferiu seguir a lição extrema que indica que quando não há nada que efetivamente valha a pena ser dito, vale mais o silêncio. O que ele havia dito antes já foi suficiente para permanecer valendo a pena para sempre. Em silêncio, como correspondente” - Eric Nepomuceno em seu prefácio de Pedro Páramo, Editora Record, 2008
A quarta adaptação cinematográfica de Pedro Páramo chega ao público pela Netflix, que, após as versões de 1967, 1977 e 1981, se propôs a trazer uma visão fresca e imersiva deste clássico de Juan Rulfo, publicado em 1955 e considerado uma das obras fundadoras do realismo mágico latino-americano. A produção, dirigida pelo renomado cineasta mexicano Rodrigo Prieto, estreou na plataforma em 6 de novembro e já conquistou os fãs do romance original, com seu cuidado em capturar a atmosfera mística e opressiva da vila de Comala. Prieto, amplamente reconhecido por seu trabalho premiado em filmes como Brokeback Mountain, Silence e The Irishman, faz sua estreia como diretor ao assumir o desafio de transpor para o cinema a complexidade e o lirismo da obra de Rulfo. Filmada em locações icônicas de San Luis Potosí, esta versão é um presente visual para o público e uma homenagem ao legado literário mexicano, trazendo à vida a desolação e o misticismo que caracterizam o mundo de Pedro Páramo.
Um país que “poderia ter sido” - A obra literária de Juan Rulfo, é um mergulho profundo nas fraturas da alma mexicana e nas cicatrizes deixadas pela Revolução Mexicana (1910-1920), que, embora tivesse como ideais a justiça social e econômica, o combate à opressão e a redistribuição de terras, acabou gerando desilusões, divisões e desigualdade. O professor Carlos Barbosa, afirma em seu brilhante livro A Revolução Mexicana (2010, p. 17 e 127) que “o século XX no México começa efetivamente com a Revolução Mexicana. Foi a primeira revolução com claro cunho social a acontecer na América Latina neste século” e “representou uma ruptura na história do país”.
Ambientada na fantasmagórica Comala, uma aldeia onde a presença dos mortos é tão real quanto a dos vivos, a narrativa se torna uma crítica silenciosa à promessa traída da revolução e as frustrações de um país que “poderia ter sido”. Comala, descrita como a “boca do inferno”, representa o destino sombrio de um país que, apesar dos sonhos e sacrifícios, não conseguiu se libertar das estruturas opressivas que sempre existiram. O México pós-revolucionário, que deveria ser o cenário de novas esperanças, tornou-se, na obra de Rulfo, um palco de amargura e solidão, onde até mesmo a natureza parece sufocar sob o peso da desesperança e do fracasso histórico.
O protagonista, Juan Preciado, chega a Comala em busca de seu pai, Pedro Páramo, figura tirânica e símbolo de uma elite rural que concentra o poder e explora os mais fracos. Durante essa jornada, ele se depara com personagens que são sombras de um passado doloroso, como Abundio, o caixeiro viajante que lhe diz: “quando chegarmos a Comala, o senhor vai ver o que é calor forte. Aquilo fica em cima das brasas da terra, bem na boca do inferno. Digo eu que muitos dos que morrem lá, quando chegam ao inferno voltam para buscar um cobertor”. Essa fala, carregada de ironia e desespero, resume o sofrimento de um povo condenado à miséria e ao desamparo, que não encontra alívio nem mesmo na morte. A alma dos personagens de Pedro Páramo está marcada pela frustração e pelo abandono, ecoando as condições reais do México pós-revolução, onde as expectativas de reformas agrárias e trabalhistas justas foram, em grande parte, frustradas.
Em Comala, as almas vagam atormentadas, presas a pecados que nunca poderão ser perdoados. O padre local, impotente e corrompido, é incapaz de lhes conceder a absolvição, e assim, condena-as a vagarem indefinidamente entre os vivos, presas em um estado de penitência sem fim. Essa impossibilidade de redenção se reflete nos sussurros dos mortos, vozes que ecoam pelas ruas e casas abandonadas de Comala, carregadas de arrependimentos, amores interrompidos e desejos sufocados. Esses sussurros se tornam a trilha sonora constante da cidade, um murmúrio de almas que perderam a esperança e agora vivem num estado perpétuo de lamúria.
A adaptação cinematográfica busca captar essa atmosfera sufocante e silenciosamente revoltada. A aridez das paisagens, o silêncio opressivo e a expressão resignada dos habitantes de Comala remetem ao sonho de uma nação que nunca se realizou plenamente. A revolução, que deveria trazer mudanças, deu lugar à perpetuação dos mesmos esquemas de exploração e desigualdade. No governo de Lázaro Cárdenas (1934-1940), houveram tentativas de implementar reformas e fazer justiça aos camponeses, mas os efeitos foram limitados, e o país continuou atolado em um ciclo de opressão e esperança frustrada.
Pedro Páramo, o homem que controlava Comala, é o retrato fiel da elite latifundiária que sobreviveu à revolução e continuou a subjugar os pobres, utilizando de todos os meios para preservar seu poder. Sua influência é tão profunda e devastadora que mesmo após sua morte, a cidade continua sob o domínio do medo e da morte, como se sua presença fosse um veneno que contaminou cada centímetro daquele lugar. Os habitantes de Comala são almas penadas, vagando entre a memória e o esquecimento, incapazes de encontrar paz e desfecho para suas dores.
Assim, Pedro Páramo não é apenas uma história de desolação, mas um poderoso testemunho da dor coletiva de um país que não pôde ver seus sonhos revolucionários realizados. Rulfo, através de uma linguagem poética e de uma narrativa fragmentada, transforma Comala em uma metáfora da própria condição mexicana: um espaço onde o passado persiste e o futuro é um sonho inatingível. Seus personagens, tanto na obra literária quanto na adaptação cinematográfica, carregam o peso de gerações que lutaram por uma vida melhor e se depararam com um destino cruel.
A solidão e desolação nas telas - A nova película traz à tela o universo de Juan Rulfo com uma sensibilidade visual marcante. Rodrigo Prieto, que é amplamente reconhecido por seu trabalho como diretor de fotografia, utiliza sua habilidade para criar uma experiência cinematográfica única, imersa no silêncio opressor e nas memórias assombradas do povoado de Comala. O filme, embora respeite o enredo do romance, foca na atmosfera de solidão e desolação, refletindo sobre a ânsia de mudança que nunca conseguiu se concretizar, como é representado na aridez das paisagens e nas figuras que parecem entrelaçadas com o além.
Com um elenco talentoso, o ator Tenoch Huerta traz à vida Juan Preciado, o jovem que segue em busca do pai, Pedro Páramo, interpretado por Manuel García-Rulfo. Huerta imerge no papel de um homem dividido entre a revelação de sua origem e o peso de uma jornada espiritual que revela os traumas de seu passado familiar. Por sua vez, García-Rulfo, como o enigmático e tirânico Pedro Páramo, consegue transmitir a complexidade do anti-herói rulfiano, ao mostrar a sua incapacidade de amar quase todos, exceto sua paixão de infância Susana San Juan, e as cicatrizes profundas de suas ações.
Além deles, personagens como Damiana Cisneros, vivida por Mayra Batalla, e Eduviges Dyada, interpretada por Dolores Heredia, são cruciais para a compreensão das figuras que ainda habitam Comala, entre o real e o sobrenatural. Esses personagens secundários são interpretados com profundidade emocional, o que acrescenta uma carga dramática adicional ao filme.
A direção de arte, conduzida por Eugenio Caballero, cria cenários que são um reflexo do vazio existencial dos personagens, enquanto a trilha sonora de Gustavo Santaolalla traz uma sonoridade fantasmagórica que se encaixa perfeitamente nas imagens desoladoras do filme.
A abordagem de Prieto não tenta replicar todos os detalhes do romance, mas busca criar uma leitura cinematográfica que foca no psicológico dos personagens e na dimensão espiritual das suas vivências. O uso de flashbacks e a intercalada entre o presente e o passado, fornecem uma imersão profunda na solidão e desolação, capturando a essência do realismo mágico presente na obra original de Rulfo. A ausência de uma linearidade clara, embora possa representar um desafio para espectadores não familiarizados com o livro, é essencial para transmitir as sutilezas da narrativa, e é conduzida com maestria.A película transforma Pedro Páramo em uma experiência sensorial e cinematográfica única, que reverencia a obra-prima de Rulfo e leva o público a uma viagem imersiva pelos fantasmas da memória e do tempo.
“Em silêncio como correspondente” - Eric Nepomuceno, renomado tradutor para a língua portuguesa de mestres da literatura latino-americana como Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges e Eduardo Galeano, encontrou em Juan Rulfo um lugar especial. Nepomuceno se refere a Rulfo como o “mais silencioso dos escritores latino-americanos,” um gigante que, ao contrário de tantos outros, não encheu o mundo de páginas, mas escolheu cada palavra com a precisão de quem entende o valor do silêncio.Rulfo, em sua curta e contida obra, deu um exemplo raro de economia narrativa, entregando ao mundo apenas duas obras-primas — Pedro Páramo e El Llano en Llamas — mas que ressoam como um eco profundo na literatura latino-americana. Nepomuceno vê, em Rulfo, um escritor que “preferiu seguir a lição extrema” de saber calar, de escrever apenas o essencial. Para ele, Rulfo é aquele que ensina que, em um mundo saturado de ruídos e palavras, talvez seja mais importante dizer apenas o que realmente importa, pois “quando não há nada que efetivamente valha a pena ser dito, vale mais o silêncio.”Esse silêncio que Nepomuceno enxerga em Rulfo não é vazio, mas é um silêncio que carrega todo o peso das paisagens desérticas do México, dos sonhos frustrados da Revolução Mexicana, das vidas que se desenrolam entre a esperança e o esquecimento. Em cada página, em cada linha de Pedro Páramo, sente-se a presença do não-dito, das histórias que nunca serão contadas, das vozes que vagam pelos corredores de Comala sem nunca encontrar paz. O silêncio de Rulfo, como sugere Nepomuceno, é quase uma filosofia, uma convicção de que o poder das palavras reside justamente no que elas deixam em suspenso — uma pausa, uma ausência que reverbera mais intensamente do que qualquer grito. “Em silêncio, como correspondente”.
Referências
- BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio. A Revolução Mexicana. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
- CONGRESSO DEL ESTADO DE JALISCO. La Revolución Mexicana. LVIII Legislatura, 2007.
- RULFO, Juan. Pedro Páramo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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