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    Emerson Barros de Aguiar

    Escritor, bioeticista e professor universitário

    12 artigos

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    Pisístrato, Lobsang Rampa e outras olds e news fakes

    Mentir pode ser a tática política mais velha da humanidade, mas as redes digitais a potencializaram, principalmente através da amplificação da desinformação

    (Foto: Divulgação)

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    O poeta gaúcho Mário Quintana disse que nada há que já não tenha sido antecipado por algum grego.

    O que não existia na Grécia Antiga eram as redes digitais, mas até mesmo o computador foi ensaiado pelos helenos, como o demonstram o mecanismo de Anticítera e o odômetro de Arquimedes. Contudo, a ausência de um ambiente virtual não inviabilizava o uso das fakenews do período clássico no âmbito da política e da estratégia.

    Sendo qualquer semelhança nenhuma coincidência, Pisístrato, um político ateniense do século VI a.C., simulou um ataque contra si mesmo para convencer os seus concidadãos a lhe concederem uma guarda pessoal, que ele usou depois para tomar o poder e estabelecer uma tirania.

    Se para chegar ao poder a extrema direita sempre foi capaz de tudo, começando pela demagogia até chegar aos campos de extermínios de opositores, o capital tampouco tem quaisquer escrúpulos quando se trata de fazer a moeda ingressar em seus cofres.

    Em meados do século XX, um atendente comercial de uma loja de instrumental cirúrgico criou um personagem chamado Tuesday Lobsang Rampa para assinar livros que promoviam a busca da espiritualidade oriental, tornando-se um grande sucesso editorial em todo mundo, mesmo diante do evidente desconhecimento do autor em relação às tradições e religiões do Tibet. Como no mercado, que se ufana de se “autorregular”, o que interessa é o jabá no bolso, os livros do suposto monge “Lobsang Rampa” se tornaram um êxito internacional, para horror dos tibetólogos e a indignação dos especialistas em esoterismo.

    Tuesday Lobsang Rampa era, na verdade, Cyril Henry Hoskin, que morava na periferia de Londres, jamais visitou o extremo oriente e nem falava qualquer frase de tibetano. Apesar disso, apresentava-se como um lama tibetano para dar mais credibilidade ao conteúdo de seus livros. Surpreendentemente, mesmo depois das notícias sobre as fantasias criadas por Hoskin, ainda houve quem o apoiasse incondicionalmente, ratificando a teoria de que ele era um autor iluminado e não um estelionatário da literatura. Seja como for, no caso das fraudes literárias, confirmadas ou não, o dano não costuma ser tão grande quanto nos episódios de engodos políticos. Mesmo os detratores de Hoskin reconhecem que, embora de uma maneira heterodoxa, ele contribuiu para o interesse pela, até então, quase desconhecida cultura tibetana. 

    No Brasil, houve um caso análogo, o de Neimar de Barros. Na década de 1970, um produtor de TV participou de um retiro religioso católico e resolveu se dedicar em tempo integral ao ofício de escritor. Os livros tornaram o seu autor o missionário de maior sucesso no país, numa época em que o catolicismo perfazia 91% da população brasileira. Em 1986, entretanto, o escritor de sucesso concedeu uma entrevista à revista Veja revelando que, na realidade, jamais tinha se tornado católico e que sua conversão foi uma estratégia ensaiada para se infiltrar na igreja, para o desalento de sua legião de fãs e seguidores.

    Se acrescentarmos aos ardis editoriais o cabedal de mentiras criadas por empresas e corporações para manipular a opinião pública cotidianamente, este texto se transformaria num almanaque. Um dos principais responsáveis pela formulação do conceito de “opinião pública”, Edward Bernays, o sobrinho de Freud, foi responsável por algumas das maiores manipulações em massa contemporâneas. Bernays esteve à frente da propaganda de guerra durante o Primeiro Conflito Mundial. Os industriais americanos enxergaram a grande oportunidade aberta pelo conflito para os seus negócios e necessitavam que o país apoiasse em massa o governo, em sua decisão de entrar numa guerra travada em outro continente. Bernays fez um trabalho tão bom que foi chamado depois para levar as mulheres ao consumo massivo de cigarros, ao transformar o produto nas “tochas da liberdade” que promoveriam a igualdade de gênero. Disfarçado de paladino feminista, Bernarys era apenas um agente a serviço da American Tabacco Company. O parente de Freud também sugeriu que as embalagens da marca Betty Crocker, que comercializava misturas prontas para bolo, indicassem às donas de casa a adição de um ovo à sua fórmula, para que elas se sentissem participando da preparação do produto final, numa providência que deslanchou as vendas do item.

    Mentir pode ser a tática comercial e política mais velha da humanidade, mas a internet e as redes digitais a renovaram e potencializaram, principalmente através da amplificação da desinformação e da simulação de realidades alternativas. 

    Devido a sua velocidade, a internet permite que notícias falsas, boatos e teorias da conspiração se difundam rapidamente, tornando-se virais em poucas de horas. Plataformas de redes sociais como Facebook, Twitter e WhatsApp amplificam esse fenômeno, devido aos seus algoritmos, que priorizam instantaneamente conteúdos engajadores, independentemente da verificação da sua veracidade. O que interessa para o grande negócio digital é o engajamento, mesmo que ele venha da promoção da ignorância, do ódio, do preconceito, da intolerância e do crime. Quanto maior a emoção e a polêmica, mais visibilidade, o que, no fim das contas, significa mais dinheiro.

    Através das bolhas de desinformação produzidas nas redes digitais, usuários compartilham conteúdos que reforçam as suas crenças, retroalimentam seu fanatismo e criam realidades alternativas, onde mentiras ou fatos distorcidos são encarados como inquestionáveis.

    Tecnologias como deepfakes permitem a produção de vídeos e áudios falsos quase indiferenciáveis da realidade, o que dificulta ainda mais a distinção entre verdade e mentira, sobretudo por parte de um público desavisado e despreparado. Mensagens manipuladas dessa forma podem ser direcionadas, através de técnicas de microtargeting, a grupos específicos com base em seus interesses, comportamentos e dados pessoais, para controlá-los, o que é realizado não apenas por facções políticas, mas também por interesses corporativos que lançam mão da segmentação para disseminar propaganda enganosa, moldar percepções sociais e influenciar decisões de compra.As campanhas desinformativas da extrema direita, que tem como base uma retórica “antissistema”, incluem a propagação massiva de informações falsas para enfraquecer a confiança pública nas instituições e na mídia convencional. A tática consiste em desestabilizar para ganhar prestígio e poder através do estabelecimento do caos e da incerteza, o que pode ser realizado, por exemplo, através de bots automatizados, usados para disseminar desinformação em grande escala, divulgar denúncias infundadas e espalhar versões distorcidas, criando uma falsa impressão de oposição massiva contra uma determinada instituição ou autoridade.Uma das estratégias digitais mais utilizadas atualmente, o astroturfing, cria campanhas a partir de movimentos populares aparentemente legítimos, mas que, na verdade, são meras simulações feitas por determinados grupos com interesses específicos. A invenção de falsidades que parecem totalmente reais se transformou em algo que pode ser produzido em série.

    Os meios digitais hoje disponíveis são abundantes e diversos, e há quem, cinicamente, não se importe com a estipulação de quaisquer limites para eles, alegando que são apenas mais um instrumento para a obtenção de poder e dinheiro. Sendo assim, já podemos renunciar à civilização e voltar às cavernas. Se a opção for a barbárie e o mergulho de cabeça num abismo sem fundo, entre a clava física e a digital a diferença é pouca. Quando tudo se resume à imposição da vontade do mais forte, ninguém precisa mais se constranger por causa de coisas como dignidade humana, respeito à vida, ética ou leis...


    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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