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Marilza De Melo Foucher

Economista e jornalista. Colabora com o Brasil 247 e outros jornais no Brasil, é colaboradora e blogueira do Mediapart em Paris

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Poder local com espaço ideal de exercício da cidadania

Como fazer funcionar na prática a democracia representativa e a democracia participativa? Essa é a questão.

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Talvez seja exagerado afirmar que a esquerda, na sua maioria, ainda não entendeu a importância do poder local no atual contexto de necessidade de fortalecimento da democracia. Não seria esse o território onde a cidadania política pode ser exercida, constituindo o lugar onde se vive o quotidiano da política?

 Penso que é necessário resgatar o paradigma do poder local no arcabouço jurídico e democrático brasileiro que foi estabelecido pela Constituição de 1988. Na Carta Magna está formulado que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente nas formas previstas em lei. O Artigo 5º da Constituição Federal de 1988 determina, com bastante clareza, o exercício dos direitos sociais e individuais, assim como a liberdade dos indivíduos, a segurança e o bem-estar, além do direito de expressão e vida digna com igualdade e justiça. 

A participação política se encontra no coração do ideal democrático 

Mesmo que a participação cidadã seja limitada ela é assegurada pela Constituição. Por esse motivo, na próxima campanha municipal seria interessante realizar uma capacitação política com vereadores, prefeitos e jovens militantes, incluindo reflexões sobre premissas de certos artigos da Constituição de 1988, a exemplo do artigo 5° e o artigo 29. 

A capacitação seria importante para que futuros representantes pudessem se dar conta de que dispomos de um aparato jurídico que permite, pelo menos no âmbito municipal, revigorar a democracia participativa. Vale relembrar as experiências que levaram o PT no passado a conquistar diversas municipalidades, algumas emblemáticas com a promoção do orçamento participativo, que se tornou um belo instrumento de controle social previsto nos incisos XII e XIII do artigo 29. 

A cidadania política confere aos indivíduos, não somente direitos e deveres. Ela também revigora e desmistifica o poder político como único polo de tomada de decisão. O poder é, e deve continuar a ser, uma ferramenta para servir ao povo.  Deve, portanto, ser controlado por ele e para ele. A participação social põe o poder em sua função reguladora, tendo em vista que a democracia representativa não tem soberania absoluta dos representantes. 

Mas eu perguntaria:  Por que a democracia representativa no Brasil vai tão mal? A culpa é somente dos políticos? Eu penso que não, porque vejo a política inseparável da cidadania. Todos deveriam agir voltados para o bem-estar coletivo. Eleger alguém quer dizer exercer o poder de escolher os ocupantes temporários do governo. Não devemos esquecer que a democracia é fundada na noção dos direitos e deveres entre governados e governantes, o que supõe a vigilância do poder político. 

Para que a democracia seja plena temos que ter uma pluralidade de ideias que se confrontam com civilidade, evitando que a violência destrua a racionalidade de agir como ser humano. Na democracia, o jogo dos antagonismos deve ser produtivo e salutar, pois, nessa forma de regime não existe uma verdade absoluta, mas sim verdades em disputa. 

Quando o PT nasceu, muitos de minha geração que participaram de sua fundação assistiram o debate contraditório no seio de diferentes tendências, contribuindo para entender as ambivalências e poder agir em consequência. Esta seria uma prática política impensável em partidos tradicionais, com filiados recentemente criados, não dotados de filosofia política ou ideologia. Aliás, o termo ideologia passou a ser um palavrão, assim como a palavra comunista que virou uma ofensa dirigida aos representantes e seguidores associados ao Partido dos Trabalhadores. Lamentavelmente, o analfabetismo político se desenvolveu assustadoramente no Brasil.

Resgatar a política no espaço do poder local

Precisamos resgatar urgentemente o sentido nobre da política, sendo ela uma atividade social na busca de curar os males da sociedade, incluindo propostas de cidadãos e cidadãs nas condições de atores e não expectadores. Não podemos reduzir a política somente ao campo institucional, ao jogo politiqueiro, aos partidos políticos na disputa de poder. A cultura da “Casa Grande e Senzala”, com suas famílias oligárquicas, privatizou há séculos a política em benefícios pessoais. Infelizmente, ela apenas se modernizou, mas não se modificou ao se associar com o quarto poder, visando influir nas eleições. É importante lembrar que os meios de comunicação sempre estiveram nas mãos de poucas famílias que hoje estão bem representadas no Congresso brasileiro.

A constituição da república e os fundamentos da cidadania atropelados 

O período post constituição de 1988 no Brasil foi muito rico na reorganização da sociedade civil brasileira. O PT surgiu nessa efervescência de participação política, assumindo o governo das primeiras municipalidades que serviram de laboratórios políticos na aplicação dos princípios de construção da cidadania.

 Ao galgar os outros níveis de poder estadual e federal percebeu-se que as reformas estruturais, tão necessárias ao País, no cumprimento dos princípios da Constituição, dificilmente poderiam ser realizados.  Ficou claro que o sistema partidário brasileiro não era, e ainda não é, compatível com a Nova República democrática brasileira. 

        Ressalte-se que muitos partidos foram implantados no período de crise da ditadura e de transição para a democracia, multiplicando-se sem fundamentos ideológicos. Infelizmente, nenhum governo pós-ditadura pôde elaborar um projeto de reforma política, muitas vezes por falta de maioria e outras vezes por falta de vontade política. Existe uma pulverização do sistema partidário no Brasil que dificulta a formação de maiorias, tanto nas assembleias estaduais como no Congresso Federal. Hoje temos aberrações no âmbito da representação que permitem desvios republicanos. 

Não é possível esquecer que uma constituição, desde a antiguidade, reflete sua origem no sistema social do qual deriva. Assim, mesmo que as garantias sociais estejam escritas na Constituição brasileira de 1988, garantindo o acesso a todos os direitos, com o exercício da cidadania plena para todos, na realidade seu alcance é limitado para a maioria da população. Não precisamos aprofundar este diagnóstico para perceber que o controle social dos poderes da República sempre esteve nas mãos das elites. 

O único presidente não oriundo das elites foi o Luís Inacio Lula da Silva, e observem o comportamento das elites com relação às políticas de seus governos voltadas para a inclusão social e diminuição das desigualdades. Note-se que na medida em que a desigualdade social se alastra diminui a motivação das pessoas para lutar por mudanças. A chegada de um brasileiro de origem pobre ao poder chegou a ser tolerada, até o momento que os invisíveis passaram a querer ser sujeitos e a exigir reformas estruturais, só possíveis a longo prazo.

30 anos de constituição cidadã e luta permanente para consolidar a democracia inclusiva

Vimos como a “Elite do atraso”, assim intitulada no livro de Jessé de Souza, (2017) tentou encerrar o ciclo da democracia inclusiva, através de uma vasta campanha promovida pelos meios de comunicações e redes sociais, tentando forjar uma democracia de opinião, com capacidade de influenciar no processo eleitoral. Por esta razão, não podemos isentar a chamada grande mídia brasileira, pelo avanço da extrema direita e de sua legitimação. O comportamento dos donos dos meios de comunicação, nas últimas décadas da democratização brasileira, é muito decepcionante. A “mídia brasileira de negócios” fez e faz uso de uma prática deliberada para seduzir os leitores/eleitores, ao ocultar e fragmentar os fatos, de modo a desfazer o mundo e recriá-lo à sua maneira. Inventou os famosos “buzzs” com o objetivo de criar um ruído entre os leitores e deformar a realidade, ou ocultá-la. Isso sem contar com uso e reprodução de fake-news que colaboraram para construir o golpe contra a presidente Dilma Rousself, incluindo a prisão de Lula por quase 2 anos!

Não saberemos quando essa mídia conservadora vai entender o papel nefasto que teve no empobrecimento intelectual, cimentando o caminho para ignorância chegar na cimeira dos poderes! 

Uma camada da população pobre vai ficar à mercê dos mercenários da fé que minaram as bases da república democrática. Esta deveria garantir a convivência fraterna no lugar do ódio de classes que afastou os pobres da crença de que a democracia iria permitir uma ascensão social tal como foi alcançada nos governos anteriores de Lula. 

O paradoxo é que hoje os proprietários dos meios de comunicações, incluindo os pastores fundamentalistas defendem a liberdade de expressão e não questionam a concentração de seu poder. Para eles a liberdade de expressão deve ficar confinada ao espaço que ocupam. São opositores ferrenhos da democratização e da pluralidade dos meios de comunicação no Brasil. 

As duas últimas campanhas presidenciais disputadas pelos candidatos petistas para a presidência foram de grande violência verbal e nunca se viu tanto racismo, tanta discriminação, tanto ódio na boca e nos escritos de certos políticos e jornalistas. Este tipo de politicagem é perverso para a democracia e nada acrescenta à educação do povo brasileiro. A grande Nação Brasileira merece que o jornalismo seja praticado dentro do rigor intelectual necessário.

Felizmente o Bolsonaro não conseguiu se reeleger e não foi possível criar uma teocracia fascista no Brasil. Entretanto, o germe do fascismo mesclado de fundamentalismo religioso frutificou e tem sua representação no senado e na câmara federal. Durante quatro anos de mandato do inelegível (Bolsonaro), seu governo conseguiu colocar a inteligência brasileira no esgoto e fazer o ódio emergir através de fake-news nas redes sociais, muitas vezes replicadas na mídia conservadora.

      Os bolsonaristas tentaram organizar um golpe contra a democracia que falhou. Entretanto, estão bem estruturados e já demonstraram possuir forças de mobilização e muito dinheiro para alimentar gabinetes do ódio que continuam atuando, apesar de todos os processos judiciários.

O tipo de fascismo que se desenvolveu no Brasil e que segue presente busca uma só verdade, seu rebanho age sem contestar e os jargões são repetidos em eco, sem reflexão sobre os significados que portam. No entanto, os adeptos do fascismo ainda representam uma ameaça para a frágil democracia brasileira. 

Por todas essas razões expostas neste artigo, a militância que levou Lula ao poder, os representantes da sociedade civil que ajudaram na implementação dos fundamentos da cidadania, na constituição de 1988, devem investir nesta campanha para eleger prefeitos e vereadores. A minha geração deve transmitir às novas gerações a necessidade de resgatar a cidadania presente na Constituição e colocar em prática seus preceitos nas municipalidades. 

Chegou a hora de os intelectuais presentes em diferentes redes sociais e que vivem em diferentes municípios saírem de suas bolhas virtuais para ajudar os futuros candidatos a entender a importância fundamental dessas eleições. O engajamento no terreno da ação é urgente. É preciso que organizem palestras para explicar as funções do município, para que todos (as, es) entendam o funcionamento do orçamento municipal, a formação dos fundos públicos; o papel do prefeito e dos vereadores, o funcionamento dos conselhos. 

Como fazer funcionar na prática a democracia representativa e a democracia participativa? Essa é a questão. 

Basta reler a Constituição que estabelece alguns princípios os quais se aplicados realizam um casamento ideal entre a democracia representativa e a democracia participativa.Faço um apelo para que os cientistas políticos que estão nos bancos acadêmicos e que já foram militantes levem aos futuros prefeitos, vices e vereadores uma visão completa da capacidade produtiva municipal. Reflitam coletivamente sobre como dinamizar a economia, levando em conta as questões de ordem ambiental; discutam sobre como dinamizar o potencial turístico, valorizando as culturas locais. Coletivizem questões sobre como tratar a segurança pública dentro do estado de direito; como criar elos de convivência fraterna, como melhorar a educação municipal, a saúde pública, o saneamento básico, transportes etc.

Para finalizar eu penso que somente o ativismo virtual articulado com a "militância" de base pode abrir uma oportunidade promissora para reabilitar outro modo de fazer política no Brasil. - É urgente estabelecer o diálogo direto para tirar o exercício da cidadania da condição de letargia.

* livro DE Jessé de Souza (2017). A elite do atraso, da escravidão à lava jato, Rio de janeiro, editora Leya.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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