Polarização, homogeneidade e gestão: a morte da política
Os aparatos ideológicos privados de informação, vulgo mídia corporativa, conseguiram emplacar mais um discurso que mascara a realidade da vida política e concreta da sociedade. Segundo eles, com a disputa entre Bolsonaro e Lula estaria havendo uma polarização política, isto é, haveria uma oposição entre extremos, da qual decorreriam posições exacerbadas quanto às políticas a serem tomadas à frente do Estado.
A ideologia que se arrasta há décadas na mídia, que é a ideologia das classes dominantes, é a do Estado-empresa. O Estado não é algo em disputa por classes, mas um conjunto de instituições que deve gerir interesses oriundos sabe-se lá de onde (o mais imponente deles é o tal Mercado) que se manifestam por meio de seus porta-vozes, os veículos de comunicação e seus formadores de opinião – a tal opinião pública (ou publicada).
Como uma empresa, o único fim do Estado seria o lucro (através do tripé macroeconômico, das privatizações, da retirada de direitos da classe trabalhadora etc). Não haveria demandas sociais nem conflitos internos à sociedade, cabendo a quem ocupa o Estado geri-lo para que seja eficiente, moderno e eficiente. Três palavrinhas mágicas que em si não dizem nada mas que muito escondem.
Ao governo de então não caberia decidir transformações profundas na sua estrutura (seja nos próprios poderes, seja na sua organização e atuação, por exemplo), mas gerir a máquina do Estado como um fim em si mesmo, sem discussão com as classes que compõem a sociedade, ignorando as disputas internas nela existentes quanto a projetos e concepções, para ao final apresentar balancetes. Como em uma empresa, não haveria nada fora a que deveria prestar contas, apenas internamente aos seus reais proprietários que demandam a eficiência para que suas taxas de lucro se mantenham altas.
Ao colocar Bolsonaro como um extremo, essa mesma mídia deixa de fora Paulo Guedes e sua “equipe econômica” – que merece o nome de pirata. Essa gangue não seria ideológica, como são Damares e outros tresloucados. Afinal, querendo ou não, com maior ou menor atraso, Guedes está entregando o prometido, fazendo as privatizações (com anuência do STF), desregulando e desregulamentando completamente o Estado. Mas extremo é apenas Bolsonaro, afinal, não come com talheres nem escova os dentes.
Mas o mais surpreendente é colocar Lula como um extremo. O governo do PT foi responsável pela consolidação de um neoliberalismo progressista, instaurou o que Mauro Iasi chama de Democracia de cooptação, ao atender os interesses das frações dominantes (não nos esqueçamos das palavras do próprio ex-presidente quanto a isso, de que os bancos nunca ganharam tanto quando ele esteve no governo) e fazer políticas de caráter compensatórias e distributivas (formuladas pelos próprios neoliberais) sem mexer em uma coluna do que sustenta este país. É inegável que aumentou em 50% a renda de quem vivia abaixo da linha da miséria (com menos de US$ 2), que fez uma política de aumento do salário mínimo e permitiu o acesso às linhas de crédito expandindo o consumo (será que neste crédito estava embutido o arrocho salarial?). Mas é inegável também que, mais do que pacificar, apassivou a classe trabalhadora permitindo a expropriação pelo Capital de sua riqueza produzida. E como tudo que é sólido, bastaram quatro anos e todas as conquistas se desmancharam no ar.
Lula, como negociador, pois sindicalista, e seu partido, defenderam a democracia como valor abstrato e se tornaram o establishment – esse que o Bolsonaro diz querer combater mas o representa. Colocou campos opostos para dialogar, como se possível fosse a conciliação entre trabalho e capital, entre explorado e explorador, e geriu o Estado de forma eficiente. Até que, com Dilma, a partir de 2013, as taxas de lucro começaram a cair e quem de fato tem poder se levantou da mesa e passou as dar as cartas de vez. A partir de 2015, as taxas de lucro da burguesia voltaram a crescer à medida que destruição das leis trabalhistas, da Previdência, da regulamentação do Estado e as privatizações passaram a acontecer com maior rapidez. Infelizmente, o governo do PT foi um governo de contenção e gestão. Foi a morte da política. Não à toa ninguém se levantou para evitar a deposição da presidenta.
O Estado é um aparato da classe dominante, assim como seus instrumentos como o Direito, a divisão dos poderes (coisa abstrata e ideológica, já que representam o mesmo grupo dominante) etc. E a sociedade é dividida em classes, aqueles que tem a sua força de trabalho para vender e aqueles que têm os meios de produção e compram essa força de trabalho. É uma contradição que não se resolve com gestão e todo e qualquer discurso que tente homogeneizar as pessoas (somos todos cidadãos) é ideológico, está a serviço de quem domina.
A política se faz a partir das disputas, com tensões, e, fundamentalmente, com projetos. Que tipo de sociedade queremos? Que queremos que todos se alimentem é básico, mas não pode ser só isso. Queremos uma sociedade sem exploração de classe e, com isso, sem opressões que dela derivam. Queremos uma sociedade em que o fruto do trabalho fique com o trabalhador. E isso é inconciliável. Por isso há conflito. E, ao mesmo tempo, exatamente por isso que quem está no poder fala tanto em gestão e gerenciamento, quer evitar extremos (apagando a sua própria posição extremista) e defende uma ideia abstrata de homogeneidade da sociedade, apesar de todas as desigualdades.
A tarefa, para quem quer fazer política nestes tempos sombrios é dupla. De um lado, enfrentar o discurso da gestão, do gerenciamento, do neutro, do apolítico, o discurso que pasteuriza as posições políticas – como os debates pré-eleitorais televisivos conseguiram fazer tão bem. De outro lado, é afirmar o discurso de esquerda, no mínimo socialista, que vise expor as contradições, acirrar as lutas de classes, conscientizar a classe trabalhadora (aliás, voltar a falar em classe trabalhadora!!) e defender mudanças profundas do Estado brasileiro, como o combate ao latifúndio, aos monopólios, às privatizações, à concentração de riqueza e propor a instauração de direitos que consolidem a classe trabalhadora como sujeito político.
Se se fala tanto em extremismo – e parecem temê-lo – que sejamos extremos, mas em favor da nossa classe.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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