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Chico Teixeira

Historiador e professor titular da UFRJ

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Política externa e afetos subjetivos

Chico Teixeira avalia como "bastante estranho o argumento do governo brasileiro sobre 'quebra de confiança' nas relações Brasília-Caracas"

Celso Amorim e Nicolás Maduro (Foto: Miraflores Palare/Reuters )

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Considero bastante estranho o argumento do governo brasileiro sobre "quebra de confiança" nas relações Brasília-Caracas. Além de se colocar a questão ao nível dos afetos - com ênfase em "confiança" e "lealdade" - parece, também, uma guinada profunda na formulação da política externa brasileira.

A postura da diplomacia como tendo sido "enganada" depõe contra uma trajetória histórica muito experimentada. Não se trata de um casamento ou outro tipo de relação afetiva. São relações Estado-Estado, onde os interesses nacionais se sobrepõem aos interesses privados e seus afetos. Há razões (de Estado) do Brasil em querer a Venezuela nos BRICS? Sim, temos interesse em consolidar uma posição na América do Sul, ter acesso ao mercado venezuelano - o que geraria mais emprego e renda no Brasil - e interesse em trazer os petrodólares da Venezuela para o âmbito financeiro dos BRICS.

No entanto, o Brasil, quando coloca afetos acima das razões de Estado, abandona seus interesses (de Estado) por uma posição que só vai gerar maior dependência de Caracas em face de Pequim e Moscou. Nem Santiago ou Bogotá foram mais longe. E nem pensar o México - sócio dos Estados Unidos no Nafta - ou a OEA - balcão dos interesses americanos - assumiram uma posição de "punir" Caracas.

Há, então, uma questão ideológica que se sobrepõe ao interesse nacional: o Brasil não aceita o "déficit" de democracia dos bolivarianos. Então, vamos também julgar os regimes saudita, cubano, emerita com a mesma régua e compasso. Ou só será o caso de Caracas? Corremos o risco da incoerência no cenário mundial.

Houve um tempo, e daqui de Angola isso me é muito forte, em que o Brasil reconhecia governos que controlassem o seu território e tivessem instituições funcionando. Mesmo que não fossem instituições de tipo liberal-representativo ocidental. Foi assim que nunca rompemos com o regime somozista na Nicarágua e reconhecemos, de imediato, o governo do MPLA em Angola. No momento, a diplomacia brasileira parece abandonar uma posição "realista" em relações internacionais em favor de uma postura "idealista". Ora, isso nos levaria a reduzir nossas relações com a China e Rússia, gerando uma quebra de vários setores produtivos do país, e no limite, para sermos coerentes, o abandono dos BRICS, em razão da presença de regimes não liberais representativos como China, Rússia e Irã. O que seria um suicídio político, diplomático e econômico.

E então teríamos que falar sobre os casos de violência da polícia americana contra os negros daquele país? Ou ficaremos em silêncio sobre os campos de refugiados africanos em Lampedusa, Itália, ou do abarrotamento de pessoas em campos financiados pela União Europeia na Turquia? A coerência "idealista" impõe tais tarefas por mais duro e improdutivo que seja. Mas, e se não for isso, se não for o caso do abandono do realismo pelo idealismo? Uma outra possibilidade é que o Brasil esteja praticando uma política externa "hiper-realista" já de caráter "maquiavélico"? Assim, a Venezuela não estaria sendo punida por suas falhas democráticas num regime que se quer liberal, e sim porque o governo brasileiro não quer críticas da mídia opositora ou discursos inflamados da extrema-direita no Parlamento. Assim, Maduro estaria sendo ofertado aos tubarões da direita brasileira para dar uma folga ao governo brasileiro frente um processo eleitoral adverso e uma mídia demolidora. A dúvida é se a fome dos tubarões será satisfeita com a punição da Venezuela.

Não é este o alvo central da coligação Direita Nacional + Imperialismo americano. O alvo é a própria organização dos BRICS. A postura de Brasília carece da percepção sistêmica das relações internacionais e acabou por apresentar uma posição que a torna frágil, pressionada, na formulação de sua própria política externa. Não há mais, depois da cimeira de Kazan, uma coerente doutrina de política externa do Brasil. Cada vez mais o preceito da chamada "Escola de Bielefeld" sobre ser a política externa de uma nação a continuidade de sua política externa faz com que a rica e prestigiosa tradição do Itamaraty seja substituída pela submissão à política de Washington, ao Centrão, ao PL e, enfim, ao noticiário das 18h das redes corporativas de televisão. O preceito de uma política externa autônoma e defensora dos interesses nacionais - já contrariados em outras áreas como Educação, Saúde, Direitos Humanos e Desigualdade Social - estão a ser substituídos por uma política de afetos subjetivos e, por fim, o apagamento de mais um farol de uma gestão pública de esquerda, anti-hegemônica e progressista.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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