Por que Lula erra ao propor mais diálogo com os evangélicos?
"Precisamos entender que onde há dogma não há raciocínio lógico que sustente um debate", diz Ricardo Nêggo Tom
Antes de propor mais diálogo com qualquer segmento religioso que tenha uma doutrina absolutista, como é o caso do segmento evangélico, precisamos entender que onde há dogma não há propensão ao diálogo, nem ao raciocínio a respeito de ideologias ou visões de mundo que possam colocar tal dogma em questionamento. Um dogma é um ponto fundamental e indiscutível dentro de conceitos religiosos, sobretudo, dos mais fundamentalistas, como é o caso da maior parte do cristianismo brasileiro que se opõe a toda e qualquer ideia de desconstrução de padrões sociais, contribuindo para perpetuação de estereótipos e preconceitos na nossa sociedade. A partir disto, o mais que podemos fazer com relação ao projeto de poder neopentecostal, que pretende estabelecer um Estado evangélico de direito no país, é disputar com eles a narrativa evangélica que Jesus Cristo deixou. Mas isso não é diálogo.
Seria muito inocente por parte da esquerda, acreditar que pode dialogar com quem defende princípios dogmáticos que devem ser aceitos tais como são e sem discussão ou questionamento. Quando um dogma diz que isso ou aquilo não pode ser aceito ou que é do mal, isto está posto como uma verdade absoluta. E quem se associa à doutrina religiosa que defende tal dogma, está disposto a cumpri-lo. Ou, pelo menos, nos faz acreditar que sim. Vejamos, por exemplo, como os homossexuais são tratados pelos evangélicos em função da ideia de pecado e da condenação ao inferno que paira sobre eles. Os negros sofreram algo parecido, quando eram proibidos de frequentar as igrejas por não serem considerados humanos o suficiente para serem acolhidos por Deus. E ainda sofrem, mesmo boa parte tendo negado a sua identidade cultural africana para se “converter” à branquitude cristã que um dia lhes ofereceu um açoite existencial parecido com o que Jesus cumpriu na cruz. E é sempre bom lembrar que Jesus Cristo também não era branco.
Obviamente, também precisamos entender que política é feita de diálogos e acordos, e Lula está falando apenas de política na tentativa de conquistar votos perdidos dentro do segmento evangélico, em função de dogmas que em suas manipuladas concepções colocam a esquerda como inimiga de Deus e dos cristãos. Se Lula e a esquerda pretendem convencer os evangélicos de que não é nada disso, vamos perder tempo e saúde mental. E Jesus Cristo é um grande exemplo dessa perda de tempo. Mesmo ele tendo ensinado o bem, o amor, a paz, a inclusão social, a partilha do pão, a tolerância e o respeito, foi morto com o voto daqueles que se beneficiaram de suas “políticas públicas”, sob a alegação de que era um perigoso subversivo que ameaçava a lei, os costumes e os dogmas. Lula está muito longe de ser Jesus, mas também já experimentou a ingratidão por parte daqueles a quem um dia ajudou com suas políticas públicas, entre os quais muitos evangélicos, que foram convencidos de que ele era um corrupto que ameaçava os bons costumes e apoiaram a sua prisão.
Curiosamente, os principais inimigos de Lula hoje no país, são os mesmos inimigos de Jesus em sua época. Os religiosos dogmáticos e monopolizadores da existência de Deus. Doutores da lei e do dinheiro que costumam criar demônios folclóricos para, a partir deles, difundir o pânico moral entre os seus seguidores e conclamar uma luta contra o mal que eles mesmos criaram. A distopia é tanta que Silas Malafaia acusa Lula de traição aos cristãos por ter indicado o “comunista” Flávio Dino ao STF, ignorando o fato de que Lula sancionou 10.825 que, além de assegurar a liberdade religiosa no país, permitiu a proliferação nada positiva de igrejas neopentecostais sob a benção da isenção tributária e a permissividade de se colocarem acima da laicidade do Estado, formando um estado pardo e paralelo à margem da Constituição. Inclusive, nessa época, Silas Malafaia, Edir Macedo, Marco Feliciano e outros bolsonaristas neopentecostais que hoje tem Lula como um anticristo, eram aliados e foram beneficiados pela lei que permitiu que suas empresas da fé prosperassem graças a ele e “em nome de Jesus. ”
Lula foi eleito sem o voto da maioria dos evangélicos do país e não precisa se render ao segmento para garantir a sua governabilidade. Até porque, ele e Jesus sabem muito bem como a maioria dos seguidores de dogmas agem. O que Lula precisa fazer é garantir a laicidade do Estado e fazer-se respeitar como o chefe da nação eleito pela maioria do povo brasileiro. O que faz Lula com essa tentativa de aproximação, é fortalecer a ideia de que os evangélicos são uma categoria superior dentro da sociedade brasileira, que merece um tratamento diferenciado das demais religiões. Muitos espíritas também se aliaram a Bolsonaro e Lula não está propondo diálogo com eles. E os umbandistas, candomblecistas, budistas, agnósticos e ateus não estão sujeitos a serem vítimas da polarização? Ou vamos tratar os evangélicos brasileiros como uma espécie de nação israelita bíblica, cuja promessa divina lhes garante subverter o Estado laico e transformar o Brasil em sua terra prometida? Por que Lula insiste em criar gados, digo, cobras para lhe picar?
O diálogo que Lula precisa ter com o segmento evangélico é a respeito da revisão da isenção tributária para as igrejas, que se tornaram centros de lavagem de dinheiro de toda sorte de origem. É justo que cidadãos pobres paguem impostos e empresas religiosas de propriedade de pastores milionários não? Para se ter uma ideia, não apenas as igrejas, mas também entidades ligadas a elas, são isentas de impostos como IPTU, IPVA, Imposto de Renda e ISS, com a nova reforma tributária. A pergunta que se faz urgente é: quem são e como serão definidas as entidades ligadas às igrejas? Teremos mais empresas ligadas aos estelionatários da fé, sob o registro de entidades assistenciais? Da mesma forma que os liberais defenderam uma revisão nas leis trabalhistas por considerá-las “arcaicas” e de outra época, é preciso que defendamos uma revisão da isenção tributária das igrejas pelo mesmo motivo. As igrejas de hoje, sobretudo as neopentecostais, não são iguais às de outros tempos. Eu diria que muitas nem são igrejas.
Apesar do beneplácito tributário, as igrejas devem mais de 1 bilhão de reais de impostos previdenciários e tributários à União, segundo um levantamento feito pelo Estadão/Broadcast em 2020. Dívida esta que foi perdoada graças a uma emenda parlamentar proposta pelo deputado federal David Soares, filho do pastor R.R Soares, dono da empresa da Graça, também conhecida como igreja. O PL 1581/2020, que tratava sobre renegociação de precatórios, foi aprovado com louvor e glória na câmara. Uma renúncia fiscal que, segundo especialistas, pode chegar a R$ 1,4 bilhão até o fim de 2024. Imaginem se essa grana fosse investida em educação, por exemplo. Jesus Cristo ficaria feliz em ver as crianças que ele tanto amou e defendeu, desfrutando de uma educação de qualidade que lhes permitiria desenvolver um senso crítico capaz de impedir que elas caíssem nas garras dos lobos pastores que seguem enriquecendo às custas do dízimo de seus fiéis, que ainda não se deram conta de que pagam impostos duas vezes, uma para o Estado e outra para a igreja. Acreditando que ambos fazem algo por eles, quando, na verdade, mais tiram do que oferecem.
Outra problemática da fala de Lula durante a conferência eleitoral do PT para 2024, é quando ele fala que a esquerda não está sabendo falar o que o povo quer ouvir. Quando, ao meu ver, a esquerda tem é que fazer o que o povo precisa. No que diz respeito ao diálogo com os evangélicos, quando a esquerda falar o que eles querem ouvir, é porque ela estará mentindo para eles ou abrindo mão de sua ideologia progressista e inclusiva que não se alia a discursos de ódio e preconceito feitos em nome de Deus, o que seria um desastre para a humanidade que habita este país. A esquerda não é opositora do evangelho de Jesus Cristo. Nunca foi. Mas deve se opor ferozmente à distorção deste evangelho que está sendo absorvida e praticada pela maioria dos ditos evangélicos do Brasil. E repito que essa oposição não se fará através do diálogo, mas pela disputa de narrativas. E a própria Bíblia pode ser usada como argumento a nosso favor, uma vez que ela é contraditória em vários aspectos. Se nos ativermos apenas ao evangelho de Cristo, já faremos com que muitos fiéis reflitam acerca do evangelho corrompido que os seus pastores estão pregando para eles.
Não se dialoga com quem não quer dialogar e não se propõe raciocínio para quem crê e segue dogmas de fé e tem o inferno como ameaça caso os desobedeça. Lula está no poder, e lá chegou de forma democrática, tendo o apoio da maioria da população. Chamar potenciais inimigos ideológicos para a própria trincheira, como é feito nos acordos com o centrão, não é pacificar o país. É se expor a mais um golpe mortal que será dado pelas suas costas, mas que sangrará mesmo é no coração da população mais pobre e minoritária representativamente. Como sempre. Continue dialogando com Deus, Lula, através de políticas públicas que combatam a fome e a miséria, e promovam a inclusão e a justiça social. Essa é a sua vontade para o mundo. Que todos tenham vida plena e abundante. Não perca tempo com muitos que se dizem seguidores dele. Eles não sabem o que falam, nem o que fazem. Apenas o que querem. E o que eles querem está bem longe de ser a vontade de Deus.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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