Por que Bolsonaro quer matar logo a EBC
“O mercado não é bobo, sabe que a EBC, como ativo financeiro, é uma xepa. Seu valor é de outra ordem", diz a jornalista Tereza Cruvinel, que argumenta, porém, que "privatizar ou fechar a EBC só poderá significar, do mero ponto de vista das contas públicas, um aumento de gastos para o governo"
Por Tereza Cruvinel
A Empresa Brasil de Comunicação – EBC, está a um passo de ser privatizada, vendida aos pedaços ou simplesmente extinta. Para mim, sua inclusão, esta semana, no Plano Nacional de Desestatização, atende a um desígnio maligno de Bolsonaro: pressentindo que não será reeleito, ele quer acelerar a destruição do Estado e das instituições democráticas, deixando a terra arrasada para quem vier.
Vai que Lula volta e patrocina a restauração do sistema de comunicação pública da EBC, que Temer deformou e ele, Bolsonaro, acabou de liquidar, reduzindo-a a aparelho de comunicação governamental, sujeito a censura, desmonte e controle anti-republicano? Afinal, foi ele mesmo quem disse, que não veio para construir, mas para destruir. Juntamente com a EBC, foram incluídos no PND a Eletrobrás e os Correios.
Há um motivo secundário, que é o de dar satisfação ao mercado e às forças neoliberais, a quem Paulo Guedes prometeu um plano megalômano de privatizações, que arrecadaria R$ 1 trilhão para o governo. Mas o mercado não é bobo, sabe que a EBC, como ativo financeiro, é uma xepa. Seu valor é de outra ordem, está relacionado com a vivência da democracia, explorando canais de radiodifusão pública que ampliem a diversidade e a pluralidade na oferta de conteúdos informativos, educativos e culturais para a população. Para isso ela foi criada, inspirando-se na experiência das melhores democracias, onde a mídia pública convive e complementa as mídias privadas, e também as estatais, que são de outra ordem.
Bolsonaro, logo que eleito, prometeu acabar com a EBC. Depois mudou de ideia, colocou militares no comando e passou a fazer uso escandaloso dos canais da empresa para fazer proselitismo político e até religioso. Escandalosamente, fundiu a antiga TV Pública, a TV Brasil, com o canal de notícias governamentais NBR. Jacaré com cobra d'água. Agora retomou o plano inicial. Justamente agora quando o segundo mandato vai virando miragem. Então, vamos acabar logo com isso.
Por seu valor democrático, a ameaça de extinção da EBC interessa a toda a sociedade, não apenas a seus funcionários ou sindicatos e movimentos pró-democratização das comunicações, que estão em permanente vigília e mobilização contra o plano. Na terça-feira houve um tuitaço denunciando o plano de privatização, organizado pela Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, que reúne sindicatos, entidades, movimentos sociais, personalidades e parlamentares ligados ao tema. Uma carta aberta foi divulgada e está postada no final deste artigo.
Ela mesma esclarece muitas questões sobre a eventual privatização da EBC, mas vou redundar sobre algumas e acrescentar outras:
- Argumenta o governo que a EBC “dá prejuízo”. Erro conceitual, porque ela não foi criada para dar lucro. Não exerce atividade econômica típica, como uma Petrobrás. Em todo o mundo, o Estado nacional subsidia a radiodifusão pública, total ou parcialmente, dependendo das receitas próprias que a gestora consiga auferir. Exceção, o sistema BBC, porque recolhe diretamente uma contribuição da população.
- Na aprovação da lei de criação da EBC, 11652/2008, já no Congresso e não na MP proposta por Lula, conseguimos construir, sob a coordenação do relator na Câmara, ex-deputado Valter Pinheiro, uma fonte de receita própria que, se estivesse sendo integralmente recolhida e repassada à empresa, garantiria hoje 2/3 de seu gasto anual. Trata-se da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, incidente sobre as empresas de telecomunicações. Parte delas judicializou a questão e até hoje recolhe a contribuição em juízo. Outra parte recolhe ao Tesouro, que usa os recursos para fazer superávit (ou redução do déficit primário), destinando pequena fração do acumulado ao orçamento da EBC.
- Vender uma empresa como a EBC é delírio. O BNDES vai agora estudar uma forma de acabar com ela, como agora quer Bolsonaro, vendendo ativos, esquartejando ou simplesmente fechado-a.
- Os canais são concessões da União, não podem ser privatizados. Os equipamentos foram quase totalmente adquiridos na minha gestão como diretora-presidente, correspondente aos primeiros quatro anos da empresa (2007-2011). Hoje estão obsoletos, não sendo atrativos para empresas do setor.
- O que o governo parece querer vender é seu rico patrimônio imobiliário, que a EBC herdou da Radiobrás, empresa que incorporou, e que foi muito aquinhoada pelos militares com muitos bens imóveis. Ela possui terrenos em Brasília que muito interessam aos empresários do setor.
- Privatizar ou fechar a EBC só poderá significar, do mero ponto de vista das contas públicas, um aumento de gastos para o governo. Empresas privadas terão que ser contratadas para prestar os serviços que hoje são por ela prestados, por um braço que atende ao governo. Quem irá produzir e distribuir a Voz do Brasil? Quem fará a cobertura, com difusão do sinal para outras emissoras, dos atos oficiais, inclusive nas viagens internacionais dos presidentes? Quem montará as transmissões em cadeia nacional de rádio e televisão? A lista é grande e todos estes serviços, se contratados pelo setor privado, terão custo bem maior que o da manutenção da empresa.
Este é um debate que precisa furar as bolhas, que interessa a todos os brasileiros empenhados em restaurar e depois aprofundar a democracia brasileira.
Segue a carta da Frente em Defesa da EBC:
Carta à sociedade: por que a EBC não deve ser privatizada
O Ministério das Comunicações anunciou recentemente o envio da Empresa Brasil de Comunicação ao Programa Nacional de Desestatização (PND). A decisão parece ser uma resposta a setores da imprensa ligados ao sistema financeiro, reproduzindo a lógica de dependência dos “mercados” da própria comunicação privada. Embora o movimento ainda envolva estudos sobre possíveis formas de privatização da empresa, foi um passo perigoso rumo à destruição da estatal. Neste sentido, trabalhadores que atuam nos setores da companhia vêm dialogar com a sociedade sobre sua natureza e importância.
Desde o seu nascimento, em 2007, a TV Brasil e a EBC são alvos de intensas campanhas negativas e, mais recentemente, pela sua privatização. Os argumentos vão desde um suposto déficit que a empresa daria ao governo até o valor gasto com salários e baixa audiência de seus veículos. Os trabalhadores vêm aqui trazer alguns esclarecimentos que esperamos sejam incluídos nas matérias, em geral com somente um lado.
A EBC foi criada a partir do que manda a Constituição Federal. O Artigo 223 da Carta Magna prevê a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal. A Lei que criou a estatal (11.652, de 2008) regulamenta esta diretriz, criando a empresa. Assim, a EBC não foi um feito de um governo, mas a materialização tardia do que a Constituição já determinava desde sua promulgação, no fim dos anos 1980.
A comunicação pública não é uma invenção brasileira, mas, ao contrário, é realidade na grande maioria dos países do mundo. Enquanto alguns segmentos buscam atacar a existência deste serviço, outros países com democracias consolidadas (até mesmo de caráter bastante liberal) entendem e estimulam o papel da comunicação pública para atender ao direito à informação dos cidadãos, investir em conteúdos sem apelo comercial e pautar temas de interesse público. É o caso da BBC no Reino Unido, da RTP em Portugal, da NHK no Japão ou da PBS nos Estados Unidos.
A EBC não dá “prejuízo” ou “déficit”. Ela é uma empresa pública dependente, e não autossuficiente como Correios ou Banco do Brasil. Embora ela consiga arrecadar recursos com patrocínios e prestação de serviços, suas fontes de financiamento não servem e nunca servirão para torná-la autônoma, já que ela não deve se tornar refém do próprio mercado para garantir ainda mais sua autonomia. Assim como ministérios e universidades não dão “prejuízo”, a EBC (assim como outras estatais dependentes, como Embrapa) também não dá.
Este modelo de negócio não é inovação da EBC, ele ocorre no mundo inteiro. Só conseguem autonomia financeira empresas custeadas a partir de impostos, como a BBC do Reino Unido ou a RAI na Itália. Não é o caso do Brasil. Ao contrário, a EBC tem uma fonte de receita própria complementar (a Contribuição para o Fomento à Radiodifusão Pública), que, do total arrecadado, só foi reservado R$ 2,8 bilhões em todos os anos de contribuição à EBC, mesmo que quase nada tenha sido repassado à empresa (tanto por uma contenda judicial quanto por falta de vontade política dos governos) (https://sistemas.anatel.gov.br/anexar-api/publico/anexos/download/94048e5652b2272e693e4ca9ce14d485).
Matérias na imprensa reproduzem o argumento do governo, afirmando que o orçamento de R$ 550 milhões por ano é “muito”. E ressaltam sempre valores gastos com salários. Não se mantém uma empresa que tem duas TVs, oito rádios, duas agências nacionais, produz conteúdo e presta serviços ao governo federal sem recursos. Tampouco se faz comunicação sem pessoas - que devem ser contratadas conforme prevê a legislação, e não fraudando a lei com contratações por pessoa jurídica (PJ). É o que a maioria das empresas de radiodifusão o fazem, como Band, Globo e SBT, o que levou a multas milionárias da Receita Federal e problemas graves na Justiça trabalhista. É de se esperar, naturalmente, que as empresas públicas cumpram, minimamente, a lei.
Colunistas e o próprio governo reclamam do “desempenho” da EBC e falam em melhoria e “otimização” por conta da audiência. Os veículos da EBC não foram criados para disputar audiência, embora devam buscar sempre esse alcance. A TV Brasil já chegou a ser a 7ª emissora nacional e é a única aberta com programação infantil de fato. Poderia ter avançado em marcas mais efetivas, mas a falta de investimento e prioridade política dificultaram o ganho de visibilidade da empresa.
Mesmo com a falta de apoio e desmonte recente, a Agência Brasil produz conteúdos gratuitos que abastecem milhares de grandes e pequenos veículos de comunicação. A Radioagência Nacional faz o mesmo com estações de rádio. A Rádio Nacional da Amazônia serve centenas de milhares de ouvintes nos rincões do país. Além disso, a empresa tem caráter educativo, com difusão de programas e reportagens para contribuir com a formação dos cidadãos.
O questionamento da privatização da EBC vai muito além de seus empregos - embora essa preocupação seja legítima, uma vez que estamos falando de famílias que são sustentadas por esses empregos em um país com mais de 14 milhões de desempregados. Mesmo assim, é necessário restabelecer informações diante de uma campanha de ataque e que esconde a relevância social da empresa. Se é fato que o governo atual vem aparelhando editorialmente e desmontando muitos programas e serviços, a saída não pode ser extinguir ou privatizar, mas sim corrigir os erros e dar a devida estrutura para que a empresa possa, de fato, cumprir sua missão constitucional de fazer comunicação pública.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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