Por que o Brasil não deve vetar o ingresso da Venezuela no BRICS
A entrada da Venezuela, além de fortalecer o grupo multipolar com a maior reserva de hidrocarbonetos do mundo, possibilitaria a redução do impacto das sanções
Muitos irão discordar, é claro, mas não gosto do governo Maduro.
Em primeiro lugar, me parece que Maduro é uma liderança que dista muitíssimo da estatura política de Hugo Chávez.
Em segundo, creio que o governo de Maduro afastou-se bastante dos ideais profundamente democráticos da revolução chavista. Uma revolução que implodiu o pacto político oligárquico de Punto Fijo e investiu fortemente na participação popular e em um sistema eleitoral moderno. Essa foi uma decisão do povo da Venezuela, a qual quedou inscrita na nova constituição daquele país. Não foi uma imposição de alguma potência extrarregional.
Entretanto, os resultados metafísicos e as atas fantasmagóricas das últimas eleições levantam a forte suspeita de que o pleito foi fraudado, em clara violação da constituição chavista e em confronto com os Acordos de Barbados.
Em terceiro, após a ampla dúvida sobre os resultados das últimas eleições, o governo Maduro passou a ter um efeito disruptivo na integração regional, rompendo relações com vários países da região e agredindo governos aliados, que buscavam uma solução negociada, como o de Lula e o de Gustavo Petro. O procurador-geral da Venezuela chegou ao cúmulo de acusar Lula de ser um “agente da CIA”.
Sem dúvida, o governo Maduro tornou-se pouco confiável e traiu o apoio que o Brasil e vários outros países depositaram nos famosos Acordos de Barbados.
Apesar de tudo isso, e não é pouca coisa, defendo a ideia de que o Brasil não deva vetar o ingresso da Venezuela no BRICS.
Por quê?
Pelas mesmas razões que defendo que o Brasil não deva romper relações com Israel.
Assim como Israel não deve ser confundido com o governo de Netanyahu, acusado de genocida, a Venezuela, um importante vizinho nosso, não pode ser confundida com o desastroso governo de Maduro.
Relações diplomáticas se dão entre países e Estados, com base em seus interesses de longo prazo. Por conseguinte, as idiossincrasias políticas e ideológicas de governos específicos têm de ser abstraídas, nos cálculos estratégicos.
Talvez não se possa confiar em Maduro, mas pode-se confiar inteiramente no fato de que a Venezuela tem cerca de 2,200 quilômetros de fronteira conosco e vários problemas que demandam soluções comuns e coordenadas, como o do fornecimento de energia, o desenvolvimento das áreas fronteiriças e a questão migratória.
Também pode-se confiar inteiramente no fato de que as sanções draconianas impostas pelos EUA a esse país prejudicam a população inocente da Venezuela, constituindo-se em punição coletiva inadmissível, e prejudicam o potencial de sinergia entre a economia brasileira e a venezuelana.
Saliente-se que, em 2007, tivemos nosso maior saldo comercial com a Venezuela. Hoje, após a crise e o rompimento das relações diplomática entre Brasil e Venezuela, na época de Bolsonaro, perdemos muita presença naquele país. A China e outros países possuem, hoje, presença muito maior em Caracas.
Também podemos contar com o fato de que a maior parte da oposição venezuelana também não é muito confiável, e tampouco demonstra ter compromisso efetivo com a democracia.
Nessas circunstâncias, o investimento em retaliações e isolamento nos parece contraproducente, tanto para os interesses maiores da Venezuela quanto para os interesses do Brasil.
O que o Brasil ganharia com a não entrada da Venezuela no BRICS? Creio que nada. À esquerda, com tal veto, o Brasil se desgasta, pois assume atitude antipática e um tanto autoritária, semelhante à dos EUA e aliados, que insistem em sanções, vetos, mudanças de regime, intervenções militares etc.
À direita, o simples veto não é suficiente. O que a direita quer é o que Bolsonaro fez: romper relações com o governo de facto da Venezuela e reconhecer um governo fictício (o de González Urrutia), o Juan Guaidó 2. Assim, não se ganha nada com o veto e ainda se assiste ao desgaste na imprensa reacionária, a qual dá amplo destaque ao imbróglio e às diferenças de posição entre Putin e Lula.
O Brasil precisa, mesmo nas atuais circunstâncias difíceis, insistir em negociações e na cooperação. Não há alternativas racionais.
A entrada da Venezuela no BRICS, além de fortalecer o grupo multipolar com a maior reserva de hidrocarbonetos do mundo, poderia possibilitar a redução do impacto de algumas sanções, que tanto dano causam à população da Venezuela.
Alguns setores mais conservadores do Itamaraty veem esse veto como uma vitória da “corporação”, em detrimento de posições menos “centradas”.
Discordo. Tal veto, se mantido, será uma derrota da nossa tradição diplomática.
O Brasil, soft power por excelência, destaca-se por sua capacidade de dialogar e cooperar. Destaca-se por sua atitude sempre propositiva e positiva, no cenário mundial. Não vetamos, não sancionamos, não intervimos. Praticamos o que os nossos princípios constitucionais determinam. Investimos em multipolaridade, em multilateralismo, e na paz Nossa tradição é a de Rio Branco. Não é a de Theodore Roosevelt. Não carregamos um Big Stick. O fracasso das negociações é uma derrota da paz e da racionalidade.
Claro está que a reação ensandecida do governo Maduro de acusar o Brasil de traição e de comparar Lula com Bolsonaro é ridícula. Quem traiu, por diversas vezes, a confiança do Brasil foi Maduro.
Contudo, o Brasil, país líder do nosso subcontinente, tem de ser maior que isso. No quadro da nova Guerra Fria, com suas sanções, vetos, tentativas de isolamento, conflitos internos exacerbados etc., a melhor aposta continua ser a do diálogo, a da inclusão e a da paz.
Na realidade, é a única que poderia impedir a expansão de conflitos extrarregionais para nossa região, um ganho geopolítico significativo.
Ainda há tempo de rever a posição, num quadro de expansão parcimoniosa, porém inevitável do BRICS.
Afinal, como disse Voltaire: A tolerância nunca foi causa de guerra civil; ao contrário, a perseguição cobriu a terra com sangue e carnificina.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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