Porque ‘Lula livre’
"A questão fundamental, diz o ex-presidente, é salvar o país. Livrá-lo da crise econômica que o neoliberalismo aprofunda, tirar o povo da pobreza que o neoliberalismo agrava, salvar a soberania nacional abastardada por um servilismo que só encontra precedente no governo do marechal Castelo Branco, primeiro presidente do mandarinato militar", diz o cientista político Roberto Amaral; "'Lula livre, portanto, não é o ponto de chegada, mas o ponto de partida fundamental para um grande esforço de recuperação nacional"
A entrevista do presidente Lula à Folha de S. Paulo e ao El País já é o fato político mais importante deste ano, pela sua excepcionalidade e pelo que encerra, a um só tempo, de absurdo e lógica, irracionalidade e razão.
Trata-se de algo inédito: a condenação e encarceramento de um ex-presidente da República mediante processo despudoradamente político e eivado de vícios e ilegalidades insanáveis, comandado por um militante politico travestido de juiz.
Em sua lógica intrínseca, apresenta-se como peça fundamental, friamente racional, do processo político ainda em curso e de desenlache desconhecido; anunciando-se contra o líder popular, visa à demonização das forças progressistas e de esquerda, num primeiro momento, e, ao fim e ao cabo, à destruição mesma da democracia reconquistada com a Constituição de 1988.
Essa prisão, denunciou o ex-presidente em sua entrevista-manifesto, apresenta-se, porém, como uma necessidade; foi o caminho encontrado pelas forças do atraso para, impedindo sua candidatura à presidência da República, assegurar a ascensão do bolsonarismo, o fecho e o cume do processo golpista desencadeado com a deposição de Dilma Rousseff.
A concessão que nos permitiu o reencontro com o líder encarcerado é a mesma que denuncia o arbítrio. Se foi um alento para as massas encontrar um Lula forte, altaneiro e corajoso, foi uma provação revê-lo a partir de um vídeo de entrevista concedida em seu tugúrio de condenado político.
São, porém, as condições ditadas pela atual correlação de forças. É preciso, portanto, alterá-la.
O ex-presidente acertou quando reiterou a esperança de que o STF, senhor de baraço e cutelo do tempo, um dia decidirá “segundo a prova dos autos”, como seria seu dever de ofício. Se assim finalmente julgar, restituir-lhe-á a liberdade suprimida. Mas, todos sabemos, a farsa do formalismo jurídico não encobre a essencialidade política do processo, que só terá saída na ação política, cujo motor é a mobilização popular.
Lula – forjado nos embates sindicais, apelou incansavelmente à organização e rearticulação dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda, inclusive de seu próprio partido; apelou ao fortalecimento das lideranças de centro-esquerda, ponto de partida para a mais ampla frente política, partidária e popular, porque também compreendendo o movimento social.
Porque só uma frente – ampla – terá condições de enfrentar e derrotar o funesto regime que aí está e deter sua cruzada obscurantista.
Quando impera entre nós o regressismo, quando se intenta refazer a História, quando se intenta negar a tortura e os assassinatos da ditadura militar brasileira, que também é negada como tal; quando o projeto do governo é destruir a educação e a cultura negando as ciências humanas; quando a proposta é a ampliação da pobreza, Lula nos diz: ‘Vamos lutar!’. E assim transforma em esperança o desânimo e a tristeza, retirando a militância democrática de sua ambiência depressiva.
Seu modelo de altivez em condições tão adversas, seu exemplo de resistência quando tudo parecia perdido, é uma injeção de ânimo que percorre todo o país ao tempo em que denuncia para todo o mundo sua condição de preso político e escancara o protofascismo do governo do capitão e seus generais, acumpliciados com um Judiciário abertamente partidarizado.
A questão fundamental, diz o ex-presidente, é salvar o país. Livrá-lo da crise econômica que o neoliberalismo aprofunda, tirar o povo da pobreza que o neoliberalismo agrava, salvar a soberania nacional abastardada por um servilismo que só encontra precedente no governo do marechal Castelo Branco, primeiro presidente do mandarinato militar. Mas é, concomitantemente e como condição essencial, o combate ao projeto neofascista que ameaça consolidar-se. Em suma: a palavra de ordem é estancar a desconstituição do país
É preciso defender a democracia diariamente, pois é diária a ação dos que, falsamente, muitas vezes em seu nome, ou em nome da liberdade, ou em nome do direito ou em nome do combate à corrupção, tentam garroteá-la. Assim Getúlio e Jango foram depostos por conspiracies reacionárias levadas a termo pela associação de militares com os segmentos mais atrasados da economia nacional, com os olhos e a alma voltados para os interesses do capital internacional, que volta a agir contra as pretensões brasileiras de uma política externa soberana. Foi em nome do combate à corrupção que Jânio Quadros e Fernando Collor – com a inefável contribuição da grande imprensa, sempre – foram transformados em promessas de redenção nacional.
Em nome do combate à corrupção a extrema-direita, auxiliada pela adesão de liberais e autointitulados sociais-democratas, elegeu o capitão e instaurou o regime civil-militar que nos governa de forma desastrosa, antipopular e antinacional. Em nome do combate à corrupção, essa aliança intenta destruir o que entende por petismo, lulismo, esquerdismo e comunismo, impondo a ideologia do atraso como alternativa ao avanço.
A demonização das esquerdas não resulta da análise racional de seus muitos erros no governo, mas da avaliação de seus muitos méritos, das muitas conquistas populares que ensejou, dos direitos que protegeu, da ascensão social que propiciou a milhões de brasileiros, de negros e pobres aos quais abriu os caminhou da cidadania.
Para desconstruir a democracia, aqui e em todo o mundo, a direita investe primeiro na desmoralização da política e, na sequência, na desmoralização dos partidos e dos políticos, reduzidos todos a meros instrumentos de corrupção. Este é o processo que vivemos presentemente.
Em tal cenário, Lula nos chega retomando a política como o eixo da democracia representativa, que carece de partidos fortes, autênticos e firmemente enraizados junto às grandes massas. Não basta o fortalecimento do PT, pois sua sobrevivência também depende do fortalecimento dos demais partidos de esquerda, sem o que tornar-se-á presa fácil do totalitarismo.
Mesmo a só sobrevivência da esquerda não será suficiente para a recuperação do país, tarefa que pede uma frente ampla, amplíssima, como aquela que viabilizou a histórica campanha das Diretas Já, sem a qual não teria havido a implosão do colégio eleitoral montado pela ditadura para assegurar sua prorrogação com a eleição do inefável Pauo Salim Maluf, nem a Constituição de 1988 e com ela as eleições diretas de 1989, encerrando 25 anos de recesso democrático.
Lula, que ressurge revigorado física e intelectualmente, vê a necessidade de unir o povo e proclama como seu instrumento inafastável a unidade das forças progressistas.
Os números de 2018 mostram, à saciedade, que, não obstante a onda de reacionarismo e primitivismo que se mostrou maior e mais profunda do que a estimada, a eleição do capitão poderia ter sido evitada se as esquerdas e as forças progressistas se tivessem unificado e o centro não tivesse optado pela extrema-direita, suicidando-se.
Quem responderá perante a História pelo ônus do bolsonarismo?
O chamamento à unidade em face do grande projeto de salvação nacional – a questão está colocada realmente nestes termos de salvação nacional –, a necessidade de as esquerdas saberem eleger o adversário comum, abandonando a disputa autofágica, não amortece a necessidade de denunciar a sociedade de classes e o imperialismo do qual o governo brasileiro de hoje se transforma em servidor.
Este discurso está claro na entrevista de Lula.
“Lula livre’, portanto, não é o ponto de chegada, mas o ponto de partida fundamental para um grande esforço de recuperação nacional, que depende, hoje mais do que nunca, da mobilização das grandes massas, que o ex-presidente pretende liderar.
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