Porta dos Fundos: depois do terror, a censura
Numa decisão incompatível com a Constituição, desembargador proíbe episódio que motivou ação terrorista contra sede do Porta dos Fundos, escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia
Nestes tempos terríveis e perigosos há uma observação única e fundamental a se fazer sobre a proibição de "A Primeira Tentação de Cristo," do Porta dos Fundos, que ontem teve sua exibição proibida por decisão do desembargador Benedito Abicair, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Trata-se de uma iniciativa incompatível com o regime de democracia e liberdade em que o país escolheu viver a partir da Constituição de 1988, escrita por constituintes eleitos pelo voto direto de brasileiros e brasileiras.
Ali se diz, no parágrafo IX do artigo 5, que "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".
Para reforçar a mesma ideia, 215 artigos adiante os constituintes voltaram ao assunto para sublinhar: "é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e ou artística".
Este fato que conduz a uma verdade muito simples. Você pode ter gostado ou não do episódio.
Também pode considerar que, num país onde Bolsonaro tenta transformar o debate político numa guerra religiosa, é preciso evitar armadilhas que só interessam a quem trabalha pela treva cultural e pela manipulação política.
Neste momento, porém, a questão democrática e a defesa da liberdade ocupam o lugar essencial. A Constituição diz que a censura "é vedada". Não há o que discutir, presume-se.
Há outro aspecto grave na decisão.
Embora o país não possua uma religião oficial, o caráter laico do Estado não esteja em discussão e a Constituição afirme que todos são iguais perante a lei, a proibição sugere um tratamento preferencial a uma religião específica, apontando possíveis benefícios na proibição, "não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã".
Por fim, o contexto do absurdo. A proibição foi anunciada uma semana depois da sede do Porta dos Fundos ter sofrido um ataque terrorista, motivada pelo mesmo episódio agora censurado. Numa confissão de crime, o cidadão flagrado pelos vídeos que registraram o atentado deixou o país para não ser preso e encontra-se foragido na Rússia, a 11 500 quilômetros de distância.
Vamos reconhecer. Embora sejam ações de caráter inteiramente diferente, que não permitem qualquer comparação, a bomba e a censura se aproximam na mesma mensagem de intolerância. Não tem a mesma origem nem a mesma finalidade. Mas se dirigem ao mesmo alvo.
"Os ares democráticos não admitem censura", recorda o ministro Marco Aurélio de Mello, do STF.
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