Presente de aniversário
Na hora do “parabéns pra você” o aniversariante só viu desconhecidos. E adorou
“Tudo na vida tem um lado bom e outro ruim.”
Como tantas frases repetidas, esta também virou clichê, mas tem seu valor.
É ensinamento e, às vezes, calmante, quando acreditamos que tudo deu errado e então lembramos daqui a pouco o lado bom aparece. E, claro, se na vida há sempre duas bandas, também serve para quando nos sentimos invencíveis. Aí o provérbio avisa que “nariz empinado” é vizinho de fracasso.
Há outras frases que dizem o mesmo com palavras diferentes: “depois do dia vem a noite”, “os dois lados da mesma moeda”, “um dia da caça, outro do caçador”.
Essa dualidade vale para todos os dias, inclusive aquele que a gente nunca esquece: o do aniversário. Alguns esperam a data o ano todo, planejam festa, viagem, organizam futebol de solteiros contra casados.
Meu pai detestava tudo isso. Proibia que se comentasse com os vizinhos e sempre recusou bolo. Minha madrinha, que não perdia a festa dos outros, não admitia gastar com a própria. Já minha vizinha, tremia só de pensar que descobririam a idade dela.
O envelhecimento seria, para as pessoas que pensam como minha vizinha pensava, o tal lado ruim lá da nossa primeira frase.
De uma hora pra outra, você percebe que passaram a falar mais baixo e pede, já impaciente: “Pode repetir?” “Aumenta o volume da tevê, por favor?” Então, fica sabendo que a solução é um par de aparelhos auditivos.
De repente, as palavras, no papel ou na tela, encolhem. Até você consultar o oftalmologista e constatar: o que diminuiu foi a visão.
Despencam também a força, a memória, os cabelos. Disparam a flacidez, o boleto do plano de saúde, o colesterol. Mas a gente está vivo e festeja mais um ano.
Leu mais, viajou mais, fez um novo amigo.
Fiquei mais velho há alguns dias. Um mês antes, me perguntaram se teria festa. Pedi tempo pra pensar, lembrando que perto dos 63 anos colecionava um currículo de aniversários.
Num dos primeiros, na escola, não esqueço quando cantaram o “Com quem será...” e eu não tive coragem de olhar os olhos pretos de Lucília. Um pouco mais velho, o dilema da primeira fatia do bolo: pai ou mãe? Inseguro desde sempre, cortei duas fatias, então vi minha avó enciumada e cortei a terceira, mas eu tinha duas avós. Minha mãe deu o pedaço dela e acabou com o meu constrangimento.
Na adolescência, teve parabéns no boteco. Outro ano e o rega-bofe foi num acampamento com a turma da faculdade. Já adulto, a bagunça rolou sem pressa em uma chácara.
Aí uma festa-surpresa. Atrasei tanto na volta pra casa, que os “organizadores” se angustiaram com a longa espera, quase chamaram a polícia e então brinquei com eles: “também vocês não avisam”.
E vêm os anos amargos. Você some com a data da rede social, desliga o telefone, não atende ninguém. Se não queria ter nascido, vai comemorar o quê?
Por mais que demore, um dia passa, porque tudo passa.
De novo, quiseram saber da festa, mas há uma semana da data eu ainda não tinha resposta.
Foi aí que o professor de uma universidade em Santos me convidou para conversar com alunos sobre crônicas e jornalismo. Eu podia escolher cinco datas. Respondi na hora com o dia do meu aniversário.
Na mesa, havia mais dois autores e professores. No auditório, cinquenta estudantes de Comunicação.
Raquel, Ana, João e outros futuros jornalistas quiseram saber como nasce uma crônica; se a Inteligência Artificial pode enterrar os livros; se o jornalismo vai acabar; se os personagens de uma história vivem apenas na fantasia do escritor ou se são de carne e osso.
Saí entusiasmado com a acolhida e o interesse dos jovens repórteres. Depois de ouvir tantas vezes o “parabéns pra você”, o de 63 anos soou único: cantado por cinquenta vozes que eu nunca tinha ouvido. Nos adicionamos, nos fotografamos e comemoramos a nova idade, antes de eu entrar no último ônibus e subir a serra pra São Paulo.
*Agradeço à Unisanta pelo convite e pela oportunidade do encontro.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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