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    Agassiz Almeida Filho

    Agassiz Almeida Filho é professor de Direito Constitucional na UEPB, autor dos livros Fundamentos do Direito Constitucional (2007), Introdução ao Direito Constitucional (2008) e Formação e Estrutura do Direito Constitucional (2011)

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    Prisão domiciliar de Crivella é ilegal

    A suposição de que Crivella praticaria crimes porque pretenderia permanecer na vida pública não tem qualquer relação com o momento presente e não justifica uma prisão preventiva

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    Faltava uma última cena, neste trágico final de 2020, para que os ritos e símbolos da República de Curitiba reencontrassem a sua plateia. As grandes operações judiciais, com centenas de agentes paramentados, viaturas, luzes e sirenes nervosas, estão praticamente entrando para o calendário natalino. É uma espécie de celebração geral do suplício que nos remente para os cadafalsos portugueses do século XVIII. 

    A prisão preventiva do prefeito Marcelo Crivella e de outros investigados na Operação Hades cumpre essa lúgubre função ritual. Houve vazamentos para a imprensa, vídeos da prisão, fotos dos denunciados, registros dos membros da operação, entrevista coletiva, e, principalmente, na clássica linha de Moro e Dallagnol, a mais sincera garantia, por parte de agentes e membros do Ministério Público, de que a prisão preventiva se baseou estritamente na lei e na Constituição. Entre os jornalistas da coletiva, porém, uma questão se impunha sobre todas as demais: era necessário prender Marcelo Crivella faltando apenas nove dias para o fim do seu mandato?  

    É preciso analisar a decisão que decretou a preventiva para que possamos entender em que requisitos ela realmente se baseou. A peça de trinta e cinco páginas trata da questão em três oportunidades, que não chegam a exceder meia lauda, afirmando: a) que as práticas ilícitas de Crivella provavelmente continuariam pelo seu propósito de permanecer na vida pública; b) que os envolvidos teriam a expectativa de seguir cometendo delitos; c) que a conveniência da instrução criminal justificaria a prisão pelo fato de Crivella aparentemente ter entregue um celular de outra pessoa às autoridades, o que ocorreu numa busca e apreensão deflagrada em setembro de 2020. 

    Estas três justificativas, contudo, são completamente irrelevantes para se decretar uma prisão preventiva. Uma pessoa só pode ser presa preventivamente quando os requisitos necessários (salvaguarda da ordem pública, proteção da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e garantia do cumprimento da lei penal) estiverem presentes no momento em que a prisão for decretada. Também é importante ressaltar que a prisão preventiva é medida extrema, que só pode ser adotada de forma absolutamente excepcional, quando nenhuma das demais alternativas previstas em lei (uso de tornozeleira, proibição de frequentar lugares, de encontrar pessoas etc.) for suficiente.

    A suposição de que Crivella praticaria crimes porque pretenderia permanecer na vida pública não tem qualquer relação com o momento presente e não justifica uma prisão preventiva. Do mesmo modo, a decisão que determina a preventiva não pode se basear na expectativa ou no receio de que alguém venha a praticar um crime. É necessário que o delito esteja ocorrendo, que a conduta não possa ser impedida de outra maneira e que haja provas neste sentido. Por fim, o fato de alguém entregar às autoridades um aparelho celular que não lhe pertence, em setembro de 2020, não pode justificar uma prisão preventiva em dezembro do mesmo ano, ainda que tenha havido má-fé naquela época. É preciso que a instrução criminal esteja sendo ameaçada no momento em que a decretação da prisão preventiva vier a ocorrer. Se o ânimo de prejudicar as investigações existe, isto precisa ser demonstrado. 

    Fato exótico da decisão que decretou a preventiva se relaciona com a suspensão de Crivella do cargo de prefeito a nove dias do fim do seu mandato. O caráter exótico emerge de dois elementos. O primeiro deles é decorrente das distorções que o Poder Judiciário vem abraçando na interpretação da Constituição e da própria soberania popular, que consistem, em linhas gerais, na suspensão de mandatos eletivo e na quebra da decisão eleitoral por parte de magistrados que assim atuam sob a justificativa de aplicar medidas cautelares. Essa suspensão não possui embasamento jurídico. Não se pode romper a Constituição e a base da democracia representativa sob o argumento de se aplicar uma simples medida cautelar prevista pelo Código de Processo Penal.

    No caso em questão, além de a decisão não apresentar os fundamentos que justifiquem a suspensão do mandato, ainda que fossem teratológicos e juridicamente inadmissíveis, a suspensão do cargo de prefeito anularia o suposto risco que teria justificado a decretação da preventiva. Afinal, se seria afastado do cargo de prefeito, como Crivella poderia impulsionar os fatos criminosos que a denúncia lhe atribui, já que, nos termos da própria decisão que decretou a preventiva, “os crimes a ele imputados (...) foram cometidos no exercício do cargo para o qual foi democraticamente eleito”? A decisão não tem bases jurídicas nem congruência lógico-formal. Também apresenta uma visão pueril e confusa acerca do Direito alemão.

    Finalmente, é necessário abordar a questão da prisão domiciliar. O presidente do Superior Tribunal de Justiça, que concedeu a ordem de habeas corpus requerida pelos advogados de Crivella, afirmou o seguinte: “(...) em meu sentir, no caso dos autos, as circunstâncias apresentadas não são suficientes para demonstrar a periculosidade do paciente, de modo a justificar o emprego da medida cautelar máxima – especialmente – a fim de evitar a prática de novas infrações penais, tendo em conta que o mandato de prefeito do município do Rio de Janeiro expira em 01 de janeiro de 2021.” É obvio que a decisão que concedeu o habeas corpus não considera a preventiva necessária. Do contrário, a medida não teria sido revogada sob o argumento da falta de periculosidade.Essa prisão domiciliar determinada pelo presidente do STJ é a chamada prisão domiciliar cautelar. Ela deve ser aplicada, sempre em substituição à prisão preventiva, quando alguém que deveria estar preso não puder permanecer em estabelecimento carcerário por ter mais de 80 anos, estiver debilitado por doença, tiver aos seus cuidados criança menor de 6 anos etc. Em razão da idade e da pandemia, naturalmente, um preso que tenha 63 anos de idade, como é o caso de Crivella, deveria se beneficiar com a prisão domiciliar. Mas a substituição só se justifica quando a prisão preventiva for válida, concedendo-se a medida domiciliar como meio de minimizar os efeitos da preventiva sobre o preso ou seus familiares. Não é o que acontece com Crivella. Se a preventiva não observar os requisitos da lei, deve ser revogada e não substituída. A ordem de habeas corpus deveria ter sido concedida para colocar Crivella em liberdade, sendo completamente irrelevante, para fins de decretação de prisão preventiva, se ele tem ou não responsabilidade em relação aos fatos que lhe são imputados na denúncia. A apuração de eventual participação nos crimes cabe ao processo. Mas o espetáculo em torno da prisão e a pressão da opinião pública mais uma vez se impuseram. No Brasil de hoje, onde o Estado de Direito corre o risco de naufragar a cada sinal de tempestade, e perante o fantasma do lavajatismo, certamente Crivella deve estar comemorando a negação dos seus direitos fundamentais e a concessão de uma prisão domiciliar abusiva e ilegal.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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