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    Privatização da água: notícias preocupantes que vêm da Suíça

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    No último mês de fevereiro o Governo da Suíça anunciou a criação de uma Fundação em Genebra ( https://www.swissinfo.ch/eng/foundation-for-the-future_switzerland-moves-to-boost-international-geneva/44771548 ) , com o nome de “Geneva Science and Diplomacy Anticipator” (GSDA). O objetivo desta nova fundação é o de  regulamentar  novas tecnologias , desde drones e carros automáticos à engenharia genética, os exemplos mencionados pelo Ministro das Relações Exteriores da Suíça Ignazio Cassis na ocasião do lançamento público desta iniciativa. Segundo Cassis, as novas tecnologias estão se desenvolvendo muito rápido e esta Fundação  deve  “ antecipar” as consequências destes avanços para a sociedade e para a política. A Fundação será também uma ponte entre as comunidades científicas e diplomáticas, daí sua colocação estratégica em Genebra, que abriga várias organizações internacionas, desde a ONU até a Organização Mundial do Comércio. O Ministério das Relações Exteriores da Suíça contribuirá com 3 millhões de francos suíços – um pouco mais de 3 milhões de dólares – para a fase inicial da Fundação de 2019 até 2022. A cidade e o cantão de Genebra contribuirão cada um com 300 mil francos suíços para o mesmo período e espera-se contribuições do setor privado. Como Presidente desta nova Fundação foi escolhido o ex-CEO da Nestlé Peter Brabeck-Letmathe e como Vice-Presidente  o ex-Presidente do Instituto Federal de Tecnologia de Lausanne – EPFL da sigla em francês – Patrick Aebischer, desde 2015 também membro do comitê diretor do Nestlé Health Science, fundado em 2011 pela Nestlé e localizado justamente no campus da EPFL. A escolha de Peter Brabeck e de Patrick Aebischer – ambos com notória ligação com  a Nestlé – para dirigir esta nova Fundação tem razões muito claras. Representa primeiramente o reconhecimento do poder da Nestlé dentro do Governo da Suíça – um ex-CEO da Nestlé é , por definição, competente para dirigir esta iniciativa. Mais preocupante porém, a escolha de Peter Brabeck é mais um exemplo da “parceria”  cada vez mais estreita entre Governos e grandes companhias transnacionais, levando ao estabelecimento de uma oligarquia corporativa internacional que vem paulatinamente tomando o poder real dentro das democracias ocidentais.Como CEO da Nestlé, Peter Brabeck passou a maior parte de sua carreira lutando contra toda forma de regulamentação estatal do setor privado, o caso mais conhecido sendo contra a regulamentação das normas de marketing dos produtos alimentares infantis, principalmente o leite em pó. O conflito entre a Nestlé sob a  direção de Peter Brabeck e  o IBFAN – International Baby Food Action Network (Rede Internacional pela Amamentação Infantil) – é célebre. Mas a ironia maior – e o maior perigo – é que a escolha de Brabeck para presidir esta Fundação indica que o objetivo real desta iniciativa é justamente impedir qualquer forma de regulamentação pelo poder público que possa impor qualquer limite aos lucros procedentes dos avanços tecnólogicos do setor privado. Não é de se esperar também que esta Fundação venha a defender qualquer proteção da esfera pública ou do meio ambiente face à possíveis ameaças colocadas à sociedade pelos novos avanços tecnológicos, muito pelo contrário, a escolha de Brabeck indica que esta Fundação tem como objetivo prioritário a defesa e a promoção  do setor privado. O que se pode esperar desta Fundação são propostas de auto-regulamentação pelo setor privado no caso de conflitos demasiado explícitos, ou seja, nada de efetivo. E como esta Fundação é uma iniciativa do Governo da Suíça – certamente depois de conversas com o setor privado – e localiza-se em Genebra, ela já dispõe desde o início de uma enorme influência e creio que os movimentos sociais organizados devem seguir atentamente os passos futuros desta Fundação, pois esta encarna uma enorme ameaça à democracia.

    E apenas alguns meses depois do lançamento desta nova Fundação, o Governo da Suíça anunciou que Christian Frutiger, atual “Global Head of Public Affairs” da Nestlé (Diretor Global de Negócios Públicos) vai assumir, dentro de pouco tempo, a Vice-Presidência da Agência Suíça para o Desenvolvimento e a Cooperação – Swiss Development and Cooperation , SDC – em inglês, DEZA da sigla em alemão – ou seja, a Agência do Governo da Suíça responsável por projetos de ajuda ao desenvolvimento em outros países. Mais um exemplo da crescente colaboração entre o setor privado e o poder público, mas desta vez numa área muito mais sensível, a da cooperação para o desenvolvimento. E mais um exemplo também da influência e presença cada vez maior da transnacional Nestlé dentro do Governo da Suíça.  Esta presença não é nova nem recente, é importante lembrar por exemplo que o SDC não só apoiou a criação do Water Resources Group – WRG – a iniciativa da Nestlé, da Coca-cola e da Pepsi para privatizar a água, sobre a qual escrevi alguns textos – (ver https://jornalggn.com.br/opiniao/nestle-e-o-fim-da-era-brabeck-por-franklin-frederick/) como o próprio Diretor do SDC  é membro do Conselho Diretor do WRG.  A contradição entre o fato de  a Suíça possuir um dos melhores serviços públicos de saneamento e distribuiçâo de água no mundo mas utilizar o dinheiro do imposto dos cidadãos suíços para apoiar a privatização da água em outros países através da parceria do SDC  com a Nestlé não parece ser um problema. O orçamento para a cooperação internacional da Suíça para o período 2017-2020 é de cerca de 6.635 bilhões de francos – um pouco mais de 6.730 bilhões de dólares. Como Vice-Diretor, Christian Frutiger terá bastante influência sobre as decisões relativas à aplicação de parte destes recursos. Ainda mais importante, como Vice-Diretor, Frutiger será responsável  direto pela Divisão de “Cooperação Global”  do SDC e pelo programa ÁGUA. Christian Frutiger iniciou sua carreira na Nestlé em 2007, como “Public Affairs Manager” – Gerente de Negócios Públicos – depois de ter trabalhado na Cruz Vermelha Internacional. Em 2006 a marca de água engarrafada da Nestlé “Pure Life”  tornou-se sua marca mais lucrativa e em 2007, com a compra do grupo Sources Minérales Henniez S.A. , Nestlé tornou-se a empresa líder em água engarrafada dentro do mercado suíço. E em 2008, apenas uma década depois de seu lançamento, “Pure Life” tornou-se a mais vendida marca de água engarrafada em todo o mundo. Dentro deste contexto, era natural que o trabalho de Christian Frutiger na Nestlé se concentrasse desde o início no tema ÁGUA. E em 2008 estourou na Suíça o escândalo da espionagem da Nestlé. Um jornalista da TV da Suiça Francesa denunciou em um programa que a Nestlé contratou a empresa de segurança SECURITAS para infiltrar espiões dentro dos grupos críticos à Nestlé dentro da Suíça, sobretudo no grupo ATTAC. A espionagem comprovada ocorreu entre os anos de 2002 e 2003 mas há evidências de espionagem até o ano 2006. O grupo ATTAC abriu um processo contra a Nestlé e contra a empresa SECURITAS e em 2013 finalmente a justiça da Suíça condenou a Nestlé por ter organizado esta operação de espionagem, indicando o envolvimento de pelo menos 4 diretores da empresa na operação. Durante este período, Christian Frutiger teve um papel fundamental e muito bem sucedido em minizar o impacto da operação de espionagem na imagem da Nestlé na Suíça, o que certamente contribuiu para a sua promoção à posição que ele ocupa hoje. O fato de a Nestlé ter organizado uma operação ilegal de espionagem dentro da Suíça e de ter sido condenada pela justiça deste país por isto não teve qualquer efeito nas relações da empresa com o Governo Suíço e sobretudo com a Agência de Cooperação para o Desenvolvimento, como seria de se esperar. Ninguém perguntou ao então CEO da Nestlé Peter Brabeck se a sua empresa era capaz de tais ações dentro da própria Suíça , o que poderíamos esperar então do comportamento da mesma empresa em outros países de garantias democráticas mais frágeis? Espionar cidadãos na Suíça utilizando para este fim a infiltração de agentes disfarçados e sob nome falso é, no mínimo, de uma enorme falta de ética. Mas parece que a ética não foi um dos critérios  que o SDC levou em conta ao contratar Christian Frutiger que, em todo este episódio, manteve o silêncio, jamais se desculpou perante as pessoas espionadas pela empresa para a qual trabalhava e ainda fez tudo para minimizar o impacto do problema, ou seja, compactuou com a falta de ética de seu empregador. Mas a contratação de Frutiger como Vice-Diretor do SDC aponta para problemas muito mais profundos e abrangentes, sobretudo no que se refere ao tema ÁGUA, pois me parece claro que a sua escolha para esta posição tem tudo a ver com este tema. A indicação de Peter Brabeck para presidir a nova fundação do Governo da Suíça em Genebra e a de Christian Frutiger como Vice-Presidente da Agência de Cooperação para o Desenvolvimento da Suíça revelam uma  articulação entre o setor privado e o Governo Suíço no sentido de aprofundar as políticas de privatização – sobretudo da água – e o controle das corporações sobre as políticas públicas. Mas esta articulação vai além do Governo da Suíça, ela vai se dar sobretudo ao nível das agências e organismos internacionais presentes em Genebra pois Christian Frutiger será responsável pelo diálogo com muitas dessas organizações. O que estas novas funções de Peter Brabeck e de Christian Frutiger indicam também é que o setor corporativo transnacional esta se organizando e se articulando muito conscientemente ao nível dos governos para assegurar que suas demandas e suas propostas políticas, sejam atendidas.  

    Não se deve esperar muita reação das principais ONGs da Suíça diante de tudo isso, principalmente pelo fato de o SDC ser o principal financiador de quase todas elas, o que explica o silêncio profundo em torno da Nestlé e de suas ações dentro da Suíça. Um exemplo recente deste silêmcio ocorreu no Brasil por ocasião do Fórum Mundial da Água realizado em Brasília em março deste ano. Como este Fórum é na realidade o Fórum das grandes empresas privadas, a Nestlé e o WRG estavam presentes, dentro do pavilhão oficial da Suíça, junto com organizações como HELVETAS, HEKS/EPER e Caritas Suiça, três das maiores agências de desenvolvimento privadas da Suíça e todas apoiadas pelo SDC. A HEKS / EPER – das siglas em alemão e francês respectivamente – é ligada à Igreja Protestante da Suíça, como a Caritas Suíça é ligada à Igreja Católica. Durante o Fórum, 600 mulheres do Movimento Sem Terra ocuparam por algumas horas as instalações da Nestlé em São Lourenço, Minas Gerais, para chamar a atenção para os problemas causados pela empresa e pelo indústria engarrafadora de água em geral. Nenhuma destas organizações da Suíça manifestou qualquer solidariedade com o MST, nenhuma condenou as práticas da Nestlé, nenhuma sequer mencionou, em seu retorno à Suíça, que esta ocupação tinha acontecido. Mas HEKS /EPER e Caritas Suiça afirmam lutar pelo direito humano à água e “apóiam” os movimentos sociais – mas não quando estes se colocam contra a Nestlé. Em São Lourenço, na região do Circuito das Águas em MG, e em muitos outros lugares no Brasil, há problemas com exploração de água pela Nestlé e movimentos de cidadãos que tentam proteger suas águas. HEKS / EPER tem um escritório no Brasil mas jamais se aproximou dos grupos que, no Brasil, lutam contra a Nestlé.

    O SDC tampouco considera os problemas com a Nestlé em diversas partes do mundo – não apenas no Brasil – como uma razão para reavaliar sua parceria com a empresa. Há problemas muito bem documentados com os engarrafamentos e os bombeamentos de água da Nestlé nos EUA, no Canadá e na França, por exemplo, países considerados democracias  estabelecidas. O que há de comum entre todos eles é que os governos se colocam, sempre, à favor da empresa e contra seus próprios cidadãos. Na cidade de Vittel, na França, a situação é absurda: estudos realizados por órgãos do governo francês indicam que o aquífero de onde a populaçâo de Vittel retira sua água e de onde a Nestlé também coleta a água engarrafada como “VITTEL” se encontra em risco de esgotamento. Não há condições de o aquífero suportar a longo prazo as demandas da população local e da empresa de emgarrafamento da Nestlé. Solução proposta pelas autoridades francesas: construir uma tubulação – pipeline – de cerca de 50 km para buscar a água em uma região vizinha à de Vittel para atender às necessidades da população – deixando à Nestlé à exploração das águas do aquífero!!!

    No condado de Wellington, Canadá, se construiu um grupo local – o Wellington Water Watchers – para proteger suas águas da exploração da Nestlé, que conta com o apoio do governo local para renovar sua  permissão de continuar engarrafando água. Em Michigan, nos EUA, o problema é semelhante. Nada disso parece incomodar o Governo da Suíça, o SDC ou Christian Frutiger – e se tais problemas ocorrem nestes países, o que não poderá acontecer em países bem mais frágeis em sua organização social e política?

    No momento em que escrevo a Europa sofre com uma intensa onda de calor. Há racionamento de água na França, riscos de incêndio em vários locais. Grandes cidades como Paris sofrem com recordes de temperaturas nunca registrados antes e o consumo de água só tende a aumentar. Por outro lado, geleiras derretem cada vez mais e a água se torna cada vez mais escassa. As fontes de águas subterrâneas, muitas das quais fósseis, são uma importante reserva para o futuro e deveriam permanecer intocadas. Mas a ganância das empresas engarrafadoras como a Nestlé adquirem cada vez mais fontes de água. O quadro é o mesmo em todo o planeta – as poucas águas ainda não poluídas se encontram cada vez mais nas mãos de poucas empresas. No Brasil do governo Bolsonaro a situação é ainda mais grave, com um ministro do meio ambiente cuja tarefa é facilitar a tomada dos recuros naturais brasileiros pelo capital estrangeiro. É importante lembrar que o principal acionista do grupo AMBEV é o cidadão suíço-brasileiro Jorge Paulo Lemann que certamente dispõe de excelentes canais de comunicação com o Governo da Suíça.E a AMBEV também faz parte do WRG que, aliás, já abriu o seu primeiro escritório no Brasil para apoiar a privatização da SABESP ( ver mais em https://jornalggn.com.br/sustentabilidade/as-aguas-do-brasil-o-que-vem-por-ai-franklin-frederick/ ).

    O que está acontecendo na Suíça é apenas a ponta do iceberg, a parte visível da articulaçâo internacional das grandes corporações e a tomada do espaço público de decisões políticas pela oligarquia corporativa mundial.  Temos que ficar atentos e nos organizarmos para defender nossas águas, nossa Terra e nossa sociedade.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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