Privilégios ao agronegócio, devastação, intoxicação e morte ditam a nova lei geral de licenciamento ambiental
Ponto grave da Lei Geral de Licenciamento Ambiental é a exclusão dos “impactos indiretos” da definição de área de influência”, ou seja, só serão consideradas para efeito de avaliação de impacto ambiental as áreas inseridas dentro do perímetro do empreendimento
O processo de discussão da Lei Geral de Licenciamento Ambiental, promovido por um Grupo de Trabalho (GT) da Câmara dos Deputados criado especificamente para este fim, tem gerado polêmica entre deputados, ambientalistas e entes dos governos federal, estaduais e municipais. Elaborado pelo deputado Kim Kataguiri (DEM), o relatório extraído deste GT atende às exigências do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM), do agronegócio e de grandes empreendedores, mas não contempla as necessidades de uma nação soberana ou mesmo daquilo que foi acordado durante as reuniões na referida casa de leis.
A começar pelo lugar institucional onde se deu a pauta, já que um tema tão complexo, abrangente e importante exige uma Comissão Especial, e não apenas um GT, como foi o encaminhamento de Rodrigo Maia. Além de promover o debate, uma Comissão demanda a realização de Audiências Públicas; o envolvimento dos diversos segmentos para a discussão e finalmente um processo de votação, com sugestões de emendas em seu relatório final, o que regimentalmente é dispensável no modelo adotado, cujo trâmite foi mais rápido e menos inclusivo.
Ainda assim, os deputados pressionaram com sucesso tanto o coordenador do grupo quanto o presidente da casa, pela realização de um conjunto de Audiências Públicas com os segmentos interessados: ambientalistas, sociedade civil e setores produtivos. Embora tenha havido consenso da necessidade de desburocratizar e agilizar o licenciamento ambiental, para que o empreendedor tenha prontamente e com clareza informações oficiais daquilo que pode ou não ser implementado em determinada área, ou de quais devam ser as compensações adequadas a cada caso, isso não significa que o licenciamento seja desnecessário ou que possa vir a ser mais uma ferramenta permissiva da degradação dos nossos recursos naturais.
Estes pontos precisam ser destacados por uma razão muito simples – o relatório apresentado pelo deputado Kataguiri não condiz com aquilo que foi debatido e com as contribuições apresentadas durante o conjunto de audiências promovidas pelo Grupo de Trabalho. A impressão que se tem, portanto, é de que o texto pode ter sido produzido em outro ambiente, que não à partir das audiências realizadas e coordenadas pelo próprio relator na Câmara dos Deputados. Isso porque o conteúdo final consolida uma proposta que afronta o tripé acordado por unanimidade com todos aqueles que participaram das audiências públicas, inclusive os deputados membros do GT.
Tal tripé consiste basicamente na precaução ambiental, à partir do não retrocesso na legislação ambiental; na participação social, garantindo consultas às comunidades e diálogo com a sociedade e por fim na segurança jurídica, para que o licenciamento não fique parado por muito tempo por intervenção do Ministério Público ou qualquer outro ator durante sua tramitação. Ainda que o relator venha divulgando publicamente em suas redes sociais ter ouvido os diversos segmentos envolvidos, as demandas apresentadas por estes grupos foram suprimidas do documento, o que revela uma desconexão entre o discurso e a prática legislativa.
Esta corrupção no processo de formulação do relatório pode ser vista, por exemplo, no trecho do texto que considera que devem ser consultadas apenas as comunidades quilombolas que já tenham seu processo de titulação aprovado, ou que tenham seu relatório antropológico realizado. Ignora, portanto, que hoje mais de 90% das comunidades quilombolas têm o certificado da Fundação Palmares mas ainda não foram tituladas e portanto não seriam ouvidas no licenciamento de empreendimentos com impacto em seus próprios territórios. O mesmo valeria para povos indígenas que ainda não estão com o processo de demarcação de suas terras concluído.
Outro ponto grave do relatório final é a exclusão dos “impactos indiretos” da definição de área de influência”, ou seja, só serão consideradas para efeito de avaliação de impacto ambiental as áreas inseridas dentro do perímetro do empreendimento. Alguns exemplos que ilustram muito claramente o grave equívoco desta proposta ainda estão frescos na memória dos brasileiros e brasileiras, como os casos do rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho. De acordo com a proposta apresentada pelo deputado Kim, as comunidades afetadas rio abaixo em casos análogos que venham a ocorrer, seja pela água contaminada, pelo rio ou os peixes que morrem ou pela lama que atinge as casas, não seriam consideradas nas análises de impacto ambiental, ficando totalmente desprotegidas pela lei. Além de desumana, a medida causaria enorme insegurança jurídica e ampliaria a judicialização.
A irresponsabilidade do projeto apresentado isenta ainda o licenciamento de empreendimentos como por exemplo, no asfaltamento de uma estrada na Amazônia, ou em outras áreas de preservação. Inúmeras pesquisas científicas nacionais e internacionais já demonstraram que quando uma obra como esta é executada nestes territórios, o desmatamento aumenta de forma vertiginosa, num modelo conhecido como “espinha de peixe”, devido ao desenho que se forma numa vista área da região em questão. Isso acontece porque o Estado não acompanha o asfaltamento com um conjunto de políticas fundiárias e de fiscalização, permitindo ainda mais desmatamento.
Como se não bastasse, o relatório isenta de licenciamento todos os empreendimentos agropecuários. Isso mostra claramente a defesa dos interesses de ruralistas em detrimento do bem coletivo, ou seja, da preservação de nossa biodiversidade para esta e as futuras gerações. Para entender a gravidade da medida, tomemos o exemplo de um empreendimento agropecuário em uma área desmatada próxima à uma unidade de conservação. Com a prática da pulverização aérea, ainda comum no Brasil, diversos tipos de veneno invadem um bioma que deveria estar protegido, matando insetos, abelhas e causando impacto imensurável na fauna e flora. Outro exemplo seria um empreendimento próximo à área de captação de água para abastecimento de uma cidade. Nestes casos, a contaminação chegaria inevitavelmente à nossa torneira, já que o tratamento das companhias de saneamento não elimina traços de agrotóxicos.
Finalmente, num País onde as crises hídricas se intensificam ano a ano, a proposta isenta empreendimentos também do licenciamento e da outorga do uso da água junto ao órgão competente. O uso irresponsável dos recursos hídricos tem provocado a seca de rios e o desabastecimento de cidades inteiras, como aconteceu recentemente no interior da Bahia. Há ainda o fim da participação do IPHAN nos processos de licenciamento; dispensa para vários segmentos da construção civil entre outros pontos igualmente graves. Não é preciso ser um especialista para perceber que o conjunto de medidas apresentadas no relatório do deputado Kim Kataguiri configura um dos maiores crimes ambientais e contra a população brasileira desde a redemocratização do País, além de uma afronta ao processo legislativo e democrático, do qual se mostrou um irresponsável desafeto.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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