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Lincoln Secco

Professor do departamento de história da USP, é autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê)

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PT — uma história

Comentários sobre o livro de Celso Rocha Barros

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva 30/07/2024 (Foto: REUTERS/Adriano Machado)

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Do A Terra É Redonda

O PT é um partido sui generis ou uma típica agremiação social democrata de estilo europeu?

Quando o partido surgiu, os países centrais atravessavam mudanças fundamentais que afetaram sua base social tradicional de operários e trabalhadores de classe média: automação, novas técnicas de gestão, incorporação da telemática, fragmentação das cadeias produtivas, a crise fiscal do Estado, a queda da taxa média de lucro, a globalização e o neoliberalismo.

A social democracia estava no fim dos seus anos de glória iniciados ao fim da II Guerra Mundial. Se antes sua hegemonia impunha limites aos seus adversários, a partir da década de 1980 ocorreu o inverso. Afinal, quem implantou a política econômica neoliberal foi tanto a esquerda socialista de François Miterrand na França e Felipe González na Espanha, quanto a “nova” direita de Margaret Tatcher na Grã-Bretanha e de Ronald Reagan nos Estados Unidos.

Na América Latina o neoliberalismo se implantou na década seguinte com formas mais violentas. Quando os novos membros latino-americanos chegaram ao clube, carregaram o ônus da austeridade sem o bônus do Welfare State. Isso se traduziu num consenso frágil e efêmero que logo deu lugar à onda progressista do início do século XXI.

Por outro lado, a experiência de um partido de sindicalistas, católicos e grupos marxistas dissidentes afastou o PT nos anos 1980 de qualquer vínculo com o socialismo real. Embora a União Soviética ainda existisse e ninguém previsse seu fim próximo, ela também não oferecia mais um modelo de sociedade. Num contexto como aquele era de se esperar que os petistas recusassem tanto a chancela de comunistas como a de sociais democratas. A ideia de socialismo em suas sucessivas resoluções foi vaga e indeterminada.

O livro de Celso Rocha Barros perpassa os grandes debates internos dos anos 1980 e a travessia no deserto das derrotas da década de 1990. O autor mostra um PT que não estava predestinado a “dar certo”. Em alguns momentos ele repete: “o PT era muito fraco”; “o PT tinha tudo para dar errado”. Observa as crises das primeiras gestões municipais em virtude da divisão interna, indefinições ideológicas e falta de experiência. Celso Rocha Barros considerou um erro o PT não ter ido ao Colégio Eleitoral em 1985 e mostra que o PDT ajudou a eleger indiretamente Tancredo Neves e, ainda assim, foi competitivo em 1989, quase indo ao segundo turno.

Para o autor a disputa entre Lula e Leonel Brizola mostrava que a ascensão do PT a principal partido de esquerda brasileiro não era algo dado de antemão e se Brizola tivesse vencido em 1989 formaria um partido de âmbito nacional a partir do Estado e de cima para baixo, seguindo a velha tradição trabalhista. Ao mesmo tempo, Leonel Brizola não venceu exatamente porque não tinha aquele partido: “Embora o PT estivesse longe de ser a máquina bem ordenada das décadas seguintes, já era capaz de oferecer um mínimo de estrutura a Lula” (p. 155).

Leonel Brizola teria que resolver a quadratura do círculo, isto é: chegar ao poder para ter um partido, mas antes ter o poder para criar um partido. Esqueceu que Getúlio Vargas foi o revolucionário de 1930 antes de criar o PTB e ser o candidato de 1950. A votação de Brizola foi expressiva no Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, Estados que ele já havia governado, mas teve 1,5% dos votos paulistas. Conclui o autor: “Ninguém se torna presidente do Brasil com apenas 1% do eleitorado paulista” (p. 156). Para ele, “parte importante do crescimento petista em sua origem havia se dado por conta do espaço vazio que Getúlio Vargas havia deixado em São Paulo” (p. 157).

O fato é que em 1989 o PT venceu o PDT no primeiro turno, mas não foi capaz de vencer o candidato direitista no segundo turno. O autor questiona a recusa do apoio de Ulysses Guimarães que, para ele, provavelmente teria garantido a vitória de Lula (p. 159), apesar da pífia votação obtida pelo PMDB.

A narrativa do livro reforça a abordagem típica da ciência política de que, inicialmente, o PT foi um partido operário e da classe média progressista que se espraiou a partir das greves metalúrgicas do ABC paulista e do seu entorno político. Entretanto, houve também a experiência de um partido que brotou em diversos pontos do país a partir de movimentos locais próprios. Ainda assim, a importância da Igreja Católica progressista e sua abrangência nacional foram bem aquilatadas no livro de Celso Rocha Barros. Como ele disse: a importância do catolicismo para a história do PT “é imensa” e os católicos, enquanto grupo, não se deixaram absorver pelo PT ou por suas tendências. O autor registra também as primeiras organizações de homossexuais e sua dinâmica interna, o movimento negro e o das mulheres.

A principal tese do autor é a de que “a história do PT deve ser entendida como parte do movimento global de formação de partidos operários, que (…) engendrou grandes legendas sociais democratas” (p. 54). Ele cita dois historiadores marxistas em apoio a essa ideia: Perry Anderson e Eric Hobsbawm. Para Celso Rocha Barros, no início da década de 1990 “o PT iniciara sua transformação em um partido de massas, semelhante aos partidos europeus baseados em sindicatos, que priorizaria vencer as eleições” (p. 181).

Celso desenvolve, em diálogo com meu livro História do PT, a tese de que o PT teve muito menos tempo para o seu aggiornamento social democrata do que os partidos europeus e expandiu sua base eleitoral não para a classe média e sim para os trabalhadores informais e de baixa renda. O que fez toda a diferença na sua história a partir do século XXI. Mas Celso Rocha Barros acrescenta àquela ideia, adstrita às classes sociais, a dimensão política. Ele demonstra que “o centro do qual os social democratas europeus se aproximaram no século XX era muito menos hostil à esquerda do que o centro em direção ao qual o PT tentaria se mover a partir dos anos 1990” (p. 183).

A social democracia remonta ao século XIX, mas sua experiência de governo decisiva (com algumas exceções) é posterior à Segunda Guerra Mundial e coincide com os trinta anos de crescimento econômico mundial. Essa experiência em muitos casos foi mais indireta do que direta. Fora da Escandinávia solidamente social democrata o Welfare State foi erguido por conservadores acuados pelos sindicatos e partidos reformistas da esquerda.

Em algum momento dos anos 1950 os políticos no poder dos principais países que representaram o pacto social democrata eram conservadores: Harold MacMillan (Gran Bretanha), De Gaulle (França), Adenauer (Alemanha Ocidental), Diefenbaker (Canadá) e os primeiro ministros democrata-cristãos italianos. Nenhum ousou desmantelar políticas sociais e a presença de uma oposição de esquerda de massas foi a condição sine qua non para isso.

Em nosso caso, Celso Rocha Barros diz: “Se o PSDB tivesse vencido a eleição de 2002, é provável que também utilizasse ao menos parte do crescimento proporcionado pelas commodities para retomar o investimento público (…). Por mais que petistas e tucanos reclamem da conclusão, os investimentos realizados pelos governos do PT e o ajuste da década de 1990 formam uma sequencia natural e de razoável sucesso” (p. 280).

Exatamente por isso, a visão que o autor tem do papel de Antonio Palocci é a de que foi “um dos grandes ministros da fazenda da história do Brasil” (p. 269) que ao sair do governo deixou a situação fiscal equilibrada, encaminhou reformas microeconômicas (da previdência à lei de falências), juros em queda e a dívida atrelada ao câmbio zerada. José Dirceu não teve a mesma sorte porque não teria havido um “plano real do sistema político”.

O autor elaborou uma síntese notável. Passamos assim pelo Plano Real e as mega privatizações que mudaram a estrutura patrimonial do capitalismo no Brasil (para o autor algumas delas foram boas, como no caso da telefonia; outras foram menos vantajosas, como a da Vale). Assistimos ao PSDB e ao PT tentando “comandar o atraso” do PFL, PMDB e agregados menores; o estelionato eleitoral de 1998, a vitória de Lula em 2002 e, a partir daí, uma história que é menos a do partido e mais a do governo e dos seus interlocutores políticos. Abandonamos os calorosos confrontos dos congressos do PT e viajamos para Brasília.

O autor sustenta essa opção no fato de que o “escândalo do mensalão” e a queda de Dirceu e Palocci deixaram o partido totalmente à mercê do Palácio do Planalto. Há uma ótima discussão da combinação do tripé macroeconômico tucano (câmbio livre, superavit primário e metas de inflação) com as fundamentais políticas sociais petistas, da retomada do papel indutor do Estado no segundo mandato do PT e da Nova Matriz Econômica de Dilma Rousseff. Tudo em linguagem para mortais e não para economistas.

A escrita ganha velocidade a partir da crise de junho de 2013 que, para o autor, não encontrou “expressão política institucional significativa” (p. 315). Aqui surge uma tese polêmica. A apropriação de grande parcela do rescaldo de junho pela direita é um fato. O Movimento Brasil Livre (MBL) foi o exemplar mais característico. Contudo, diz o autor que “Essa ‘nova direita’ poderia ter sido um fenômeno positivo. Por mais toscas que fossem suas formulações, era um embrião de uma direita política formada fora do Estado, o que era raro na história brasileira[i]. Se a democracia do país continuasse se consolidando, esse radicalismo de direita poderia ter sido canalizado em um projeto político consistente, como havia ocorrido com o PT ao longo de décadas” (p. 324).

Mas aconteceu algo que mudou tudo: o fracasso da austeridade fiscal do terceiro governo petista, a decepção de parte da sua base social e a disputa com o Congresso abriram uma crise de governo. Segundo o autor (p. 328), em março de 2016 o MBL percebeu uma movimentação nas redes virtuais em favor de atos contra Dilma Rousseff e deduziu que fosse uma iniciativa do Psol. Para se antecipar e roubar daquele partido a bandeira de uma oposição alternativa ao PT, o MBL convocou as manifestações de 15 de março de 2016, dando início ao processo que levaria ao golpe de 2016. Celso reconhece que o impeachment foi uma “falcatrua, uma manobra espúria”, mas não um golpe. Para ele, essa palavra deve ser preservada para designar o “tipo de coisa” que Jair Bolsonaro tentou fazer no Brasil: “uma intervenção violenta, seja da parte do Exército, das polícias ou de milícias particulares, para estabelecer um governo inconstitucional” (p. 345).

Estruturado em 16 capítulos, o livro não tem uma periodização explícita. Apesar da extensão (afinal são quase 500 páginas), acompanhamos a trajetória do PT desde a fundação até o início da campanha de 2022 conduzidos por um autor que lida com recursos novelescos, usa o flash back quando introduz suas personagens, a primeira pessoa se necessário e a segunda pessoa para invocar a cumplicidade com quem lê as partes mais intrincadas das disputas internas do PT. Ele percorreu inúmeras fontes, teses, livros, artigos de jornal e, particularmente, entrevistas com dirigentes do PT, políticos de outros partidos, técnicos do governo, acadêmicos e jornalistas.

Ao fim parece haver a saudade de um mundo político que não subsistiu. O autor se situa numa zona comum de (des) entendimento entre tucanos e petistas. Intelectualmente honesto, Celso Rocha Barros expõe suas contribuições sem deixar de reconhecer outras. Fez um livro acima de tudo aberto ao debate.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê). [https://amzn.to/3RTS2dB]

Publicado originalmente na Revista Teoria e Debate

Referência

Celso Rocha Barros. PT: uma história. São Paulo, Companhia das Letras, 2023, 486 págs. [https://amzn.to/3XoD8yd]

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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