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    Luiz Fernando Padulla

    Professor, biólogo, doutor em Etologia, mestre em Ciências, autor do blog 'Biólogo Socialista'

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    Reflexões do cotidiano

    E logo penso novamente como meus incômodos, ainda que legítimos, são pequenos e insignificantes perante o que passa o povo palestino e sírio

    Primeiro dia de férias. Acordo cedo conforme o programado para levar meu carro para trocar os pneus. E nisso se vai o 13° (junto às vacinas anuais que minhas filhas caninas precisam e levarei amanhã).

    Chego cedo, deixo o carro e me dirijo até uma praça, a um quarteirão da loja para sentar em um banco, descansar e ler meu livro que, conforma planejado, eu leria enquanto aguardava o serviço finalizar. Um bom momento para arejar a cabeça e desconectar um pouco das notícias que chegam de Gaza e da Síria.

    Praça, bancos, pássaros, sombra, silêncio. Era isso que esperava encontrar.

    Bancos praticamente retos, com ligeiras ondulações que delimitam quatro lugares. mas sem encosto! Em pleno ano de 2024 e colocam bancos sem encostos. Tudo bem. Tentarei praticar minha isometria e manter a postura.

    Temperatura agradável. Ouço pássaros e logo me atento que a praça fica de frente a um hospital. E o livro que leio fala sobre o nojo. O vento sopra (contrário ao hospital...se os germes e vírus estão ali, não chegarão até mim).

    Silêncio. Entre um ou outro pedestre que passa, alguns me olham com desconfiança...ou seria minha percepção? Afinal, pela vida de (sobre)vivência que levo - casa, escola, casa- talvez tenha desaprendido a conviver em sociedade?

    Penso que pode ser por minhas tatuagens que se revelam pela bermuda e são consideradas subversivas. Ou por verem esse tatuado com um livro de capa preta e marcador de fita vermelha nas mãos que parece uma bíblia. Não, isso não seria motivo de espanto nessa cidade reacionária e praticamente teocrática neopentecostal.

    Acho que o espanto mesmo é por eu estar lendo um livro. E enquanto isso, outros transeuntes alienam-se e são consumidos pelo algoritmo de suas telas. Ler hoje em dia, portar um livro é tão raro e diria até mesmo perigoso, como na distopia Fahrenheit 451.

    O silêncio permite observar pássaros que se refestelam nas folhagens recém caídas. Cantos inaudíveis em nosso dia a dia (causados pela correria, pelas demandas de nossa exigida performance diária, da maldita escala 6x1 na grande maioria das vezes) surge como melodia. Lembro de um livro infantil da época do colégio chamado "Barulhinhos do silêncio".

    Mas isso logo acaba. Um senhor senta-se em um banco próximo ao meu e começa a ver vídeos em um som que impossível de ignorar. Falta de noção?

    Curiosamente, leio um trecho que me faz contestar esse comportamento sobre a exigência moral: "respeitar a ignorabilidade dos outros e se comportar de maneira a se tornar ignorável”. Tal como o capitalismo, isso falhou, falha e falhará!

    E quando ele se vai depois de alguns minutos, surge o jardineiro com seu assoprador. Mais do que me irritar o barulho, levo a indagação contraditória: por que esse trabalhador não varre com uma vassoura? Além do barulho ensurdecedor, a queima do diesel (ou seria gasolina?) emite uma fumaça intragável (lembro do livro que leio) e poluente. Penso em qual seria a contribuição na emissão de gases do efeito estufa dessas máquinas. Mas é claro que isso facilita a vida deste trabalhador, e quem sou eu para contestar. Talvez ele veja como um playboy que em plena terça-feira está de bermuda, sentado em uma praça, lendo enquanto ele trabalha (e com certeza deve ser explorado pela escala 6x1).

    O sol se ergue. Saio do banco e procuro outro em que a sombra agradável ainda se faça presente. Aumenta o tráfego de pessoas. Inevitavelmente sinto os mais variados odores. E talvez por ser logo cedo, todos cheiros agradáveis. Perfumes, desodorantes, sabonetes. E lembro novamente do livro.

    Neste banco parece mais tranquilo. Pausa no assoprador. Mas aí um aspirador do lava-rápido toma o posto, junto com o motor de um caminhão estacionado. Leio mesmo assim.

    Volta o assoprador. Ao mesmo tempo que fico incomodado, tenho pena pelo rapaz. Rapaz esse que parece um ex-zagueiro do Atlético Mineiro. Muitos "gratiluz" falariam que ele tem que agradecer por ter um trabalho. Mas será mesmo assim? E não só ele, mas tantas caras e histórias que passam nessa praça. Será mesmo que temos que aceitar e agradecer ou devemos ser insatisfeitos e lutar por melhorias coletivas, ainda que o mundo preze essa ideia individual?

    Saio do caminho pelo qual o assoprador indica passar. Mudo de banco novamente. A leitura já fica comprometida. Insisto. Em um banco próximo, duas senhoras conversam. E riem risadas gostosas, sem a presença de celulares. O velho, bom e humano olho no olho. Como é bonito ver isso hoje em dia!

    E logo penso novamente como meus incômodos, ainda que legítimos, são pequenos e insignificantes perante o que passa o povo palestino e sírio. O barulho que incomoda para a leitura é o silêncio que eles desejariam. A comodidade desse banco que me incomoda fazendo mudar e mudar a postura tantas vezes, é o que os deixariam felizes. E eu aqui reclamando. 

    Mas que tem coisa errada que precisa ser mudada, esse barulho em meu íntimo ninguém silenciará.

    Desisti da leitura e voltei para o banco na sombra - que já está ameaçada pelo sol. Pego meu celular e escrevo esses relatos. Sim, cai na armadilha do celular. Meu desejo era rabiscar tudo em um papel, mas esqueci de trazer meu bloco e caneta. E talvez isso seria demais nessa sociedade tecnologicamente manipulada.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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