Reportagem do Estadão “esquece” que saúde não é mercadoria; advogados alertam para lobby das operadoras
Matéria comemora a pujança comercial de uma área que não deveria estar sujeita às regras do “deus mercado”
A onda de fusões na saúde movimentou 20 bilhões de reais em um ano e aqueceu o setor. A manchete de segunda-feira (14) no site de “O Estado de S. Paulo” comemora a pujança comercial de uma área que não deveria estar sujeita às regras do “deus mercado”. A razão é simples: saúde não é mercadoria.
A reportagem informa que o setor de saúde é atualmente líder de um certo ranking de fusões e aquisições, sinal da atuação “robusta” de certas empresas da área. Do início de 2021 até agora houve nada menos que 150 transações do tipo, diz o jornalão. O trato que o tema merece é o mesmo conferido aos setores fabricantes de biscoitos ou pneus, por exemplo.
Destacam-se na matéria a fusão entre as operadoras de saúde Hapvida e NotreDame Itermédica, que gerou uma empresa cujo valor de mercado é 80 bilhões de reais, e a compra da seguradora SulAmérica pela operadora de hospitais Rede D’Or, negócio de 10 bilhões de reais. Não há menção ao que os pacientes ganham com isso.
Mesmo se saúde for considerada simplesmente uma área do mercado, e não um direito constitucional de todos os cidadãos, a onda de fusões e aquisições não pode ser vista como algo positivo, pois se criam neste momento monopólios e se afronta o princípio da livre concorrência em prejuízo dos consumidores.
Outro fato preocupante ocorre quando operadoras de saúde passam a ser donas dos hospitais que compõem sua rede ou quando redes de hospitais, como a Rede D’Or, passam a operar planos de saúde.
“Quando o hospital pertence ao próprio plano de saúde, tem-se a parte que presta o atendimento pertencendo a quem vai pagar por esse atendimento. Isso pode gerar um prejuízo o serviço ao consumidor em razão do conflito de interesse que existe nessa relação”, alerta o advogado Marcos Patullo, especialista em saúde suplementar e pesquisador do Cepedisa (Centro de Estudos e Pesquisas em Direito Sanitário).
O conflito é óbvio.
De outra parte, explica Patullo, “quanto mais concorrência, maior a tendência de que haja um atendimento de qualidade, e o inverso também é verdadeiro: diminuindo a concorrência, você tem um prejuízo na qualidade do serviço”.
Na verdade, o que o advogado observa é a regra básica da economia liberal, norma que os liberais brasileiros parecem não fazer questão de ver aplicada ao “mercado” da saúde.
A conversa torna-se ainda mais grave quando se relaciona tal movimentação mercantil com a destruição do sistema público de saúde. Quem alerta é o advogado Fernando Aith, professor titular da Faculdade de Saúde Pública da USP: “O setor privado, ao mesmo tempo que aumenta sua participação no sistema de saúde, faz um lobby pesado pela desregulação do setor – é isso que estamos vendo no Brasil”.
É por isso que o paciente, muitas vezes, precisa brigar na Justiça para que seu convênio médico cubra determinado procedimento ou que a mensalidade do seu plano não suba muito acima do que seu bolso suporta”, denuncia Aith.
“Eliminam-se controles de preços e normas legais de qualidade e prestação mínima de serviços, permite-se ao setor de saúde suplementar manter uma rede referenciada mínima de prestadores. Com essas facilidades, o sistema privado cresce cada vez mais num ambiente desregulado, e o sistema público vai encolhendo por falta de financiamento”, denuncia Aith.
O resultado, como se sabe, é uma população desassistida. Uma população que, quando tiver um problema de saúde e procurar o SUS, vai encontrá-lo depauperado, e que, quando buscar a solução no sistema privado, não vai conseguir atendimento satisfatório pelo valor que pode pagar.
“Com o crescimento dos governos liberais, ou ultraliberais, o que vemos é uma aceleração desse processo de privatização dos sistemas de saúde, com um encolhimento cada vez maior dos sistemas públicos, sejam eles universais, como o brasileiro e o canadense, ou securitários, como o francês”, aponta Fernando Aith.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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