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    Carlos Carvalho

    Doutor em Linguística Aplicada e professor na Universidade Estadual do Ceará - UECE.

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    Réquiem para Cassundé

    A professora Cassundé foi para mim a mais perfeita tradução de como a vida deve ser vivida. Parafraseando Manuel Bandeira, imagino Cassundé chegando ao céu

    Manuel Bandeira (Foto: Divulgação)

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    Quando cheguei para trabalhar no Colégio Marista Cearense, nos idos dos anos 2000, e o vi por dentro pela primeira vez, tive a impressão de estar entrando em uma daquelas cidades descritas por Ítalo Calvino, no livro As cidades invisíveis (1990). Eu não escolhera trabalhar naquela escola, mas senti desde o primeiro minuto que ela havia me escolhido, pois fui por ela abraçado desde então. E assim ficamos por quase dez anos.

    Na primeira reunião de professores, quando fui apresentado ao grupo, a professora Maria de Jesus Cassundé me disse da sua satisfação em me receber naquela escola. Eu ainda era bem jovem, enquanto ela já havia entrado na melhor idade. As palavras de boas vindas ditas por ela me marcaram o coração de uma forma que jamais esquecerei. Havia algo naquela senhora, professora de matemática por anos naquele Colégio, fincado no coração da cidade, que emanava uma energia que poucas vezes eu sentira. Uma amizade para lá de agradável nascia ali, como se já nos conhecêssemos há tempos. A professora Cassundé foi para mim, a mais perfeita tradução de como a vida deve ser vivida. Ela era, em todo seu esplendor, uma cidade que Calvino jamais poderia imaginar.

    Sob os olhos centenários do prédio, costumávamos conversar sobre suas viagens, as missas que frequentava e, como não poderia deixar de ser, desse ou daquele aluno mais “difícil”. Era com ela que praticava meu francês, gastando a meia dúzia de frases que aprendi na minha vã ilusão de ler Stendhal no original. Entre uma conversa e outra, ela sacava a gaita do bolso da calça e tocava La vie em rose. Quando isso acontecia, eu tinha a impressão que o mundo, assim como eu, parava para ouvi-la. Mas era apenas impressão, pois também havia quem a considerasse “esquisita” e até a evitasse, por ela ser apenas ela. Que se danem, pensava, pois eu sabia que a professora Cassundé habitava outras dimensões, aquelas em consonância com a simplicidade das coisas, a beleza da vida e a compreensão do sagrado.

    Antes da pandemia, nos encontramos no centro da cidade e nos entregamos a quase uma hora de conversa e rememorizações. De lá pra cá só a reencontrei mais uma vez. Na ocasião, ela contemplava o verde do mar de Iracema quebrar na areia. Era uma tarde calma de um ano que já nem sei. No último dia 27, logo pela manhã, meu coração foi sacudido com a notícia de que a professora Cassundé partira sem dizer adeus. E eis que eu, parafraseando Manuel Bandeira, imagino Cassundé chegando ao céu e pedindo licença para entrar. E São Pedro bonachão dizendo: Entra, Cassundé. A casa é sua. Mais que de repente, Cassundé saca a gaita do bolso e toca La vie em rose. Agora não tenho mais aquela impressão, mas a certeza de que os céus pararam para ouvi-la.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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