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    Valério Arcary

    Valério Arcary é historiador e membro da Coordenação Nacional do Resistência/PSOL.

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    Revoluções ainda são possíveis?

    'Marx e Engels prefiguram alguns dos elementos que serão chaves para compreender revoluções', escreve o colunista Valério Arcary

    Karl Marx (Foto: Reprodução)

    Publicado originalmente no site A Terra é Redonda

    “Quando após junho travou-se em Paris a primeira grande batalha pelo poder entre o proletariado e a burguesia, quando a própria vitória de sua classe abalou a burguesia de todos os países a tal ponto que ela novamente se refugiou nos braços da reação monarco-feudal que mal vinha de ser derrubada, não podíamos ter nenhuma dúvida, nas circunstâncias de então, de que começara o grande combate decisivo, de que era necessário travá-lo em um só período revolucionário longo e cheio de alternativas, mas que só podia terminar pela vitória definitiva do proletariado (…) A história nos desmentiu, bem como a todos que pensavam de maneira análoga, Ela demonstrou claramente que o estado de desenvolvimento econômico no continente ainda estava muito longe do amadurecimento necessário para a supressão da produção capitalista; demonstrou-o pela revolução econômica que, a partir de 1848, apoderou-se de todo o continente (…) tornando a Alemanha um país industrial de primeira ordem, tudo isso em bases capitalistas, o que significa que essas bases tinham ainda, em 1848, grande capacidade de expansão” (Friedrich Engels. Introdução à As lutas de classe em França).

    Em 1895, Friedrich Engels admitiu que as expectativas que ele e Karl Marx alimentaram sobre a França foram frustradas. As hipóteses que ele e Marx fizeram sobre a dinâmica das revoluções em Paris, tanto em 1848, quanto em 1871, foram exageradas. Concluíram que as revoluções anticapitalistas seriam “revoluções de maioria”, mas, não por isso, menos difíceis. Não nos deve surpreender que as gerações marxistas que herdaram a defesa do seu legado tenham cometido, também, erros por excesso de otimismo.

    Revolucionários são militantes que têm “pressa”. A aposta no projeto de transformação socialista repousa numa “esperança suspensa no tempo”. O mundo em que vivemos é demasiado cruel para que possamos nos refugiar em um ceticismo “inteligente”. Deixemos o pessimismo para dias melhores, cunhou Frei Beto.

    Mas enunciemos a questão: a elaboração marxista que reconhecia, em um grau de abstração elevado no Prefácio da Contribuição para a crítica da economia política, a abertura de uma época de revolução social, ou seja, um período mais ou menos longo, em que as condições objetivas, no sentido de condições econômico-sociais estariam maduras, nos países mais avançados, desde meados do XIX, permanece uma inspiração para os socialistas do século XXI? Numa palavra: revoluções ainda são possíveis?

    Um dos maiores perigos da investigação marxista é o anacronismo. Não é um erro incomum porque é muito difícil nos desembaraçarmos das ideias do nosso tempo. Elas dominam nossas mentes, às vezes imperceptivelmente. Somos por elas conduzidos, como crianças na praia são arrastadas pela força das marés, e se descobrem, surpreendidas, muito longe do local que na areia deveria ser o seu ponto de referência. São uma parte inelutável do que nos define.

    Os artigos de Karl Marx que Friedrich Engels reúne em 1895 sob o título de As lutas de classe em França, e para os quais escreve a famosa Introdução, que ficou conhecida como o seu testamento político, vão além de uma interpretação histórica, e aprofundam uma teoria sobre a alienação, esboçada nos Manuscritos e radicalizada em A Ideologia Alemã sobre os limites da consciência social. Problematizam ideologia como ocultamento de uma realidade contraditória e invertida. Ou seja, como uma representação imaginária do real. Em outras palavras, reconhece que as classes em luta fazem a história, mas combatem em um terreno definido pelos limites que as ideologias do seu tempo estabelecem: combatem em um terreno de ilusões.

    A referência clássica para a discussão sobre ideologia e consciência de classe é o trabalho de György Lukács de 1922, que mais pelas suas virtudes do que pelas suas limitações, foi severamente criticado, até por ele mesmo, com amargura, como se pode conferir nesta passagem do prefácio de 1967, como sendo uma ideologização hegeliana do proletariado, e portanto uma concessão a uma visão “finalista” da história.. Quarenta e cinco anos depois, sob o impacto de mais duas décadas de relativa passividade e pacto social no Ocidente, o velho Lukács, iria admitir que talvez a sua obra de maior significado teórico, estivesse prenhe de uma visão teleológica do protagonismo do proletariado. Talvez, por outro lado, o intervalo histórico, para uma avaliação definitiva, ainda seja demasiadamente curto. Talvez, não.[i]

    Friedrich Engels confessa, na “Introdução”, que as avaliações que ele e Marx partilhavam no calor do processo da Comuna de Paris em 1871, não eram imunes às pressões das circunstâncias. Mas o anacronismo pode, por assim dizer, ter mão dupla. E é tão perigoso um deslocamento das ideias do contexto histórico em que estão inseridas, o que diminui, invariavelmente, o acontecimento, o processo, o autor ou a obra, divorciados das relações que os explicam, projetando sobre o passado um conjunto de inquietações do presente que lhe são estranhas, quanto o inverso. Ser marxista não é repetir o que os clássicos escreveram. Trata-se de entender como pensavam.

    O famoso testamento é uma inflexão nas indicações que Marx, e o próprio Engels, tinham antes elaborado sobre as relações entre os tempos históricos e os tempos políticos da transição pós-capitalista. A ideia mais valiosa é a compreensão da revolução socialista como uma revolução de maioria. Essas reflexões novas tinham como referência a realidade do partido alemão que havia, pela primeira vez, conquistado influência de massas e passava a ser um elemento objetivo da grande política. Mas não se encontrarão nele antecipadas, avant la lettre, as discussões programáticas que dividirão vinte anos depois o marxismo de forma irreversível entre reformistas e revolucionários. Essa linha de interpretação já foi ensaiada e seus resultados não são convincentes.

    Mas não foi, gratuitamente, que se buscou nos seus escritos, um ponto de apoio para controvérsias de hoje. O peso do passado, e das ideias do passado, governam a imaginação do presente, e cada geração tem o seu desafio próprio de reinterpretar a memória da tradição, o que é legítimo e necessário. No entanto, toda tradição teórico-política, em especial a marxista, deveria estar em “aberto”, no sentido de que é uma obra em construção, portanto, permanentemente em disputa. O recurso aos argumentos de autoridade tem, todavia, os seus limites. Mas seria ingênuo ignorar que a tentação é grande, porque a presença de Marx ou Engels, como aliados ou adversários, engrandece qualquer exposição. O conhecimento histórico é sempre e somente um conhecimento do passado.[ii]

    Já em 1848, quando da redação do Manifesto, o tema da atualidade da revolução é inseparável de outras avaliações, que orientam o pensamento político de Marx e Engels sobre as hipóteses estratégicas. E sobre os tempos, as tarefas e os sujeitos sociais da revolução que prevêem estar no horizonte. E, mais interessante, eles preveem um processo revolucionário na forma de duas ondas: porque trabalham o conceito de época associado ao de etapas, um subperíodo no interior das épocas, que corresponde à sobreposição de tempos determinada pelo desenvolvimento econômico-social desigual (os atrasos históricos impostos pelas forças de inércia social); e também pela diversidade de caminhos da evolução política (a hesitação ou resistência burguesa em mergulhar na via revolucionária.

    Encontramos uma reflexão sobre o modelo da grande revolução francesa, a fórmula jacobina, que teria revelado a existência de tendências internas à dinâmica do processo revolucionário, que se desenvolve em permanência, e que se traduzirá na Mensagem de 1850 à Liga dos comunistas, na defesa da necessária radicalização ininterrupta da revolução democrática em revolução proletária, isto é, a perspectiva da revolução permanente.[iii]“Mas essas reivindicações não podem satisfazer de nenhum modo ao partido do proletariado. Enquanto os pequenos burgueses democratas querem concluir a revolução o mais rapidamente possível (…) os nossos interesses e as nossas tarefas consistem em tornar a revolução permanente até que seja eliminada a dominação das classes mais ou menos possuidoras, até que o proletariado conquiste o Poder do Estado, até que a associação dos proletários se desenvolva, não só em um país, mas em todos os países predominantes do mundo, em proporções tais que cesse a competição entre os proletários desses países, e até que pelo menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos do proletariado. Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; não se trata de atenuar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; não se trata de melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova”.[iv]Existe, entretanto, uma polêmica de interpretação histórica sobre as expectativas que Marx mantinha quando da redação da mensagem em relação ao papel que a burguesia poderia ou não cumprir no processo revolucionário.[v] A leitura que parece ser mais amplamente documentada e rigorosa, nesta como aliás em outras controvérsias marxológicas é a de Hal Draper:[vi] “A burguesia recusa-se a “cumprir o seu dever”. Vimos com que segurança Marx e Engels previram que a burguesia não tinha alternativa senão levar a cabo uma revolução política que a colocaria no poder e introduziria um regime constitucional-liberal. Vimos que eles tinham plena consciência de quão tímida era esta burguesia e do quanto temia a ameaça do proletariado por trás dela; mas isto ainda não os levou a concluir que a burguesia poderia recusar-se a levar a cabo a sua tarefa histórica. Sugeriu-lhes que a tarefa inicial do proletariado (ou “do povo”) poderia ser empurrar a burguesia por trás. Mas de uma forma ou de outra, o resultado seria “não o que a burguesia apenas quer, mas antes, o que eles devem fazer”. “Foi apenas no decurso da própria revolução que descobriram que a burguesia não reconhecia o “deve”.[vii]

    Ou seja, pelo menos durante os anos da revolução de 1848, alimentavam duas perspectivas que estavam articuladas entre si: (a) a compreensão de que a luta contra o absolutismo e pela democracia só poderia triunfar com métodos revolucionários, isto é, a necessidade de uma revolução pela democracia, que é analisada na Mensagem, em especial para a Alemanha, mas o critério era o mesmo para a França, como a ante-sala da revolução proletária, do que se deve concluir um programa de luta por duas revoluções, ou duas ondas de um processo ininterrupto, ainda que com um intervalo abreviado entre ambas; (b) a compreensão de que existe um desafio histórico a ser vencido: a construção da independência política de classe, condição sine qua non, para que a engrenagem de radicalização que, grosso modo, poderia ser qualificada como a “fórmula jacobina”, não resulte em um estrangulamento da revolução proletária, ou seja, em um novo thermidor, e ao contrário, garanta a mobilização contínua dos trabalhadores pelas suas reivindicações e antecipe e abrevie o intervalo entre as duas revoluções.

    Na apreciação de Friedrich Engels que apresentamos a seguir existem vários elementos que merecem atenção. Em primeiro lugar, uma avaliação da dinâmica de permanência da revolução que se apoia na premissa de que as revoluções burguesas eram revoluções de minoria que necessitavam, sim ou sim, de mobilizar as maiorias para o seu projeto de conquista do poder, para assegurar a derrota do Ancien regime. Mas, uma vez garantida a vitória, se desembaraçavam dos seus dirigentes mais radicais.

    O esgotamento das energias revolucionárias do povo, que depois da fase de maior entusiasmo, mergulhavam em um intervalo de cansaço ou depressão permitia a estabilização social. Conseguiam consolidar as conquistas vitais da primeira fase moderada, e reverter as concessões radicais da segunda. Entre os elementos objetivos (a necessidade histórica) e os subjetivos (o cansaço da mobilização popular, e os excessos dos radicais), Friedrich Engels define os primeiros como decisivos, e os segundos como “poeira da história”, ou “gritos de traição ou má sorte”.

    Veremos como esta dialética das causalidades se inverte, quando, na mesma “Introdução”, Friedrich Engels se refere às novas dificuldades que antevê diante das revoluções proletárias, as revoluções de maioria: “Após o primeiro grande êxito, a minoria vitoriosa costumava cindir-se: uma das metades estava satisfeita com os resultados obtidos; a outra desejava ir adiante, apresentava novas reivindicações que, ao menos em parte, correspondiam ao interesse real ou aparente da grande massa popular. Essas reivindicações mais radicais também se impunham em certos casos, mas, frequentemente, apenas pôr um instante; o partido mais moderado tornava a obter a supremacia e as últimas conquistas eram outra vez perdidas no todo ou em parte; os vencidos gritavam então que houvera traição ou lançavam à má sorte a responsabilidade da derrota. Realmente, entretanto, quase sempre os fatos se passavam assim: as conquistas da primeira vitória só eram asseguradas pela segunda vitória do partido mais radical; uma vez obtido isto e, portanto, alcançado o que era necessário, no momento, os elementos radicais abandonavam a cena e seus êxitos os seguiam. Todas as revoluções dos tempos modernos, a começar pela grande Revolução Inglesa do século XVII, apresentaram essas características que pareciam inseparáveis de qualquer luta revolucionária. Elas também pareciam aplicáveis às lutas do proletariado por sua emancipação”.[viii]

    O primeiro prognóstico histórico não se confirmou. A segunda metade do XIX demonstrou que a revolução não era o primeiro, nem, muito menos, o único caminho para as burguesias retardatárias, com a exceção da guerra civil nos EUA, que pode ser interpretada como a segunda revolução americana, e as “transições tardias” encontraram uma via histórica, “pelo alto”, como na Itália e na Alemanha, para abrir o caminho.

    Prevalecia um balanço da engrenagem da permanência no interior do processo revolucionário ainda inspirada no modelo francês, mas agora com a interrogação, vital, sobre as diferenças que poderiam existir (como uma especulação para o futuro) entre uma dinâmica diferenciada em revoluções de minorias (a burguesa) e revoluções de maioria (proletária): “Era derrubada uma minoria dominante e outra minoria tomava em suas mãos o timão do Estado e transformava as instituições públicas de acordo com seus interesses (…)Todavia, se abstrairmos o conteúdo concreto de cada caso, a forma comum de todas essas revoluções era serem revoluções de minorias. Mesmo quando a maioria prestava sua colaboração o fazia – consciente ou inconscientemente – a serviço de uma minoria; mas esta, seja pôr isso, seja pela atitude passiva e não resistente da maioria, aparentava representar todo o povo.”[ix]

    A concepção de revolução em 1848-50 tem no seu centro um pensamento que, pelo menos em relação ao continente, desenha a perspectiva de um processo de duas revoluções políticas encadeadas, seqüenciadas, ininterruptas, que se inspira no padrão dominante nos círculos extremistas de meados do século passado, que, por suas vez, derivava da experiência histórica do modelo francês de 1789/93.

    Pelo menos em relação ao continente, porque existem, em alguns trechos, formulações ambíguas ou pouco conclusivas, que alimentaram a idéia de que Marx não teria descartado a possibilidade, mesmo que excepcional, de uma passagem pacífica e democrática ao socialismo, e que indicariam uma hipótese estratégica distinta em relação à Inglaterra e os EUA, a chamada “via inglesa”: uma estratégia não revolucionária de transição histórica, apoiada na extensão das liberdades democráticas, ampliação irrestrita do direito ao sufrágio universal, e conquista do poder político, sustentada no peso social do proletariado.

    Enfim, uma releitura dos termos da relação entre democracia e revolução, na qual a segunda estaria subsumida na primeira. A questão em Marx parece, no entanto, estar restrita à possibilidade de conquistar a democracia, sem recorrer aos métodos da revolução, o que é evidentemente muito diferente, de pensar a transição ao socialismo sem ruptura.

    O que certamente se poderia afirmar com uma pequena margem de erro, é que: (a) ao contrário do continente, em países, como a Inglaterra, os EUA e a Holanda, onde as resistências históricas das forças sociais aristocráticas e das forças políticas absolutistas eram menores ou residuais, Marx considerava razoável pensar, a partir da experiência do cartismo, na conquista da democracia sem que uma revolução política fosse necessariamente indispensável, hipótese, aliás, a da excepcionalidade, confirmada pela história, embora curiosamente por um caminho inesperado, porque nos EUA, uma revolução foi finalmente necessária, assim como na Alemanha, que só derrubou o regime bonapartista com a revolução de 1848;

    (b) a hipótese de que o partido operário poderia chegar a vencer as eleições e se constituir em força política majoritária, nos países mais desenvolvidos, se o sufrágio eleitoral fosse alargado sem restrições censitárias, o que não deixaria de colocar o problema da revolução, mas o redefiniria necessariamente no terreno da tática.

    Mas só a espantosa capacidade de antecipação histórica, o rigor de método que permite prognósticos visionários, unidos a uma audácia teórica, que está sempre alerta aos novos desenvolvimentos da realidade, podem explicar que Marx e Engels, em meados do XIX, tenham prefigurado alguns dos elementos que serão chaves para compreender a dinâmica interna das revoluções do séc. XX.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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