Roberto Aguiar, in memoriam
Dentre os grandes lutadores pela democracia e por uma visão progressista de sociedade e do direito esteve Roberto Armando Ramos de Aguiar, de longa e importante trajetória acadêmica e política, e que faleceu neste tão duro contexto em que vivemos, neste dia 12 de julho de 2019
O Brasil vive imerso em uma longa noite, cujos dias são nebulosos e cinzentos. As más notícias são diárias, as derrotas, cotidianas, e neste contexto as perdas humanas soam intensas. Dentre os grandes lutadores pela democracia e por uma visão progressista de sociedade e do direito esteve Roberto Armando Ramos de Aguiar, de longa e importante trajetória acadêmica e política, e que faleceu neste tão duro contexto em que vivemos, neste dia 12 de julho de 2019. Aguiar deixa família e uma legião de amigos e companheiros, que em tão difícil momento recordarão a vida reta e o importante legado intelectual, que este texto se ocupará em retomar em dois breves aspectos, a saber, seu pensamento em temas de segurança pública e filosofia jurídica e política.
Doutor em Filosofia do Direito pela PUC/SP, Aguiar chegou à Universidade de Brasília onde viria a ocupar o cargo de Reitor no ano de 2008. Acadêmico potente, preocupou-se com a intervenção na vida pública em diversas oportunidades e debates centrais, tendo colaborado positivamente ao ocupar a Secretaria de Segurança Pública do Governo do Distrito Federal na gestão de Cristovam Buarque, e a mesma pasta na gestão de Benedita da Silva no Rio de Janeiro (SSP/RJ). Quando assumiu esta última no dia 8 de abril de 2002 manteve a congruência com sua formação democrático-popular e militância marxista-leninista durante a graduação em direito. Ao assumir a SSP/RJ Aguiar deixava clara a sua visão de mundo, e que procuraria fazer valer em sua pasta ao aplicar uma abordagem mais humana dos policiais, e para lograr o objetivo, investir na reeducação e qualificação do efetivo, incluindo o importante e atual aspecto da educação para os direitos humanos, assim como também promover reformulação de estatísticas sobre violência, e ampliar a transparência da administração, mas visando, finalmente, implementar uma cultura da paz através da integração de movimentos sociais, organizações não-governamentais, sindicatos e associações.
A abordagem humana na questão da segurança pública sustentada por Aguiar contradiz visceralmente com o projeto neoliberal entronizador da violência policial que hoje está em curso no país. Aguiar sustentou a necessidade de conter a evolução da violência através do controle de possíveis abusos da polícia, e não através da ampliação de um leque de competências capazes de criar situações de concretização de puro arbítrio. O objetivo do progressismo de Aguiar à frente da SSP/RJ era de diminuir drasticamente o número de mortes de inocentes, contendo os erros e os excessos policiais. A política de segurança pública não poderia deixar de contemplar a presença efetiva do Governo, vale dizer, servindo à população, disponibilizando serviços como educação, saúde, assistência social e lazer, avaliação que manteria até meses antes de sua saída da SSP/RJ, sublinhando que os órgãos de segurança eram insuficientes para abordar o problema da criminalidade, senão que deveriam estar acompanhados de intervenções sociais, pois, avaliava, “Há uma violência de base na sociedade que deve ser enfrentada de outra forma, que inclua até mesmo um choque de generosidade”, valor este que, como sabemos, está sob crítico ataque nos tempos que correm. Este é justamente o projeto de todo contraditório ao que os governos autoritários tão bem conhecidos por todos nós propõem e realizam.
Corria o ano de 2005, especificamente o dia 05 de julho, quando era publicada entrevista de Aguiar no Jornal do Brasil cujo objeto era a segurança pública. Nela Aguiar externava que o aumento de penas, ou a sua diminuição, não resolveriam os graves problemas criminais brasileiros, nem o do fenômeno da reincidência, sublinhando que o aumento de penas era apenas o retrato fiel de concepção de segurança pública típica do século XIX. Questionado sobre as opções, e priorizando a função ressocializadora da pena, Aguiar elencava que o primeiro passo seria transformar presídios em escolas, dotando-os de centros de profissionalização. Outra medida sugerida foi a aplicação de penas alternativas, vale dizer, serviços que realmente implicassem em ganhos para a sociedade, e também medidas para evitar a mescla de prisioneiros de diferentes graus de periculosidade, aliás, tal como a legislação brasileira já prevê, pois de tal contato indevido deriva a profissionalização no crime de indivíduos sem tal perfil. A concepção de Aguiar sobre as alternativas para suplantar o problema criminal implicava, no campo, a substituição do policiamento clássico pelo comunitário, mas também contemplava a proposta de reservar o sistema penitenciário tão somente para os condenados por crimes graves, devendo a engenharia conceber espaços prisionais de tamanho pequeno, pois permitiriam um melhor controle.
Pergunta realizada por entrevistador em 2002 e que todavia preserva enorme atualidade em amplos segmentos sociais propunha a Aguiar o momento para responder se as políticas de ressocialização seriam suficientes para diminuir a reincidência, e, passo seguinte, o que dizer para o cidadão que se considera ‘preso em casa’, descrito pela mídia como ‘aterrorizado pelo aumento da violência’, e também pelo repórter como alguém ‘que não suporta mais ser vítima e acha bem-feito quando um bandido é torturado ou morto nas cadeias’. O que dizer a este grupo? A clara resposta de Aguiar era cristalina e ilustrada ao apostar pela educação, exemplificando com diversas iniciativas exitosas tomadas durante o seu exercício da SSP/DF na administração de Cristovam Buarque, recordando que o caminho para a segurança pública “Não são mais homens, mais armas e mais viaturas que resolverão o problema da violência. Isso não resolve nada. É uma questão educacional, de inteligência, estratégica e tática”.
A potência e a atualidade da reflexão de Aguiar é evidente, sobretudo quando consideramos o eixo de sua reflexão, humanismo e inteligência, tomados como pilares para o desenvolvimento de políticas públicas na área de segurança. Rigoroso em seu compromisso com a democracia, o Estado democrático de Direito e o princípio da legalidade, Aguiar informava que em sua administração da SSP/RJ foram utilizados sistemas de escuta de criminosos, ação estratégica sofisticada, mas que sempre tinham sido realizadas com autorização judicial e, importante para os nossos tempos, realizadas dentro dos limites desta autorização.
Em suas intervenções públicas Aguiar não deixava de sublinhar que o recurso à inteligência era essencial para a atividade policial, e recordava que durante a sua administração no Rio de Janeiro utilizava dirigíveis com câmeras que escaneavam a cidade a curtas distâncias de 15 a 18 km. Dotados de equipamento de visão noturna, ela permitia ampla margem de conhecimento do terreno atividade aos policiais em campo, pois as câmeras tinham altíssimo poder de definição, capazes de definir o olhar de uma pessoa, potencializando as ações dos policiais em terra.
Aguiar publicou diversos e importantes livros, dentre os quais O que é Justiça? Uma abordagem dialética, Direito, Poder e Opressão, cujo texto desfruta de enorme atualidade em sua leitura da radicalidade dos enfrentamentos sociais e da rudeza com que se portam os donos do poder, mas também evidenciando o sopro de esperança traduzido em sua concepção de boa sociedade. Mantendo congruência com sua perspectiva filosófico-política, Aguiar teorizava uma visão boa sociedade humanista compatível com a de Fromm, ambas enfrentadas com a do sistema capitalista, no qual era moldada uma “[...] ética do consumidor, onde o ter represente mais do que o ser [...]”. Complementar e conexa com esta concepção de superação de um mundo coordenador pela pretensão de coisificar o homem, convergimos com Aguiar ao afirmar que “O capital mantém um estilo de vida, [que] compra um poder e controla os oprimidos no sentido de não chegarem a uma reação limítrofe que poderia turbar a ordem sistematizada pela burguesia”. Há uma conexão interna e íntima entre este mundo de triunfo da coisificação do homem e o propósito de controle de todas as esferas do humano, algo que os dias correntes não terminam de deixar claro. Assim, tão notável quanto ainda pendente de arrimo, é a conclusão de Aguiar de que “[...] justas serão as sociedades cujos poderes procuram a independência e tentam servir aos interesses das maiorias de seu povo em oposição àquelas onde o poder nada mais é que marionete dos interesses, dos lucros e dos créditos internacionais”. Nesta encruzilhada histórica de submissão do povo à oligarquia assinalada por Aguiar ainda em 1987 é que nos encontramos após a segunda década do século XXI.
Estas modestas linhas escritas sob a pressão do momento não dispuseram de condições para realizar a devida e justa homenagem a quem tanto contribuiu para o campo progressista, para a democracia e o direito brasileiro. Sem embargo, aqui esta breve visita a aspectos das ideias de Aguiar representa sinal de minha pessoal e respeitosa lembrança, e que pelos que ficam sejam estas linhas tomadas como um convite para recordar a sua trajetória como um dos melhores exemplos de luta, resistência e honestidade intelectual. Sob a honra que a sua conduta em vida garantirá, firmo minha despedida com meus votos de que descanse em merecida paz.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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