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    Luis Cosme Pinto

    Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 63 anos de idade e 37 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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    Sala de visitas

    A biografia não autorizada de quem passa a vida a nos convidar pra sentar

    (Foto: Luis Cosme Pinto)

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    Crônicas costumam falar das coisas da vida, mas também podem falar da vida das coisas. Então, te convido a conhecer a história de vida do novo morador do bairro.

    Chegou num domingo e estacionou ao lado da loja de fechaduras.

    Não é bicho, gente ou carro.

    Ele é um sofá preto de tecido aconchegante, entre veludo e camurça. Não é de curvas ou reviravoltas; tampouco de tachas brilhantes. É sóbrio, de braços altos e ângulos retos. Não veio só, trouxe um puf, preto e simplório.

    Me concentro no sofá. Não fosse o corte largo, a revelar a espuma amarelada, diríamos: é um seminovo. Como chamam carro usado em bom estado.

    Na biografia inventada, começo pelo último dono. Um homem de 40 anos a coçar a cabeça e planejar o transporte. Não quer ou não pode pagar o frete, também não se interessa em doar. Preguiçoso, apela ao vizinho.

    - Joelson, vai fazer o que amanhã?

    - Vou ficar com Suelen. Qual a bronca?

    - Presente de sogra, meu. Dona Dirce comprou um sofá novo e me deu o dela, daí não tenho mais espaço para o meu, que ganhei faz tempo daquele cliente. A gente bota o velho na sua picape e larga por aí.

    - É proibido, Clédson.

    - Melhor que jogar no córrego. Se tiver multa eu pago e o combustível e as brejas são por minha conta.

    - Tá bom.

    Eles saem da Vila Matilde e meia hora depois se livram da carga numa calçada deserta aqui perto. São 3:50 da madrugada.

    Avanço na biografia da mobília. Estamos no século passado. Num apartamento de classe média alta, sofá e puf acolhem os donos da casa e seus visitantes. Em conflitos ou reconciliações, em encontros ou desencontros, ofereceram sempre o mesmo conforto.

    Pelo tamanho e importância coube ao sofá a maior responsabilidade. Foi banco, foi cama; de gente e de bicho; a tia tricotou, o cunhado leu e em desespero a adolescente faz daquele vão, entre assento e encosto, o refúgio de seus segredos.

    Se até hoje é classudo, o que dizer da estreia? Ainda embrulhado em papel bolha, foi festejado como estrela da casa.

    Nada nem ninguém é insubstituível. Numa noite sem lua, sofá e puf foram levados para chácara. Até que os donos deram a dupla ao pintor de paredes. O mesmo Clédson, que agora, com a ajuda do Joelson, abandonou os companheiros.

    Calejado, o sofá ignorou a ingratidão. Há décadas sente na pele, ou no tecido, brasa de cigarro, manchas de todo tipo, lágrimas. Sobreviveu também a carregadores atrapalhados, caminhões e carroças.

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    Capa do livro Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luís Cosme Pinto(Photo: Reprodução)

    A história do sofá preto e de seu amigo baixinho podia terminar aqui. Há, porém, um outro capítulo e ele tem nome. Erasmo.

    Erasmo trabalhava em Taboão da Serra. O boteco foi assaltado, uma, duas, várias vezes e o dono desistiu. Sem seguro-desemprego e sem trabalho, o churrasqueiro dormiu por dez dias na calçada áspera. Então, naquele mesmo domingo, encontrou o sofá.

    Um sofá. Nunca teve um na vida, nem quando o pai foi capataz da fazenda nas bandas de Mossoró.  E ainda um puf, que sorte! Primeiro agradeceu aos céus. Depois deitou, estirou o corpo e descansou os olhos. “Até sonhei”, me contou. 

    Dia desses, Erasmo papeava com um amigo, os dois sentados no sofá a saborear café quente em copo descartável. O assunto era a falta que fazem bancos e assentos de qualquer tipo numa cidade com mais de 30 mil moradores de rua.

    Cuidadoso com o patrimônio, Erasmo prende os dois estofados a um poste. Atrás deles guarda muda de roupa, garrafa de água e um pedaço de pau; em cima, papel higiênico, um prato e dois talheres. No puf, uma bíblia. O lençol que ganhou cobre o sofá. Se a chuva ameaça, logo estica um plástico grosso.

    - Era um sofá, agora é minha casa.

    - Parece mesmo, concordo.

    - Se o dono do bar espalha mesas e cadeiras, se a construtora avança com o tapume, se o dono do cachorro não recolhe a sujeira, porque eu não posso receber meus conhecidos ou tirar meu cochilo na calçada? Ele quer saber.

    No cantinho de Erasmo, sofá e puf experimentam a brisa do outono depois de tantos anos entre quatro paredes.

    Se numa pirueta da inteligência artificial o sofá ganhasse voz, acredito que diria com a autoestima renovada.

    - Pensaram que estávamos no fim da linha. Olha aí, transformamos a calçada suja e quebrada numa sala de visitas. O gabinete do Erasmo.

    E o puf, aposto, exaltaria.

    - A vida das coisas parece a dos homens, é cheia de surpresas.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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