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    Heraldo Campos

    Graduado em geologia (1976) pelo Instituto de Geociências e Ciências Exatas (UNESP), mestre em Geologia Geral e de Aplicação (1987) e doutor em Ciências (1993) pela USP. Pós-doutor (2000) pela Universidad Politécnica de Cataluña - UPC e pós-doutorado (2010) pela Escola de Engenharia de São Carlos (USP)

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    Samba, águas e o povo

    Será que um sujeito que não gosta de samba pode ser mesmo ruim da cabeça ou doente do pé, ou isso é um exagero poético

    (Foto: Rovena Rosa/Agncia Brasil)

    “Quem não gosta de samba / Bom sujeito não é / É ruim da cabeça ou doente do pé”. Esse trecho da letra da canção de Dorival Caymmi “O Samba da Minha Terra” merece uma reflexão. Será que um sujeito que não gosta de samba pode ser mesmo ruim da cabeça ou doente do pé, ou isso é um exagero poético porque existem outros generos músicais para serem desfrutados e podem até serem ouvidos para incentivar o início da escrita de um conto?

    Nessa linha, por exemplo, pode-se dizer que uma variação desse genero musical, como o samba rock de Jorge Ben dos anos 60 “Chove chuva” com seu verso “Chove chuva / Chove sem parar / Chove chuva / Chove sem parar”, pode muito bem ser considerado o inicio para a descrição do cenário ao qual está submetida boa parte da população de várias cidades brasileiras, principalmente no período chuvoso do verão que antecede as “Águas de Março” de Tom Jobim que fecham essa estação do ano pois “É pau, é pedra, é o fim do caminho / É um resto de toco, é um pouco sozinho / É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã / É um belo horizonte, é uma febre terçã / São as águas de março fechando o verão / É a promessa de vida no teu coração”, como lembra, meteorologicamente, um de seu versos.

    Um pouco antes dessas águas de março chegarem, São Sebastião, município localizado no litoral norte do Estado de São Paulo, região sudeste do Brasil, durante os dias 18 e 19 de fevereiro de 2023 sofreu com deslizamentos de terra em seu território ocupado de forma desordenada nas encostas dos morros da Serra do Mar, por causa da extrema quantidade de chuva que precipitou (mais de 600 mm em 12 horas) e matou 64 pessoas.

    Isso ocorre porque muitas vezes o desmatamento para implantação de loteamentos, a impermeabilização da trama urbana dos arruamentos e dos calçamentos, acabam não permitindo a infiltração das águas pluviais em seu ambiente natural, terminando por encharcar os terrenos e potencializando a movimentação de massa, com deslizamentos de solo, blocos de rocha e até mesmo arrastando parte da vegetação pela ação da gravidade.

    Além dessa tragédia, que se repete praticamente em todo verão, várias cidades do litoral brasileiro, por exemplo, que avançaram com sua ocupação urbana as faixas de areia das praias (e que não deveriam ser ocupadas), hoje sofrem com os processos erosivos provocados pelas oscilações do nível do mar e vira e mexe os administradores públicos acabam jogando a culpa nas mudanças climáticas. 

    Setores colados nas faixas de areia das praias, muitas vezes ocupados por residências, restaurantes, quiosques e outros equipamentos urbanos, que não deveriam estar assentados nesses lugares, podem ter a sua destruição causada pela ação das águas do mar e, ao mesmo tempo, interferir de forma desfavorável nos serviços ecossistêmicos, prejudicando a regulação biológica de extensas áreas da orla marítima. Um exemplo disso é o processo erosivo na beirada do calçamento na praia do Iperoig em Ubatuba, município também localizado no litoral norte do Estado de São Paulo, região sudeste do Brasil .

    Lamentavelmente, nesses espaços da orla marítima com forte vocação turística  destinados ao lazer e à recreação, o que se observa, principalmente na temporada de verão, não é nada romântico e calmo como o verso do samba “O mar serenou” de Antonio Candeia Filho e cantado por Clara Nunes “O mar serenou quando ela pisou / Na areia / Quem samba na beira do mar / É sereia”.  

    Ao contrário, outras fontes de comprometimento dessas áreas ocupadas erroneamente podem estar relacionadas aos mais variados tipos de resíduos deixados  pelos moradores e turistas nas praias frequentadas. Dessa maneira, sacos plásticos, tampas de refrigerantes, fragmentos de isopor, cordas de nylon, latas de cerveja, plásticos duros, entre outros, distribuídos de forma difusa, muitas vezes se juntam nessas áreas com os processos erosivos atuantes e contribuem no agravamento do problema, quase sempre relacionado com a precariedade ou a ausência de saneamento básico.

    A falta de saneamento básico em muitas cidades, além daquelas situadas na região litorânea, é um problema de pelo menos sete décadas e uma pista era dada num dos versos da canção “Lata d'água na cabeça” de Joaquim Antonio Candeias Junior “Lata d'água na cabeça / Lá vai Maria / Lá vai Maria / Sobe o morro e não se cansa / Pela mão leva a criança/ Lá vai Maria”, sucesso em muitos carnavais, onde as chuvas muitas vezes não se fazem presente somente para refrescar os foliões, mas sim podendo causar muitos transtornos nos morros. 

    Segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e da Organização Mundial da Saúde (OMS) bilhões de pessoas em todo o mundo continuam sofrendo com o acesso precário a água, saneamento e higiene. Cerca de 2,2 bilhões de pessoas em todo o mundo não têm serviços de água tratada, 4,2 bilhões de pessoas não têm serviços de saneamento adequado e 3 bilhões não possuem instalações básicas para a higienização das mãos.

    Por outro lado, a contaminação dos solos e das águas, sejam águas superficiais ou subterrâneas, por elementos, compostos ou organismos que possam prejudicar a saúde do homem, de animais e da vegetação, pode ocorrer tanto no meio urbano ou rural e é umas das grandes preocupações do mundo moderno. 

    Quando a contaminação não tem origem natural, provocada por constituintes dissolvidos de minerais das rochas e dos solos, ela é proveniente de atividades humanas e acabam atingindo os mananciais. A remediação dos solos e das águas é complexa e pode custar caro, como por exemplo, as extensas áreas contaminadas por mercúrio pela atividade predatória, ilegal e criminosa, que vem ocorrendo na Amazônia e invadindo território Yanomani. 

    Então, como devemos proceder diante dessa agressão ao meio ambiente? Espera-se que esses invasores da Amazônia que há tempos vêm desmatando, queimando, grilando, garimpando e contaminando seus solos e águas sejam devidamente identificados, responsabilizados, punidos de acordo com a lei, na esperança de que aconteça alguma coisa e não ficarmos somente na “Lamentação” de Paulinho da Viola, com esse samba: “Em meus olhos água / em meu peito mágoa / minha boca vazia / igual minhas mãos / e meus ouvidos cheios de lamentação // Sem ideal / Esperando o carnaval pra matar minhas penas // na esperança que um canto / venha sufocar meu pranto / mas carnaval são três dias apenas”.

    Por fim, nunca é demais lembrar que a água é um direito da população e os governos têm que garantir que nenhum cidadão fique à margem desse bem público. Ela deve ser fraternalmente compartilhada, não utilizada como uma mercadoria e muito menos como a vilã da história. Mantemos a esperança em dias melhores para a população que vive em áreas de risco geológico, para os desassistidos do saneamento básico e para os povos indígenas. Como bem diz a letra da música “A Cor da Esperança” de Cartola “A tristeza vai transformar-se em alegria / E o Sol vai brilhar no céu de um novo dia / Vamos sair pelas ruas, pelas ruas da cidade / Peito aberto / Cara ao Sol da felicidade // E no canto de amor assim / Sempre vão surgir em mim, novas fantasias / Sinto vibrando no ar / E sei que não é vã, a cor da esperança / A esperança do amanhã”.

    *Heraldo Campos é geólogo (Instituto de Geociências e Ciências Exatas da UNESP, 1976), mestre em Geologia Geral e de Aplicação e doutor em Ciências (Instituto de Geociências da USP, 1987 e 1993) e pós-doutor em hidrogeologia (Universidad Politécnica de Cataluña e Escola de Engenharia de São Carlos da USP, 2000 e 2010). 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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