Sarney e a manhã da democracia, há 38 anos
Sarney também fez a sua limpeza dos extremistas
Se estamos aqui varrendo o lixo imundo que Bolsonaro deixou sob os tapetes foi porque a democracia sobreviveu ao longo destes 38 anos que começaram naquela manhã de 15 de março de 1985.
Eu era uma jovem repórter de O Globo e estava lá, cobrindo a posse do vice-presidente eleito José Sarney, em lugar de Tancredo Neves, que na véspera fora internado e operado, e viria a morrer 41 depois. Anos depois Sarney escreveria numa crônica, na Folha de S. Paulo, que descera a Esplanada "contemplando espatódias tristes". Elas florescem nessa época em Brasília. E no discurso no Planalto disse a frase que nós, jornalistas, entendemos muito bem: "Estou aqui com os olhos de ontem". Não dormira.
A noite fora de agonia política, em longas negociações entre próceres da Nova República nascente e representantes da ditadura que chegava ao fim, como Leitão de Abreu, chefe do gabinete civil de Figueiredo. A pergunta crucial era se Sarney, que ainda não era vice de fato, pois não fora empossado, poderia substituir Tancredo. O risco era o de que os militares não aceitassem e aproveitassem para se manter no poder. A ditadura ganharia sobrevida.
Há pouco conversei com Sarney sobre aqueles idos de março de 1985. E ele destacou na conversa o papel pouco reconhecido do general Leônidas Pires Gonçalves, já indicado ministro do Exército (ainda não havia ministério da Defesa, cada arma tinha seu ministro). Leitão era um jurista respeitado, ex-ministro do STF, mas foi principalmente a espada de Leônidas que garantiu a posse de Sarney. Havia quem defendesse a posse do presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, que mais tarde recordaria o papel de Leônidas:
- O meu 'Pontes de Miranda' estava lá, fardado, e com a espada me cutucando e dizendo que quem tinha de assumir era o Sarney.
Decorrido o tempo e tantos solavancos, Sarney me dizia ontem que seus dois maiores orgulhos são ter conduzido a transição com segurança, evitando agitação militar, e ter convocado a Assembeia Nacional Constituinte que nos deu a Carta que nos guia.
- Ele reorganizou o Exército, e tratou de dar novas funções aos militares. Dizia que precisavam de trabalho para não se envolverem em fofocas políticas. Informatizou os quarteis, modernizou as escolas, criou o Centro Nacional de Guerra Eletrônica. Criamos o programa Calha Norte para proteger as fronteiras. Não tivemos uma única crise militar na transição.
Foi Leônidas que mandou prender Bolsonaro por 30 dias, por indisciplina. Não foi expulso do Exército porque teve a ajuda de Figueiredo e Newton Cruz.
Mas os militares voltaram com Bolsonaro, ocuparam espaços que eram de civis e acabaram envolvidos com a subversão de extrema direita que deu no 8 de janeiro. Pergunto se ele acha que está correta a recondução dos militares ao papel constitucional que nunca deveriam ter abandonado.
- Nós fizemos a transição com segurança por dois motivos. Primeiro, com o exercício da autoridade. Como comandante-em-chefe das Forças Armadas, escolhi um general com a autoridade de Leônidas para chefiar o Exército. Em segundo lugar, valorizamos o diálogo e não o conflito. Informei-os de que faria a transição com as Forças Armadas e não contra elas.
Pergunto se ele acha que as duas premissas estão sendo observadas agora, no reenquadramento dos militares ao papel que a Constituição lhes reserva e ele, como bom político, não diz sim nem não:
- Eu disse recentemente ao presidente Lula que ele deve agora virar a página, estabelecendo uma nova relação com os militares, valorizando as Forças Armadas e o papel que elas devem cumprir. O novo comandante do Exército parece ter a autoridade e lucidez necessárias.
Mas Sarney também fez a sua limpeza dos extremistas. O general Octavio Medeiros, ex-chefe do SNI, linha dura, foi mandado para a Amazônia, onde ficou seis meses e foi para a reserva. Outros da mesma linha foram postos discretamente no ostracismo e sairam de cena.
Neste 15 de março, depois de termos vislumbrado a possibilidade de golpe e retrocesso, vale recordar aquela manhã de 1985, que tinha espadódias tristes mas também gramados verdes prometendo a democracia.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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