Saúvas dos rios
Pequenas centrais causam, em pequenos rios, impactos maiores do que grandes usinas em grandes rios. Ambas são polêmicas, mas, em termos energéticos uma usina como a de Belo Monte, com 11.233 MW de potência instalada, corresponde a 2.042 PCHs de 5,5 MW (média atual) espalhadas por centenas de rios anônimos. E tem mais 2.000 projetadas
Em live no dia 06 de fevereiro, o Presidente Bolsonaro, menciona em determinado trecho:
“Para fazer uma pequena represa é uma dor de cabeça terrível. Uma PCH (pequena central hidrelétrica) levava até 10 anos para ser instalada. Estamos ultimando um estudo para facilitar a vida de quem quer fazer uma PCH em sua propriedade”.
No site da ANEEL, relatório de Acompanhamento da Implantação de Empreendimentos da Geração, nº 11, consta que uma PCH tem o tempo médio de construção de 29 meses.
Mas, de concreto, há algum estudo sendo ultimado. Procurei no site da ANEEL: não encontrei nada. Então no site do Ministério de Minas e Energia? Nada. Não me espantarei caso exista algum estudo ainda secreto, mas creio que Bolsonaro se refere ao PL 1962/2015 que “dispõe sobre incentivos à implantação de pequenas centrais hidrelétricas...” alterando a Política Nacional de Meio Ambiente para fragilizar ainda mais o licenciamento ambiental.
Em 1982, as pequenas centrais hidrelétricas eram aquelas com até 10 MW de potência instalada, ampliadas posteriormente para usinas com até 30 MW com algumas outras características, entre elas, possuir reservatório com superfície de até 13 km² excluídos a calha do rio. No final de 2016, as PCHs foram ampliadas mais uma vez passando, com algumas condicionantes, de 30 MW para 50 MW. Existe uma subcategoria de PCHs, chamadas de Centrais Geradoras de Hidreletricidade - CGHs, que também “cresceram”: passaram de até 1 MW para até 5 MW atualmente. No Brasil existem 1.153 PCHs e CGHs, com potência instalada de cerca de 6.000 MW de um total de 170.000 MW de diversas fontes (3,5%) (BIG-ANEEL). Há a previsão de mais quase 2.000 (duas mil!) PCHs e CGHs para serem instaladas.
Ao longo dos anos, as PCHs foram incentivadas de várias formas: por tarifas mais elevadas, por encargos diferenciados (como o não pagamento da compensação aos Estados e Municípios pelas áreas inundadas e à União pelo uso do potencial hidrelétrico), por licenciamento ambiental simplificado e ainda por um processo de outorga junto à ANEEL também simplificado. Com custos de implantação, operação e manutenção muito reduzidos são, mais do que fontes geradoras de energia, caixas registradoras a toda velocidade.
Inegavelmente, pequenas centrais hidrelétricas são consideradas positivas pela opinião pública e tem apoio de setores ambientalistas, talvez a partir de uma visão de que PCHs são sempre pequenas e pouco ou nada impactantes ou como contraponto a grandes empreendimentos hidrelétricos. Apesar de tamanhos e características técnicas muito variáveis, podendo chegar a 50 MW – o que é uma usina relevante em qualquer lugar do mundo – em geral se apresenta uma PCH como um minúsculo gerador hidrelétrico atendendo a uma pequena comunidade isolada, por vezes substituindo a geração a óleo diesel – ah, quem resiste a essas imagens? - como sendo o padrão de todas quando, na verdade, PCHs podem ter dimensões expressivas com também expressivos impactos sobre os rios, território, populações e atividades econômicas.
É a mesma estratégia do PL 1962/15, que tem dois parágrafos liberando de licenciamento ambiental a geração de baixíssima potência, quando, no seu caput, simplifica ainda mais o licenciamento de usinas que só seriam autorizadas em qualquer lugar do mundo com extremos rigor e cuidado. Em outros países, em geral PCHs são usinas abaixo de 10 MW de potência, também a primeira definição brasileira. Não é por acaso que Bolsonaro (nitidamente mal orientado) trate nessa live de PCH com reservatório de 1 a 5 hectares, quando na realidade se pretende simplificar também o licenciamento de usinas com reservatórios de 260 a 1.300 vezes maiores!
Martela-se o tempo todo que tais pequenas usinas situam-se próximo de centros de consumo, passando a ideia de que estão perto das cidades, quando muitas das PCHs projetadas estão em rios preservados, em áreas sensíveis ou protegidas, em Unidades de Conservação ou ainda em terras indígenas, destinando-se inegavelmente a abrir novas frentes para o agronegócio mas, principalmente para expansão da mineração nessas áreas. Em 2018, através da Resolução 64, a Agência Nacional de Águas-ANA suspendeu a autorização para usinas hidrelétricas na Bacia do Rio Paraguai (Pantanal) até investigação de seus impactos socioeconômicos e ambientais, exatamente por tais características e principalmente porque são instaladas em série num mesmo rio, com impactos sinérgicos e sistêmicos não conhecidos: analisa-se uma a uma o que é insuficiente. A resolução da ANA vence em maio deste ano.
Há, portanto, muito desconhecimento a respeito de PCHs e seus reais impactos, principalmente ambientais e sociais. Mas são bons negócios, sem dúvida. Estudos técnicos demonstram que, apesar da proliferação, as PCHs tenderão à insignificância como fonte geradora de energia, podendo ser substituídas na expansão por outras fontes renováveis, como solar, eólica e cogeração; instaladas uma depois da outra em um rio, em geral pequeno e mais frágil, essas usinas modificam totalmente seu comportamento, impactam o meio ambiente e ampliam o conflito com outros usos, além da vida e da cultura de inúmeras comunidades. Sem condições de oferecer energia com segurança em razão de mudanças no ciclo hidrológico que altera severamente a vazão nos rios, as oscilações decorrentes causam impacto operacional sobre o sistema elétrico e com certeza causarão impactos comerciais provenientes da energia que não será entregue. Ironicamente, a privatização pretendida de grandes usinas e do sistema Eletrobrás transferirá muita energia para o Mercado Livre, ambiente especial para a comercialização da energia das PCHs, ampliando sua insignificância ou requerendo o retorno de medidas protecionistas.
Pequenas centrais causam, em pequenos rios, impactos maiores do que grandes usinas em grandes rios. Ambas são polêmicas, mas, em termos energéticos uma usina como a de Belo Monte, com 11.233 MW de potência instalada, corresponde a 2.042 PCHs de 5,5 MW (média atual) espalhadas por centenas de rios anônimos. E tem mais 2.000 projetadas. Em minha opinião o caminho é outro: reduzir o limite para PCHs, qualificar o licenciamento ambiental para essas novas características e ampliar a participação das comunidades no processo de aprovação. A continuar o trágico modelo atual, as PCHs serão as saúvas dos rios brasileiros.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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