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    Ser ou não ser Charlie: esta não é a questão

    A questão é o reconhecimento dos direitos de uma população discriminada, que sofre um desemprego duas vezes e meia maior que a média dos franceses

    O bárbaro atentado contra a revista Charlie Hebdo matou mais que um punhado de jornalistas.

    A vítima maior parecer ter sido a racionalidade no debate político que se seguiu.

    Rapidamente, a reação ao atentado produziu, aqui e acolá, duas tendências contrárias: a do "eu sou Charlie" e a do "eu não sou Charlie". Assim, o atentado, que deveria ter unificado as forças da tolerância e da democracia, parecer ter tido o efeito contrário, provocando uma divisão estéril.

    A reação inicial do "eu sou Charlie" foi primária e equivocada.

    Ela transmite a ideia de que a solidariedade ao hebdomadário e o apoio aos princípios da liberdade de expressão e de imprensa se confunde com a concordância plena à linha editorial da Charlie. Evidentemente, não é e não pode ser o caso. A Charlie é uma revista que gosta de polemizar. Há gente que gosta e gente que não gosta. Na França, a população muçulmana, uma minoria acossada por uma crescente islamofobia, não gosta muito das charges que ofendem a sua identidade religiosa. É um direito deles. Da mesma forma, é um direito deles, e dos que os apoiam, não concordar com o "je suis Charlie".

    Assim, o "eu sou Charlie" divide e desagrega. Gera automaticamente o "eu não sou Charlie". Cria um debate estéril e irracional que não contribui para a tolerância e para a agregação das forças democráticas.

    Mas o debate e a divisão que se seguiram revelam também as tensões e os limites das democracias ocidentais, principalmente no que tange à sua capacidade de lidar com as diferenças étnicas e religiosas hoje presentes em suas sociedades.

    A igualdade formal de direitos dista muito de estar acompanhada por condições reais que a consubstanciem.

    Na França, por exemplo, a população de origem imigrante, a maioria descendente de gente proveniente do Magreb árabe e islâmico, dista muito de desfrutar de condições de vida semelhantes à da população francesa nata e cristã.

    Ao final de 2012, a taxa de desemprego geral da França era de 10,2%. Mas a taxa de desemprego entre franceses filhos de imigrantes de países não-europeus era de 24,4%, quase duas vezes e meia superior. Além disso, quando conseguiam empregos, seus salários eram, em média 13% inferiores ao da população geral para o mesmo trabalho.

    Esse não é um padrão surgido no pós-crise. Em 2006, antes da crise, a taxa de desemprego total era de 9,9%, a qual caia para 9,1% entre a população de franceses natos, mas subia assustadoramente para 26,2%, 26,4% e 27,6%, entre os descendentes de argelinos, marroquinos e tunisianos, respectivamente. E essa diferença abissal não pode ser explicada simplesmente por discrepâncias educacionais, pois ela se mantém para os que têm os mesmos anos de estudo. Assim, em 2012, a taxa de desemprego entre os que possuíam curso superior era de apenas 4,6% para os franceses natos, mas de 14,1% para os descendentes de imigrantes de países não-europeus.

    Na realidade, a população de origem árabe e de profissão religiosa muçulmana que mora na França, bem como em outros países europeus, é discriminada. Vive em condições de inferioridade econômica, social e cultural. Esse é o caldo de cultura que ajuda a explicar, mas não justifica, o surgimento de grupelhos de terroristas fundamentalistas nesses países. Ao contrário do que diz tolamente Žižek, o apoio ao terrorismo não surge de um sentimento de inferioridade, mas de condições reais de inferioridade e de discriminação. O tão propalado "multiculturalismo" é uma falácia, pois há uma clara e aberrante assimetria entre as distintas "culturas" existentes nessas sociedades.

    Entretanto, a questão do terrorismo fundamentalista não se restringe apenas ao fracasso das democracias ocidentais em incluir populações étnicas e religiosas diversas em seu seio. Além das questões internas dessas democracias, há também a questão maior das relações historicamente conflituosas entre o que se convencionou chamar de Ocidente e Oriente, hoje acirradas pelos ditames imperiais da "Guerra ao Terror" e por políticas externas francamente belicosas e intervencionistas.

    Nesta coluna, Paulo Moreira Leite, já discorreu, com muita propriedade, sobre a matriz teórica e ideológica dessas relações conflituosas e da propugnação de um "Choque de Civilizações".

    O fato concreto é que, da mesma forma como há uma gritante assimetria interna entre as distintas culturas e etnias no interior de algumas democracias ocidentais, há também uma assimetria, ainda maior, entre as distintas "civilizações" no mundo, que se reflete, inclusive, no número de vítimas nos conflitos.

    Quem sofre sistemática e maciçamente com os conflitos geopolíticos circundantes à "Guerra ao Terror" não são os jornalistas brancos ocidentais, mas boa parte da imensa população "oriental" e muçulmana no mundo.

    Na Palestina, os habitantes dos guetos, como o de Gaza, sofrem diuturnamente imensas humilhações, quando não a morte nos ataques israelenses , que incluem até bombas de fósforo. Só na última ofensiva de meados de 2014, morreram 2.137 palestinos, entre os quais 577 crianças.

    No Iraque, o conflito promovido por chefes de Estado ocidentais, alguns presentes na passeata de homenagem à Charlie, sob a desculpa do combate ao terrorismo e da destruição de inexistentes armas de destruição em massa, já matou, segundo estimativas conservadoras, cerca de meio milhão de iraquianos.

    Na Síria, a guerra civil insuflada por chefes de Estado ocidentais, alguns presentes na passeata de homenagem à Charlie, já matou cerca de 200 mil pessoas. Somente o grupo terrorista do Estado Islâmico, surgido com o apoio da administração Obama, que também é "je suis Charlie", já massacrou dezenas de milhares de pessoas. No Ocidente, entretanto, o escândalo em torno do grupo só surgiu quando brancos ocidentais também começaram a ser degolados.

    No Afeganistão, na Líbia e alhures o padrão se repete: as intervenções militares e/ou políticas do "Ocidente democrático" acabam resultando no sofrimento e na morte de orientais e muçulmanos.

    A Guerra ao Terror ceva o Terror. A imposição dos valores e, sobretudo, dos interesses do Ocidente no Oriente resulta, quase sempre, em humilhação, sofrimento e morte para a população que, hipocritamente, os chefes de Estado ocidentais dizem querer defender.

    Esse "genocídio oriental" não mereceu, até agora, nenhuma passeata de chefes de Estado em Paris, muito menos com Netanyahu à frente.

    A solução permanente para esses conflitos e para o enfrentamento efetivo ao terrorismo fundamentalista passa, evidentemente, por uma revisão dos ditames imperiais da Guerra ao Terror e das políticas externas belicosas e intervencionistas de algumas potências ocidentais, pela solução definitiva da Questão Palestina e também por um alargamento das democracias ocidentais capaz de promover a verdadeira inclusão de outras etnias, culturas e religiosidades.

    Assim, a questão não é ser ou não Charlie.

    A questão fundamental é ser ou não realmente democrata e tolerante, tanto nas políticas internas quanto na política externa.

    Essa é a questão que poderia unir todas as forças efetivamente democráticas, tanto do Ocidente quanto do Oriente.

    Daria até uma bela passeata, mas duvido que alguns chefes de Estado ocidentais a ela comparecessem.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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