Sobrevivência com 500 reais
Quando não usar o cartão para pagamentos
"Não, não é possível, este pessoal pobre mente pra se fazer de coitado e ganhar bolsa". Você ouviu, e mais de uma vez, e pior, não foi em loja chique do shopping, também lá, mas foi em conversa gravada vazada, escondida, entre o economista-chefe da agência de riscos tal e o secretário de finanças da cidade mais rica do Brasil.
Quem nunca passou fome de verdade, nunca ficou sem dinheiro de verdade, não poderá jamais afirmar conhecer a fundo a realidade do Brasil. O mesmo do que um homem branco caucasiano supor imaginar qual o cotidiano de um negro na periferia da fria Curitiba. Compreender é sentir, entender o profundo, exercer a empatia.
Diga-se fome de verdade, não a fome que você passou quando voluntariamente ficou acampado em paragens bucólicas de um parque ecológico em Santa Catarina em um de seus períodos de férias. Diga-se sem dinheiro de verdade, não quando seu cartão magnético pifou e você não pôde sacar dinheiro em espécie no caixa eletrônico naquela mesma viagem de lazer à Santa Catarina.
Num sábado meio sem graça você resolveu ir a um bairro distante onde havia visto uma loja bem humilde de móveis usados. Lá se encantou por uma mesinha de centro de madeira nobre, belo acabamento. A vendedora de pele bem maltratada e de poucos dentes na boca lhe disse de pronto "duzentos reais". Você achou superbarato, iria levar na hora, mas resolveu pechinchar, disse "levo se a senhora me fizer por cento e cinquenta".
Ocorre que, sem se dar conta, você nem percebeu que jamais pechinchou em restaurante de luxo, jamais pechinchou em loja de shopping, jamais pechinchou no empório de produtos importados de Portugal que há na esquina de seu bairro de classe média alta.
O espetacular, impactante, visceral livro de Carolina Maria de Jesus, "Quarto de Despejo", que diário não é, coisa menor não é, por sua energia e crueza deve ser denominado livro, literatura, testemunho. Uma obra-prima social escrita com sangue, fibra muscular, sujidades das catações de rua e muito suor derramado.
A escrita diária de Carolina de Jesus choca. Choca pois, dia a dia, a catadora negra de décadas atrás, moradora em favela às margens do Rio Tietê, SP, antes das obras de contenção e concretamento, relata a busca diária, matinal, uma verdadeira caça, por conseguir algo que lhe pague a mínima comida do dia. Tão simplesmente isto, sair do barraco da favela ainda de madrugada, ir às ruas, catar ou pedir algo para preencher o vazio do estômago próprio e da família em constante risco social.
Alimentação, alimentar-se, depois de respirar e se hidratar o mais fundamental ao corpo humano. Pode-se comer muito carboidrato, alimento barato, mas nem tanto um alimento, dá energia sim, engorda, mas não nutre. Então a madame que vai ao shopping com a cadelinha de estimação no banco de trás de couro do carro importado vê pelas ruas uma catadora de reciclagens um pouco obesa e logo rotula que a andarilha está bem e fome não passa. Fome oculta mais do que conhecida. Quem se satisfizer com bolacha o dia inteiro que levante a mão.
Aluguel e saúde arrebentam qualquer orçamento, se em dia vindouro catastrófico o sistema de saúde público no Brasil for privatizado, sequer parcialmente, que se espere uma hecatombe social logo nos primeiros dias de tal medida ultracapitalista.
Difícil imaginar que a saúde das pessoas possa ser uma alternativa viável e moralmente aceita para a geração de lucro empresarial. A saúde de uma pessoa atendida é a finalidade em si, custe o que custar, por óbvio esta é a lógica, o primordial, se prejuízo contábil vier, que assim seja, importa o paciente receber alívio e adequado tratamento.
Um lugar para se morar. Vale muito a pena para quem não ainda conheça, se aventurar ao menos um pouco por vielas, becos, escadarias, ladeiras, beiras de barranco, enfim, as áreas citadinas preteridas por quem tenha maior poder aquisitivo econômico. De todos os desconfortos possíveis em uma moradia que se deseje minimamente salutar, quase de todos desconfortos há em tais lugares escanteados pela sociedade padrão médio.
Morar, viver, sobreviver em cômodos sem janelas. Quando há, são janelas que dão vista para um muro cinzento e embolorado a um metro e meio de distância, que você consegue alcançar com o braço esticado. Quando há, são janelas basculantes que sequer permitem alguma vista e pouca renovação de ar oferecem.
Baixios, várzeas, topografias irregulares. Choveu, inundou. Umidade e sedimentação de detritos por gravidade, banquete servido constantemente presente aos vetores de zoonoses, de tudo capaz de assustar, barata e rato em assembleia concorrida. Ratazanas com obesidade mórbida.
Dinheiro na mão, uma das regras básicas de sobrevivência das pessoas em constante risco social. Se você um dia for comprar algo de gente humilde, procure deixar de lado o cartão magnético, um pouco que seja, dê o velho e bom papel-moeda. Um papel desejado e que entra rápido em circulação na comunidade.
Amassado, gasto, sujo, dinheiro circula rápido, de mão em mão. É a compra da manhã, o pão e o café moído, a compra do jantar, carne com sebo, a passagem do ônibus para ir ao trabalho no dia seguinte, o trocado que se precisava para inteirar na lotérica o pagamento da conta de água já em vias de suspensão dos serviços de fornecimento.
Solidariedade informativa, a rádio vocal comunitária, da rua, do povo. Uma oralidade que merece maior atenção, estudo. Impressiona perceber o processo de circulação de informações dentre um bairro carente de baixa renda. Dona Luzia disse que o coxão duro está a treze reais no açougue. Raimunda disse que domingo terá algodão-doce de graça pras crianças no lojão e que chegou o remédio em falta na farmácia do SUS. Só que tem de ir lá retirar rápido, pois só dá pra um dia e meio.
Raimunda mês passado estava apertada, ficou preocupada, nem dormiu direito, pensou na dívida com o pedreiro que a ameaçou e botou medo. Nem dormiu direito no dia em que o homem barbudo enorme apareceu lá no seu barraco cobrando o serviço porcamente executado um mês atrás.
Raimunda deu um jeito, pôs seu moleque menor pra vender geladinho na porta do metrô. Foi na vizinha esposa do dono do boteco e emprestou o freezer horizontal por uma noite. Deu duro, Raimunda se esforçou, como sempre, trabalhou o dia inteiro na faxina pesada e, à noite, com a coluna lombar em frangalhos, ficou misturando suco, leite condensado, ensacando, botando pra congelar geladinho no freezer emprestado da vizinha somente por uma madrugada.
Última vez quando mandou o filho menor pra rua vender algo conseguiu uma encrenca das grandes. Agentes do Conselho Tutelar vieram ao seu barraco, tomou bronca e reprimenda, levou ameaça de corte de parco benefício social. Raimunda ficou pensativa, ultimamente somente se achegava ao seu barraco gente brava, cheia de razões.
Para o ano que entra, governo novo, ela precisará pensar em algo mais criativo, já está cansada de tomar bordoada na vida, pancada pra todo lado, marido a deixou com filho para criar, pra piorar ela pegou Covid, sincicial, norovírus, tudo nos ônibus lotados do dia a dia. Nomes estrangeiros que o médico lhe disse em consulta.
Em 2023 todos e todas mais pobres nas grandes cidades, de origem nordestina principalmente, estes e estas estão esperançosos. Bem sabem, que não se brinque, não mexam com quem já passou fome na vida, aí a garra e a raça se mostram, a face se expõe.
Quem já passou fome de verdade e sentiu na pele o ardor da labuta diária no Nordeste brasileiro haverá de bem governar o País. Oxalá, assim seja, Oxóssi, budas obesos e a santa dos endividados inclusa, também ela.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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