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    Paulino Cardoso

    Historiador, analista geopolítico e Editor do Mundo Multipolar

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    Sri Lanka: Anura Kumara e o retorno da esperança na pérola do Índico?

    Tal e qual Bangladesh que analisamos em um texto anterior, não é possível compreender o país sem levar em conta sua importância estratégica

    Dissanayake, líder marxista, novo presidente do Sri Lanka (Foto: Reuters)

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    Jean-Pierre Page, escritor francês que viveu 15 anos no Sri Lanka, tem uma leitura do país um pouco diferente do modo como a mídia corporativa ocidental apresenta as mudanças políticas que sacudiram a nação cingalesas nos últimos anos.

    Tal e qual Bangladesh que analisamos em um texto anterior, não é possível compreender o país sem levar em conta sua importância estratégica. Segundo o autor, o Sri Lanka é, de fato, uma encruzilhada e um centro dos corredores marítimos da Ásia, portanto, da China, com as suas Rotas da Seda para África, a Ásia Ocidental, a Europa e mais 50% do tráfego de petróleo e 75% do tráfego internacional de contentores passam perto das suas costas.

    Lembra ainda, das infraestruturas portuárias entre as mais modernas e maiores do mundo, como a de Hambantota construída pela China, o Sri Lanka possui o maior porto de águas profundas do Sudeste Asiático: Trincomalee. Os Estados Unidos há muito sonham em torná-la uma base para a sua 7ª Frota e a nau capitânia da Marinha dos EUA.

    Estamos falando de mais um país miserável, de belas praias,  no fim do mundo? Ledo engano. De acordo com Page,citando dados do Banco Mundial de 2019, o país está entre os países mais avançados da Ásia, com uma taxa de matrícula escolar de 91%, uma taxa média de alfabetização de 92,3%, uma esperança de vida de 77 anos, um elevado nível de qualificação profissional, e habilidade artesanal, sua medicina ayurvédica de 5.000 anos, da qual 80% da população se beneficia, é reconhecida mundialmente.

    Da mesma forma, é preciso focar nas riquezas do país. Sri Lanka exporta chá e borracha, herança da colonização britânica. Mas é, igualmente rico em terras raras, pesca, petróleo e gás.

    Contra esse pano de fundo é que precisamos refletir sobre a política local e suas relações com os gigantes geopolíticos, entre eles, Índia, China, Rússia e Estados Unidos. Este último, como sabemos, tem obsessão pelo controle das vias marítimas, em especial, a possibilidade real de negar o acesso a sua adversária existencial: a República Popular da China. Esta, por sua vez, integrou desde o início a Iniciativa Cinturão e Rota, com investimentos vastíssimos em infraestrutura, principalmente portos e rodovias. Não por acaso, o país é usado como exemplo da famosa “armadilha da dívida chinesa". Embora a China só controle 10% da dívida do país. Já a Índia, vizinho poderoso, vê o país como parte de sua área de influência e vê o país como peça importante para o domínio do sul da Ásia.

    Uma peculiaridade, o nome oficial do país é República Socialista Democrática do Sri Lanka. E como tal, o país esteve envolvido com os grandes fatos do século XX. Che Guevara visitou Sri Lanka em 1959, e Cuba fez um dos seus primeiros tratados comerciais, açúcar por borracha. Foi um dos signatários dos Movimentos dos Países Não-Alinhados, fiel defensor da Causa Palestina, em 2022, e se recusou a condenar a Operação Militar Especial  da Federação Russa na Ucrânia.

    Infelizmente, este país pluricultural, enfrentou a insurgência nacionalista do tamil só superada em 2019. Logo depois, veio a epidemia de COVID19, que destruiu uma das fontes de renda, o turismo. Combinado com a redução de remessas dos emigrantes, em especial, dos trabalhadores cingaleses na petromonarquias do Golfo. Entretanto, o pior veio com medidas sócio-ambientais, como a proibição de uso de fertilizantes tradicionais, que destruiu a agricultura, principalmente, cultivo de arroz. E, a gota d'água, a submissão dos país às políticas de austeridade impostas pelo Fundo Monetário Internacional, com a receita de sempre, privatizações e corte de serviços públicos. O país ficou sem recursos até mesmo para importar alimentos. 

    Esse caldo perverso, fez explodir a população novamente em 2022, fato que Jean-Pierre considera uma Revolução Colorida. O Governo interino de Ranil Wickremasinghe, indicado pelo presidente que fugiu para Arábia Saudita e depois renunciou, Gotabaya Rajapaksa, manteve a receita austericida. Se recusando até mesmo a aceitar apoio de Rússia e China para não desagradar aos EUA.

    Nesse quadro, o partido de tendência marxista, apareceu como uma alternativa. Janatha Vimukthi Peramuna, Frente Popular de Libertação, envolveu-se desde sua fundação em insurreições armadas (1971 e 1989), até, após a dissolução da União Soviética, em 1994 se tornar um partido e passar a participar das eleições.

    Em 2014, sob liderança de Anura Kumara Dissanayake, afastou-se de uma linha mais à esquerda e ampliou o campo de intervenção, atuando por meio da frente Poder Popular Nacional, o NPP, em sua sigla em inglês, que reúne sindicalistas, budistas e outros movimentos sociais.

    A articulação política que nos fez lembrar de Alberto Fernandes, na Argentina, e Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, que permitiu ao JVP superar seus adversários nas últimas eleições. Anura Kumara, de 55 anos, foi declarado vencedor com 42,3% dos votos, à frente do líder da oposição no Parlamento, Sajith Premadasa (32,7%), e do presidente em exercício, Ranil Wickremasinghe (17,2%).

    Como se sabe, rapidamente o presidente da República Popular da China, Xi Jinping, cumprimentou  seu homólogo cingalês. E diferentes periódicos indianos manifestaram preocupações em ver a vitória de um membro JVP, como um líder crítico da Índia e pró-chines, algo que não passou despercebido da mídia chinesa.

    O portal Opera Mundi,¹ resumiu as notícias na mídia ocidental sobre o fato: Anura Kumara Dissanayake, o candidato da coalizão de esquerda de um Sri Lanka que passa por medidas de austeridade, venceu a eleição presidencial realizada no sábado (21/09), anunciado pela comissão eleitoral do país no domingo (22/09) e já tomou posse na segunda-feira (23/09)..

    Segundo o portal, o presidente eleito do Sri Lanka já se pronunciou, prometendo que sua vitória era “a de todos” os cidadãos do país, em uma mensagem transmitida na rede social X após o anúncio dos resultados. Juntos”, acrescentou ele.“Estamos prontos para reescrever a história do Sri Lanka”, expressou Anura, ao final do seu discurso.

    Côme Bastin, correspondente da RFI na região, citado por Opera Mundi, , em 2022 “os cingaleses depuseram o ex-presidente Gotabaya Rajapaksa, acusado de ter levado o país à beira da falência, e Wickremasinghe, um de seus amigos íntimos, se manteve no poder desde então”, depois de negociar um plano de resgate econômico para o Sri Lanka com o Fundo Monetário Internacional.

    Para o Opera Mundi, o voto reflete o cansaço da população diante da crise econômica, mas também das medidas de austeridade que acompanharam o acordo com o FMI. Ex-marxista, Dissanayake pretende manter esse plano de recuperação, mas negociá-lo para aliviar os cingaleses em termos de poder aquisitivo. “Não cancelaremos o plano do FMI”, confirmou à AFP Bimal Ratnayake, membro do gabinete político da Frente de Libertação Popular (JVP), o partido do presidente eleito. “Nosso desejo é cooperar com o FMI e introduzir algumas emendas.

    Em sua primeira medida, o novo mandatário, de 55 anos, anunciou a dissolução do parlamento  e convocou eleições gerais para buscar obter uma maioria no Parlamento, necessário às políticas que pretende implementar. Atualmente a bancada de seu partido se limita a apenas três deputados.

    O novo presidente foi eleito com uma plataforma marcada pela promessa de transparência. Entre seus principais compromissos estão a responsabilização de líderes políticos anteriores pelos casos de corrupção, o fim aos privilégios parlamentares e a renegociação de um empréstimo de US$3 bilhões outorgado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).

    Como a Argentina de Alberto Fernandez, a dívida é um problema a ser resolvido. Além disso, o país está infestado de ONGs estrangeiras, muitas comandadas pela embaixada dos EUA, que talvez se tornem o verdadeiro obstáculo às mudanças. Por exemplo, aceitar o acordo proposto pela Rússia de fornecimento a preços subsidiados de petróleo e seus derivados e a ampliação dos investimentos chineses. 

    Veremos se a esperança vencerá o medo!!!

    Fontes:

    https://reseauinternational.net/maidan-bis-repetita-au-sri-lanka/

    https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/anura-kumara-dissanayake-presidente-marxista-sri-lanka/

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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