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    Mariana Yante

    Pesquisadora do Instituto de Estudos da Ásia/UFPE e Visiting Researcher na Shanghai JiaoTong University.

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    Sua arma, minhas regras – a legalização é (também) uma questão de gênero

    O Brasil, que em números absolutos é o país com o maior número de assassinatos de pessoas trans do mundo, teve um aumento de 63,7% de vítimas entre os dados obtidos de 2015 e 2017, valendo registrar que vítimas negras e pardas representam a maioria, e reforçam a invariável interseccionalidade das violências no país.

    Sua arma, minhas regras – a legalização é (também) uma questão de gênero (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

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    No último 15 de janeiro, o presidente da República Jair Bolsonaro assinou o Decreto n. 9.685, que regulamenta a Lei n. 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), dispondo sobre os critérios para que um indivíduo tenha até quatro armas de fogo em casa ou no ambiente de trabalho, utilizando parâmetros questionáveis para definir a “necessidade” que justifica sua aquisição.

    Embora o ato presidencial não tenha incluído nenhuma regulamentação acerca do porte das armas de fogo, ou seja, sobre andar legalmente com uma arma nas ruas, o decreto não apenas abre margem para que mais anacronismos normativos aconteçam, mas também aumenta a possibilidade de que a circulação ilegal tenha espaço.

    O Estatuto do Desarmamento, inicialmente regulamentado em junho de 2004, era voltado para estabelecer condições mais restritivas para a aquisição e o porte de armas de fogo, e teve, em um primeiro momento, repercussões diretas na diminuição da violência resultante desse meio, a partir da implementação de políticas públicas, como a Campanha do Desarmamento.

    Em outubro de 2005, realizou-se uma consulta popular (referendo), prevista no próprio estatuto, sobre a proibição do comércio de armas e munição como um todo. Na ocasião, 63,68% dos votos válidos (com uma abstenção de mais de 21% dos 123 milhões do eleitorado registrado) resolveram excluir o artigo 35, dando lugar a uma sucessão de atos normativos e discussões no Congresso sobre seus efeitos.      

    A agenda pró-armamento foi uma das chaves de campanha presidencial do ex-candidato do PSL e, como consequência das promessas que muitos e muitas de nós não queriam ver cumpridas, o decreto em referência foi o primeiro da gestão Bolsonaro, devendo se seguir de uma medida provisória anunciada pelo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que pode duplicar o número de armas regulares em circulação.

    Além das repercussões nefastas sobre a violência urbana e no campo, a criminalização dos movimentos sociais e da luta pela reforma agrária e a “higienização” racial e de classe que se delineiam no Brasil, as medidas em implementação merecem um recorte reflexivo importante: o de gênero.  

    Primeiramente, embora a resposta ao referendo do Estatuto do Desarmamento, que perguntava se “você é a favor da proibição do comércio de armas e munição no Brasil”, tenha sido negativa, algumas estatísticas sugerem que houve um contraste grande entre homens e mulheres que deram suporte à campanha.

    À época, a frente parlamentar que defendia o comércio de armas – a Frente pela Legítima Defesa (40 parlamentares) – não possuía nenhuma mulher em sua composição, enquanto a Frente por um Brasil sem Armas (80 parlamentares) tinha 14 mulheres, sendo 12 deputadas, um dado interessante diante das 42 deputadas que existiam na casa parlamentar.

    Da mesma forma, pesquisas de opinião então realizadas demonstravam que 85% das mulheres eram contra a venda de armas e munição, e apenas 9% já haviam pensado em comprar uma arma de fogo.      

    Por outro lado, em estudo realizado pelo IPEA sobre os impactos do Estatuto do Desarmamento, observou-se que, enquanto os homens têm oito vezes mais chances de comprar armas de fogo que as mulheres, a implementação dessa lei, antes das mudanças promovidas pelo referendo, permitiu que a demanda masculina por armas caísse 45,1%. Em outras palavras, o Estatuto, quando sua regulamentação original estava em vigor, fez com que a discrepância de uso da força entre homens e mulheres, reforçada pela letalidade e pela possibilidade de que as armas de fogo fossem usadas como ameaça, fosse diminuída.

    As armas de fogo foram empregadas como meio de coerção em 24% dos estupros notificados, registrados perante o Ministério da Saúde, nas hipóteses em que a vítima é adulta e desconhece o estuprador, sendo importante lembrar que, em razão do grande contraste com os dados obtidos pelo sistema de segurança pública, os 49.497 casos de estupro no ano de 2016, por exemplo, podem representar apenas 10% das violências efetivamente ocorridas. Assim, a flexibilização das regras de posse e porte sugere não apenas ao aumento das ameaças, domésticas ou não, por meio de arma de fogo, mas também um impacto sobre os estupros seguidos de feminicídio.

    Como bem ressaltou o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, ao sugerir um critério questionável de residência em áreas urbanas com altos índices de violência, o decreto abre margem para a posse de duas armas de fogo entre três em cada quatro brasileiros(as). Os danos podem ser também impactantes na saúde pública, considerando a possibilidade de aumento das internações em virtude de lesões por arma de fogo, incluindo acidentes.

    De acordo com o último Mapa da Violência (2016), a média nacional das vítimas por arma de fogo correspondeu a 94,4% de homens, concentrados entre jovens, com pico nos 20 anos de idade, entre os quais foram registradas 67,4 mortes por 100 mil jovens. Segundo o Atlas da Violência (2018), ainda que o sexo masculino concentre a maior quantidade de mortes, em 2016, por exemplo, a taxa de homicídios de jovens e adultos negros foi duas vezes e meia superior à de não negros.

    Segundo a Organização Mundial de Saúde, ao redor do globo aproximadamente 80% das mortes por armas de fogo, incluindo homicídios e suicídios, têm os homens como vítimas. No Brasil, embora poucos dados sejam disponibilizados, a agência da ONU estimou que 10% do PIB é destinado ao tratamento desses(as) pacientes e ao aumento de políticas no mesmo âmbito, gerando custos desproporcionais para os sistemas de saúde e seguridade, e impedindo que recursos sejam expendidos em outras áreas de prevenção e tratamento. 

    Em um contexto em que a PEC do Teto dos Gastos passou a congelar, a partir de 2017, o orçamento da saúde por vinte anos, e que o aumento do orçamento para 2019, em relação a 2018, será de apenas 0,84%, a precarização da assistência e o inevitável aumento de custos com as vítimas de acidentes por armas de fogo devem gerar distorções nas alocações de recursos para programas voltados para a saúde da mulher, por exemplo.

    Entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%, enquanto o grupo remanescente teve uma redução de 6,8%. Esses números também possuem um impacto direto sobre as mulheres: a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras, e o risco de morte violenta para mulheres entre 15 e 29 anos foi duas vezes maior, reforçando que o Brasil vive um feminicídio de Estado.

    Em se tratando de transfobia, as armas de fogo novamente aparecem como fator de risco, já que correspondem a 46,5% das tentativas de homicídio registradas em 2017, enquanto o uso de armas brancas, conjuntamente, chega a 25% das ocorrências para o mesmo período. Entre os assassinatos consumados contra indivíduos LGBTI, 179 em 2017, 52% foram igualmente cometidos com arma de fogo, ao passo em que armas brancas e espancamento representaram 18% e 17% respectivamente, considerando os casos nos quais as ocorrências foram desagregadas pelo meio coercitivo utilizado.

    O Brasil, que em números absolutos é o país com o maior número de assassinatos de pessoas trans do mundo, teve um aumento de 63,7% de vítimas entre os dados obtidos de 2015 e 2017, valendo registrar que vítimas negras e pardas representam a maioria, e reforçam a invariável interseccionalidade das violências no país.

    Assim, no âmbito de uma política panfletária na qual o Estado usa o discurso do medo e do ódio para dar cor e gênero às persecuções e esvaziar seu papel protetivo, a impunidade e a execução seletivas nos chamam à reflexão e à resistência em uma metáfora: Marielle Franco vive.    

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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