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Manuel Domingos Neto

Historiador, professor, pesquisador na área das Forças Armadas. Foi deputado federal pelo Piauí

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Telefonema inesquecível

"Não comemoro a morte de Delfim nem vejo motivos para esquecer a ditadura ou dourar sua ação funesta", escreve Manuel Domingos Neto

Delfim Netto durante entrevista à Reuters em São Paulo em julho de 2013 15/07/2013 (Foto: REUTERS/Paulo Whitaker)

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1976. Eu era estudante e Delfim era embaixador em Paris, nomeado por um general com poder de vida e morte sobre militantes políticos. 

Aldo Arantes, Haroldo Lima e Vladimir Pomar estavam sendo torturados em São Paulo. 

Liguei para a Embaixada. Apresentei-me como empresário israelita, íntimo do Embaixador. Não lembro o nome que inventei. Deu certo, ele atendeu.

“Se não pararem de torturar Aldo, Haroldo e Vladimir, vou te dar um tiro na barriga”.

Desliguei e me afastei morrendo de medo, mas sem pressa, da estação de metrô Odeon.

Na época, o “Chacal” deixava as capitais europeias atemorizadas. Sua atuação estigmatizava a resistência democrática latino-americana. Ajudava a “legitimar” governos sanguinários.

Mas, naquele telefonema, senti-me meio “Chacal”. Foi a reação de um atordoado diante da bestialidade. Obviamente, eu não daria tiro na barriga de ninguém.

1989. Eu analisava a seca nordestina no grande expediente da Câmara dos Deputados. 

Passei em revisão a política da Ditadura para o Nordeste. Apontei o mal uso dos incentivos fiscais, o clientelismo corrupto, a manipulação estatística, a propaganda demagógica, a penúria renitente dos trabalhadores rurais e o uso despudorado dos sem-arrimo para a ocupação desastrada da Amazônia.

Delfim ouviu-me atentamente, sem pedir aparte.

Ao final, disse-me ter gostado da análise sobre a criação extensiva de gado bovino e perguntou se eu acreditava mesmo na possibilidade de industrialização do onde faltava água. 

Respondi que uma média pluviométrica de 600mm anuais não desqualificaria o sertão nordestino como área apta para a agricultura e atividades manufatureiras. 

Formou-se uma pequena roda, que incluía Haroldo e Aldo. No ambiente descontraído do plenário, perguntei se ele lembrava da ameaça que recebera quando era embaixador.

Ele me olhou espantado. Certos telefonemas são inesquecíveis. 

Manifestei minha alegria por estarmos todos vivos.

2024. Não comemoro a morte de Delfim nem vejo motivos para esquecer a ditadura ou dourar sua ação funesta.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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