Tiranos reeleitos pelo povo
“A reeleição de um autocrata ao poder acelera a degradação da democracia”, diz estudo
por César Locatelli
O Brasil teve o privilégio de poder observar, antecipadamente, as ondas de infecção por coronavírus em outros países para adotar medidas que poderiam diminuir a mortandade. Lamentavelmente, não o fez. Embora represente 2,8% da população mundial, o Brasil teve 10,5% do total de mortes no mundo.
De forma semelhante, o Brasil tem, neste momento, a oportunidade de evitar a escalada autoritária em curso. Tem como exemplos países como Turquia, Índia e Hungria que passaram pela reeleição de líderes autoritários antes de serem classificados como autocracias eleitorais, em que a legitimidade das eleições foi arruinada por irregularidades e limitações à competição.
Em artigo de 2020 para a revista Quatro cinco um, Conrado Hübner Mendes, explicou que “os trinta anos da Constituição de 1988 ajudaram a perceber que o entulho autoritário não era entulho, mas estoque. Renovar a metáfora, contudo, não basta. É necessário entender como e por que o estoque cresceu e se diversificou. Não houve somente a continuidade do velho, uma simples apropriação do entulho. No ventre da democracia de 1988 foram criadas formas renovadas e originais de autoritarismo”.
Estudo do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) compilou, entre janeiro de 2019 e dezembro de 2021, um total 1.692 ações, de diferentes esferas de governo, que ampliam o Estoque Autoritário do Brasil. A primeira parte do estudo, denominado O Caminho da Autocracia, classifica tais ações, que elevam o grau de autoritarismo no país, em cinco eixos e dá exemplos.
Redução dos Mecanismos de Controle e/ou Centralização (424 ocorrências)
Ao inviabilizar as atividades dos órgãos e agências internas de controle, o poder político é centralizado no presidente da República e seu círculo. Alguns exemplos citados no estudo: o Ministério da Saúde passa a omitir total de mortes por covid-19 (06/2020); onze dos vinte e três ministérios são chefiados por militares; Tribunal de Contas da União revelou haver 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis do governo (07/2020); Câmara dos Deputados muda Regimento Interno e diminui instrumentos políticos da oposição (07/2020); servidores do ICMBio e do Ipea passam a ter suas publicações controladas (07/2020).
Violação da Autonomia Institucional (198 ocorrências)
Semelhante a uma “evisceração institucional”, esta prática, fundada em posições político-ideológicas e interesses partidários, conduz ao esvaziamento de instituições da administração pública. Os seguintes atos exemplificam tais violações: em um ano como Procurador Geral da República, Augusto Aras se alinhou ao governo em mais de 30 manifestações (07/2020); a maioria dos Superintendentes estaduais do Ibama é exonerada, o que é considerado irregular em 10/2020 pelo TCU (07/2020); decreto destitui representantes eleitos e reduz participação de entidades sociais em vários conselhos participativos (07/2020).
Construção de Inimigos (620 ocorrências)
As ações assim classificadas buscam retirar legitimidade de quem quer que se oponha às visões de mundo dos detentores do poder. Dois exemplos desta prática são: Jair Bolsonaro, em solenidade no Palácio do Planalto, afirma que pessoas de esquerda “não merecem ser tratadas como se fossem pessoas normais” (01/2020); Kassio Nunes Marques, ministro do Supremo Tribunal Federal nomeado por Bolsonaro, aciona a Procuradoria Geral da República contra Conrado Hübner Mendes, professor da USP e pesquisador do LAUT, por conta de texto publicado no jornal Folha de São Paulo (06/2021).
Ataque ao Pluralismo e a Minorias (235 ocorrências)
O objetivo de atacar o pluralismo e as minorias, há muito discriminadas, é fazer prevalecer políticas discriminatórias, baseadas em concepções restritas. Dois ataques, um aos direitos reprodutivos das mulheres e outro a direitos dos povos originários, exemplificam: ministra do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos denuncia revista ao Ministério Público por reportagem sobre aborto legal (09/2019); adiamento do julgamento do marco temporal pelo STF ameaça direitos indígenas garantidos pela Constituição (09/2019).
Legitimação da Violência e do Vigilantismo (215 ocorrências)
Exibição de força e disseminação de sentimento de insegurança compõem a base dessa categoria de atos. Algumas ações desta categoria são: edição de uma série de decretos que flexibilizam porte e posse de armas (06/2021); aprovação, pelo Congresso Nacional, de lei que amplia permissão de armas na área rural (06/2021); permissão, dada pelo TRF-5, para comemoração do golpe militar na página institucional do Ministério da Defesa (06/2021); criação de obstáculos e possível interferência no MP-RJ na investigação do homicídio de Marielle Franco e Anderson Gomes enfrenta (06/2021).
Olhando para o Futuro
Para fechar a primeira parte, o estudo apresenta um conjunto de “Sinais de um Projeto Autocrático para o Brasil”:
“Chamam a atenção as seguintes propostas, que constituem agenda de longa data do governo:
- Permissão do ensino domiciliar – homeschooling – (PL 2401/19)
- Proibição de saída temporária da prisão (PL 360/21)
- Permissão de mineração em terras indígenas (PL 191/20)
- Alteração da demarcação de terras indígenas – o chamado marco temporal – (PL 490/2007)
- Facilitação do licenciamento ambiental (PL 3729/2004)
- Ampliação do porte de armas para servidores públicos (PL 6438/19)
- Regulação das atividades de colecionador, atirador esportivo e caçador (CAC) (PL 3723/2019)
- Redução da maioridade penal (PEC 115/2015)
- Ampliação da regularização fundiária (PLS 510/2021)
- Instituição de garantias jurídicas a policiais (em elaboração)
- Ampliação de garantias ao agronegócio (MP 1104/22)”
Estratégias e táticas autoritárias em políticas públicas de educação, espaço cívico e segurança
A segunda parte do estudo aponta semelhanças entre as investidas autoritárias no Brasil, Índia, Hungria e Polônia nas políticas sociais da educação, do espaço cívico e da segurança pública. Os autores ressaltam que:
“Educação, espaço cívico e segurança pública são áreas de especial interesse aos líderes autoritários, sendo frequentemente cerceadas desde seus primeiros mandatos. Nelas, é possível observar a disseminação da autocensura, do medo e da desconfiança, que atrofiam o projeto democrático. Sem estudantes e acadêmicos críticos, uma esfera pública vibrante e políticas de proteção aos cidadãos, dentre tantos outros aspectos relevantes, as democracias vão perdendo seus lastros de legitimidade e confiança recíproca, sem os quais não sobrevivem.”
O quadro abaixo resume as principais estratégias e táticas autoritárias usadas na elaboração de políticas públicas nas três áreas.
Quais são os possíveis efeitos da reeleição de Bolsonaro?
Respondendo à pergunta acima, formulada pela jornalista Carolina Azevedo para publicação no Le Monde Diplomatique Brasil, Adriane Sanctis, pesquisadora do LAUT, afirma:
“Em países com manutenção de autocratas no poder, as ações e omissões dos primeiros anos de governo se multiplicam e aprofundam com o tempo. Além disso, uma reeleição é geralmente lida e usada pelos autocratas como uma espécie de aval majoritário que acaba servindo de motor para acelerar ainda mais o espiral autoritário e a implementação de medidas mais gravosas contra liberdade civis e políticas. Em outras experiências de autocratização, a reeleição é um momento central de consolidação de um regime autoritário, um ponto de não retorno.”
Advertência
“Não há receita pronta para se interromper ou reverter o processo de autocratização. A retomada da marcha de aprofundamento da democracia ainda não está no horizonte. O que se sabe, com base nas experiências relatadas, é que a reeleição do autocrata põe em risco a própria manutenção da competição democrática”, conclui o estudo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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