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    Eugênio Trivinho

    Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

    11 artigos

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    Toada de arrastão (II)

    Indicadores empíricos e comentários adicionais sobre o descalabro do discurso de relaxamento sanitário na curva ascendente do COVID-19 no Brasil

    Os Estados Unidos ultrapassaram a marca de 1.000.000 de vidas contaminadas e 50.000 mortes pelo COVID-19. A informação é do The New York Times, na edição de 29/04, às 8h56, e pode estar defasada por subnotificação.(1) Com pequena variação (devido ao gap de atualização), as dados coincidem com o monitoramento sistemático feito pela John Hopkins University.(2)

    Dois dias atrás, o The New York Times reportou que 8 Estados norte-americanos reabriram parcialmente a economia e 7 decidiriam o que fazer no dia 30. O restante dos Estados permanece sob medidas restritivas, sem prazo de suspensão.(3)

    A Casa Branca tem pressionado fortemente os Estados em prol da restauração da normalidade produtiva, com um plano gradual (em três etapas), lançado no dia 16 passado.A agressiva curva da pandemia no país ainda é ascendente. Mesmo sob os critérios delineados no plano, a sanha dos interesses econômico-financeiros e da cobiça por acumulação lucrativa projetados sobre a saúde pública e sobre a tecnociência poderá precipitar a população num patogenocídio sem precedentes.

    A depender do modo de realização dessa retomada econômica e de seus resultados sanitários a curto prazo, a toada impaciente, irracionalista na base, pode influenciar, de alguma forma, o continente inteiro.

    O Brasil se enquadra no arco privilegiado desse arrastão. O atrelamento político-institucional do escalão federal aos ventos norte-americanos é flagrante a partir de janeiro de 2019.

    Desde o primeiro caso brasileiro de contaminação pelo COVID-19 em fevereiro passado, mais de 70 mil vidas foram contaminadas no país. A exponenciação do vírus ultrapassou 5.000 óbitos. As informações são das mesmas fontes citadas (na mesma data e horário) e podem estar bastante defasadas, por ausência e/ou impossibilidade de cômputo preciso.(4) Os dados refletem, em proporção relativa –  considerado o intervalo de atualização –, aqueles do Ministério da Saúde brasileiro.(5)

    O The New York Times mostra que, hoje o aclive do COVID-19 no Brasil é mais acentuado que o dos Estados Unidos. Ainda assim, em clima de pressão hospitalar crescente, o Palácio do Planalto, o capital graúdo e organizações patronais pressionam em favor da ruptura das medidas médico-sanitárias recomendadas pelo Ministério da Saúde em meados de março.

    Até o momento, porém, inexiste plano federal consistente para a retomada da normalidade presencial das atividades produtivas – um plano macroestrutural seguro, com base em diretrizes e critérios científicos definidos, fixados a partir de consultas multilaterais a especialistas qualificados; vale dizer, um plano capaz de conjugar a eventual oportunidade do relaxamento das medidas médico-sanitárias com o oferecimento de proteção convincente à população, especialmente ao contingente majoritário e mais vulnerável ao vírus, o dos trabalhadores expostos a aglomerações em espaços urbanos e transportes públicos. Recomendações internacionais atuais são enfáticas em demonstrar, empírica e estatisticamente, que, sob o COVID-19, a proteção sanitária à vida humana é incompatível com situações de tão intensa precariedade.

    Igualmente, não há, ainda, um programa institucional sério de esclarecimento em massa a respeito dos procedimentos protetivos a serem adotados. A convencional metragem no distanciamento interacional e o uso de máscaras e luvas descartáveis não são suficientes. 

    O Ministério da Saúde, por sua vez, doravante sob nova direção (!), ainda não deu mostras de recomposição organizativa à altura da urgência sanitária. Sequer se exija a sua autonomia necessária (fundada em resultados laboratoriais independentes) em relação à total ignorância do timoneiro executivo principal. Na extensão do timão sem leme, a vertente bolsonarista do governo federal, do Congresso Nacional e da sociedade civil prossegue agredindo evidências científicas.

    O Brasil formal, nutrido com verba fiscal da população em risco, não pode permanecer nessa condição inaceitável, de obter, em troca dos impostos, um enorme canil sem cabeça, em que todos os lobos e também cães – com grande respeito zoo aqui – uivam ao mesmo tempo, uns mais alto que outros, numa orquestra tão estridente quanto patética, em oitavas longe da prudência estratégica recomendada pela racionalidade científica. A população brasileira não pode aceitar um descalabro dessa magnitude: mais que pré-renascentista, ele é pré-ocidental.

    Que todos precisam se preocupar com o estado geral e o futuro da economia nacional constitui obviedade que dispensa qualquer lembrança ou prova. A preocupação envolve, antes de tudo, o destino da taxa de empregabilidade, isto é, da saúde imediata das famílias assalariadas. Trata-se de um dever ético elementar de cada cidadão, sobretudo se na condição de empregador.

    O que empurra qualquer decisão para o precipício criminal contra a humanidade, no entanto, é a preocupação indiscriminada, quase exclusiva, com a economia, a ponto de esboroar totalmente a guarda securitária de cada corpo em circulação, colocando em risco milhões de vidas em nome da necessidade de geração de lucro, em função do capital investido. Até o momento, essa guarda securitária – mínima, aliás – é representada pelas estratégias antipandêmicas estipuladas em março passado.

    A impermanência dos números apresentados ou a biodegradabilidade de sua precisão pouco importa. O fato de os indicadores serem outros amanhã não altera a regra e o fundamento do argumento. Mais que números, o que conta é o atrelamento das decisões tropicais às movimentações do norte continental.

    A precipitação autoritária, idêntica à norte-americana, contra o isolamento físico-corporal, combinado com o distanciamento na interação, para desaceleração do risco pandêmico, espelha a inquietação institucional e corporativa pueril da necropolítica no Brasil: quanto mais regressiva, mais virulenta.

    Esse abraço de irresponsabilidade entre Estado e capital, que mimetiza, entre nós, a protorracionalidade da extrema direita norte-americana, executa, a brindes enófilos de vitória iminente, a insensibilidade selvagem e indiferente que a fundamenta, ao arrepio genocida de qualquer consulta à sociedade civil em geral e, provavelmente, à revelia de sua vontade.

    Os apontamentos acima constituem, em síntese, outra forma de caracterização do neofascismo como mentalidade de Estado.

    Notas(1) Veja-se em: https://www.nytimes.com/interactive/2020/us/coronavirus-us-cases.html. Acesso em: 26 abr. 2020. A data é a mesma para as fontes abaixo.(2) Dados em: https://www.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html#/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6.(3) Fonte: https://www.nytimes.com/interactive/2020/us/states-reopen-map-coronavirus.html.(4) Mais detalhes em: https://www.nytimes.com/interactive/2020/world/americas/brazil-coronavirus-cases.html. Os dados da John Hopkins University podem ser vistos no mesmo link da nota 2.(5) Veja-se em: https://covid.saude.gov.br

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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