Tragédia no Rio Grande do Sul cheira a necropolítica
Ao não tomar medidas para preservar a vida, o Estado e seus agentes, colocam em curso, mesmo que não tenham compreensão disso, uma necropolítica
Conceito definido e difundido por Achille Mbembe serve para entender a ineficiência ou mesmo descaso dos gestores públicos diante de calamidades anunciadas, como a tragédia no Rio Grande do Sul.
De forma simplificada, a necropolítica se concretiza quando o Estado assume a autorização para matar. Isso pode ser bem objetivo ao permitir, por exemplo, execuções, treinar os agentes de segurança pública para atirar na cabeça de suspeitos, entre muitas outras ações.
Ao não entender que deve servir seus cidadãos e não tomar medidas para preservar a vida, mesmo diante de previsões de epidemias, pandemias, catástrofes de qualquer natureza, o Estado e seus agentes, colocam em curso, mesmo que não tenham compreensão disso, uma necropolítica (poder de morte).
Infelizmente, este poder é uma realidade no Brasil e pudemos presenciar mais uma vez, com a tragédia que o estado do Rio Grande do Sul vem enfrentando desde o início do mês de maio e contabiliza mais de 100 mortos.
Os rios subiram entre 2 e dez metros e isso aconteceu muito rápido, colocando a cidade de Porto Alegre e muitos outros municípios do estado do Rio Grande do Sul debaixo d'água.
O número de óbitos passa de 100 pessoas e quase toda a região está sem escola, com serviços de saúde completamente comprometidos, sem água e grande parte da população precisou se deslocar. O aeroporto está fechado, as estradas que continuam abertas não dão conta de absorver a demanda.
A situação levou o Governo do Estado do Rio Grande do Sul decretar no dia 02/05 (quarta-feira), estado de calamidade pública e com isso, poderá receber ajuda do Governo Federal.
A tragédia cheira a necropolítica, porque foi uma calamidade anunciada.
O primeiro alerta que foi possível identificar no site da Defesa Civil do Rio Grande do Sul é de 21/04. Nele, o órgão chama a atenção para a chegada de "chuvas fortes, descargas elétricas e risco de alagamentos". O comunicado também orientou que, durante as chuvas, as pessoas busquem ficar em segurança, retirem eletrônicos da tomada e fechem bem portas e janelas. Para aquelas pessoas que moram em regiões com histórico de alagamento, indicou que procurem informações junto à Defesa Civil e conheçam os Planos de Contingência municipais para saber quais os riscos e como agir em caso de desastre no seu município: rotas de fuga, locais de abrigamento e fontes de risco.
Daquele momento em diante, a Defesa Civil disseminou alerta diário e perguntas ficaram no ar: por que a população não seguiu as recomendações ou mesmo porque o Poder Público, em suas diferentes esferas, não agiu de forma preventiva? O que deixou de ser feito? O que aconteceu com as escolas, os materiais foram retirados antecipadamente? Os medicamentos foram levados para lugar seco e seguro antes de os postos de saúde serem inundados? E as pessoas em situação de vulnerabilidade, em situação de rua, reclusas no sistema prisional, o que aconteceu com elas? E os povos de comunidades tradicionais, os quilombolas e indígenas, recebem assistência adequada?
É importante destacar que no descampado de informação, algumas notícias começam a chegar. Segundo o Conselho Indígena Missionário, as enchentes já afetaram mais de 80 comunidades indígenas no RS.
Conforme os dados do Censo, no Brasil existem 1,3 milhão de pessoas quilombolas. O estado com maior concentração desta população é a Bahia. No estado do Rio Grande do Sul, vivem 17,4 mil pessoas quilombolas. Muitas dessas, aproximadamente 7 mil famílias, segundo a Agência Brasil, estão ilhadas, sem acesso à água, energia e alimento.
Quando a água baixar e os serviços públicos começarem a ser restabelecidos, talvez se possa ter noção das graves consequências da calamidade de origem climática e da necropolítica presente.
É importante também que cada pessoa, brasileira ou não, vivendo ou não no país, entenda e assuma responsabilidade em tragédias como esta que o Rio Grande do Sul está enfrentando neste momento. Não dá para colocar a culpa na natureza, que nada mais faz do que tentar se reinventar.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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