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    Sara Goes

    Sara Goes é âncora da TV247, comunicadora e nordestina antes de brasileira

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    Trump, quem é você pra derramar meu mungunzá?

    Assim como no sertão, onde as raízes da macambira e do velame não são derrubadas por qualquer ventania, a América Latina sabe onde está e o que representa

    Presidente dos EUA, Donald Trump, no Salão Oval da Casa Branca 20/01/2025 (Foto: REUTERS/Carlos Barria)

    Luís da Câmara Cascudo, o maior pesquisador de alimentação do Brasil, destacou a delicadeza do processo de fazer mungunzá, no qual cada passo na receita exalava um cheiro característico, como um convite para um passado profundamente enraizado. O preparo, quase ritualístico, revela cada detalhe da memória de um povo e sua íntima conexão com a terra. O mungunzá, seja doce ou salgado, é um prato que demanda tempo e dedicação, e que de jeito maneira pode ser confundido com a canjica.

    No Cariri, por exemplo, a receita salgada do mungunzá é feita à base de milho, mas com a adição de feijão, carne de sol, linguiça, toucinho, mocotó, costelinha, cebola, alho e uma mistura de especiarias que dão ao prato uma complexidade única. Cada ingrediente é cuidadosamente preparado, com a carne de sol sendo dessalgada e refogada com cebola, alho, pimentão e tomate. O milho, depois de deixado de molho de um dia para o outro, é cozido por horas até ficar macio e seus grãos ligeiramente abertos, absorvendo todos os sabores que lhe são acrescentados. O segredo está no equilíbrio, em como os ingredientes se unem e se transformam durante o cozimento, criando algo muito mais do que um simples prato de comida, mas um pedaço da história do Nordeste, um elo com as tradições passadas de geração em geração.

    O mungunzá, seja doce ou salgado, é uma receita tradicional nordestina, repleta de história e sabor, que carrega a essência da cultura da região. Com suas nuances e complexidade, é uma verdadeira coreografia de sabores, que exige tempo e dedicação para ser aperfeiçoada.  Quando Petrúcio Amorim compôs o sucesso Tareco e Mariola, ele formulou, para mim, a maior pergunta da música popular brasileira, o questionamento mais contundente sobre a ousadia e a violência com que muitas vezes somos confrontados. É uma reflexão sobre a tentativa, por parte de alguém sem valor, de destruir o esforço e a dedicação investidos em algo que é tão precioso para nós: Quem é você pra derramar meu mungunzá?

    Donald Trump caminha na contramão do mundo, que se move em marcha lenta, mas sempre em direção a uma realidade multipolar. Talvez por ignorar essa realidade ou, quem sabe, por compreendê-la tão bem, ele insiste em suas políticas agressivas, como se o valor da cultura e da convivência entre os povos fosse algo negociável. Seu desprezo pelas tradições que unem a América Latina e sua postura racista aprofundam ainda mais a separação que ele parece desejar.

    Ao atacar a região com suas ameaças comerciais, imposições econômicas que desconsideram as realidades locais e suas ameaças de deportação em massa, Trump não está apenas enfraquecendo economias, mas colocando em risco os laços que nos tornam mais humanos. Ele desconsidera o verdadeiro significado de construir uma sociedade plural, que valoriza suas origens.

    A resposta a Trump não tem sido silenciosa, e os líderes da América Latina têm se posicionado de diferentes maneiras. A resposta da vizinha de Trump, presidenta do México, Claudia Sheinbaum, foi carregada da mais fina ironia: sugeriu que o sudoeste dos EUA poderia ser chamado de "América Mexicana", destacando com sarcasmo que o nome "Golfo do México" é reconhecido internacionalmente desde 1607.  Já o presidente colombiano, Gustavo Petro, que tem sido frequentemente usado como farol por parte da esquerda brasileira, como uma provocação às ações diplomáticas, às vezes aparentemente conciliadoras demais, do presidente Lula. A diferença entre as posturas de ambos não é apenas uma questão de temperamento, mas reflete, de fato, as realidades de cada um. Lula, com o pragmatismo de um estadista de um país continental, precisa considerar as implicações de suas ações a uma escala muito maior. Petro, por outro lado, lida com consequências menos impactantes, o que lhe dá certa liberdade para adotar posturas mais ousadas. O fato é que, apesar da postura sempre admirável – mas não necessariamente eficaz - de Petro, a resposta firme, ferina e quase poética a Trump é um privilégio. Quando a pressão aumenta, Lula age com a sabedoria de quem sabe que, como um bom mungunzá, é preciso dar tempo para que os sabores se integrem e a força coletiva se manifeste. E, ao contrário do que Trump pensa, a América Latina não será facilmente derrotada.

    Na Argentina, o presidente Javier Milei, embora alinhado politicamente - e qualquer outro advérbios de modo que se encaixe no espectro de fascismo e imbecilidade - com Trump, acaba sendo vítima de uma situação peculiar: por mais que ele compartilhe de muitas das posições do presidente dos EUA, o governo argentino também se vê pressionado a responder aos desafios de uma política internacional que não pode ser ignorada. Milei agora vai enfrentar a tensão de um cenário onde os interesses nacionais precisam ser equilibrados com os caprichos de um líder imprevisível e racista como Trump. Assim como se pergunta até onde vai o fôlego das bravatas e ameaças de Trump, há uma expectativa do dia em que Milei finalmente vai se dar conta de que, por mais galeguinho que seja, ele é um latino sul-americano. A ver. Talvez seja a falta de autopercepção de Milei ou as diferenças entre abordagens dos Hermanos que tinha provocado o cancelamento da reunião de urgência da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), convocada para discutir as mudanças na política migratória dos Estados Unidos.

    A resposta precisa ser unificada, não apenas em palavras, mas em ações concretas. Se Trump quer tratar a América Latina como uma extensão dos interesses americanos, cabe a nós responder com uma união sólida. Assim como no Nordeste, onde os estados podem parecer distantes em suas idiossincrasias e peculiaridades, mas são unidos por uma história e cultura comuns; Galeano observava que a América Latina, em sua diversidade, deve aprender a se fortalecer a partir de suas diferenças. A verdadeira unidade da região reside justamente na capacidade de unir essas diferenças, como um grande mosaico, onde cada peça tem sua própria história e importância, mas todas juntas formam uma imagem maior, mais rica e mais forte.

    É hora de nos levantarmos como um só corpo, como uma única voz, como um bloco de resistência. Se Trump quer jogar as peças do tabuleiro de forma desigual, cabe aos países latino-americanos reivindicar seu lugar de direito. E, como no sertão, onde as raízes da macambira e do velame não são derrubadas por qualquer ventania, a América Latina sabe onde está e o que representa.

    Trump, quem é você pra derrubar meu mungunzá? Aqui, o fogo é nosso e a receita é feita por nós, para todos. E como no Nordeste, onde as raízes se misturam com o calor da terra, nossa resistência é mais forte quando somos coletivos. Juntos, como o cheiro que se espalha do fogão para a rua, a América Latina será imbatível.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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