Ucrânia-Rússia: uma história conturbada
O motivo da guerra não é a independência da Ucrânia; a atual é uma guerra pela reconfiguração política internacional de um mundo em crise
(Publicado no site A Terra é Redonda)
É Ucrânia uma “invenção bolchevique” (ou “de Lênin”) como afirmou Putin, quando anunciou sua intenção de intervir militarmente nesse país? Não foi a Ucrânia, desde sempre, mais do que uma região ou território da Rússia, o que significaria que a atual guerra seria uma guerra civil russa? No meio da guerra, o Papa Francisco elogiou os imperadores russos do século XVIII, que o presidente Vladimir Putin invocou como modelos para as suas anexações territoriais na Ucrânia, provocando uma onda internacional de protestos.[i]
A questão russo-ucraniana remonta, porém, a séculos anteriores aos símbolos do moderno (e cristão) absolutismo russo, evocados por Bergoglio. Ucrânia é o segundo maior país em área da Europa depois da Rússia, com a qual faz fronteira a Leste e Nordeste. Também faz fronteira com a Bielorrússia ao Norte; Polônia, Eslováquia e Hungria a Oeste; Romênia e Moldávia ao Sul; e tem litoral marítimo ao longo do Mar de Azov e do Mar Negro. Abrange uma área de mais de 600 mil km², com 41,5 milhões habitantes (imediatamente antes da guerra).
Historicamente, contrariando Putin, poderia se dizer que foi a Rússia a que emanou da primitiva Ucrânia, não o contrário. O primeiro Estado eslavo (ou “russo”) na região foi o Rus’ de Kiev:[ii] ele esteve a partir do século X na órbita de Bizâncio, com seu cristianismo “místico” (chamado de ortodoxo) e sua liturgia em língua grega, diferenciado do cristianismo “neoplatônico” e latino de Roma. Pouco tempo depois foi introduzido o primeiro código de leis da região, o Russkaya Pravda.
O cristianismo bizantino virou a religião dos três povos que tiveram origem a partir do reino de Kiev: os ucranianos, os russos e os bielorrussos. Em 1240 a cidade de Kiev foi arrasada pela invasão dos mongóis: a maioria da sua população teve de fugir para o Norte. Os mongóis anexaram a região do rio Volga a seus domínios, o que precipitou a fragmentação da Rússia; a área conquistada tornou-se parte integrante da “Horda de Ouro”, como era chamada a porção noroeste do Império mongol. Ela foi dividida em vários principados, alguns deles autônomos.
Os invasores construíram uma capital, Sarai, no baixo Volga, próxima ao Mar Cáspio, onde reinava o comandante supremo da Horda de Ouro, que dominou a maior parte da Rússia por três séculos. Os mongóis faziam incursões punitivas contra os principados cristãos remanescentes; o principado de Kiev nunca se recuperou como centro estatal de sua derrota para os mongóis. Na região correspondente ao atual território da Ucrânia, sucederam à Rússia de Kiev os principados de Galícia e de Volínia, posteriormente fundidos no Estado de Galícia-Volínia.
A meados do século XIV, o Estado foi conquistado por Casimiro IV da Polônia, enquanto o cerne da antiga Rússia de Kiev – inclusive a cidade de Kiev – passou ao controle do Grão-Ducado da Lituânia. O casamento do Grão-Duque da Lituânia com a Rainha da Polônia pôs sob controle dos soberanos lituanos a maior parte do território ucraniano. Nessa época, a parte sul da Ucrânia (incluindo a Crimeia) era regida pelo Canato da Crimeia, enquanto as terras a oeste dos Cárpatos eram dominadas pelos magiares desde o século XI. No século XV, o povo ucraniano se distinguiu dos outros povos eslavos orientais por ser o que habitava a região de fronteira com os poloneses.
A partir da segunda metade do século XVI e, sobretudo, na primeira metade do século seguinte, houve nas regiões ocidentais da antiga Rússia revoltas camponesas sistemáticas contra os proprietários e funcionários administrativos polacos, que dominavam Moscou. Um papel importante na luta contra os nobres na Ucrânia foi desempenhado pelos cossacos oriundos da região em volta do Dnieper. A comunidade camponesa era constituída por ucranianos e bielorrussos que fugiam da opressão dos senhores, dos dvoryane e seus funcionários.
Por volta de 1640-1650 rebentou por toda a Ucrânia e Bielorrússia uma revolta popular em larga escala. Os camponeses, chefiados por Bogdan Khmelnitsky, tiveram o apoio dos cossacos e dos habitantes pobres das cidades; a guerra começou na primavera de 1648. Os camponeses começaram a ajustar contas com os nobres polacos e com os proprietários ucranianos locais: em breve a revolta se espalhou por toda Ucrânia e Bielorrússia. Depois de algum tempo, o Estado russo apoiou a luta camponesa ucraniana contra os suseranos polacos. Destacamentos de cossacos do Don e habitantes das cidades tomaram parte nela.
O governo russo ajudou os ucranianos enviando-lhes víveres e armas. Khmelnitsky voltou-se para o Czar Aleixo pedindo-lhe que fizesse da Ucrânia uma parte do Estado Russo. A Rada de Pereyaslav de 1654 decretou que a Ucrânia e a Rússia se unissem em um só Estado, fato de grande importância na história ulterior.[iii]
No final do século XVIII, entre 1793 e 1795, ficou definida a partilha da Polônia entre a Prússia, a Áustria e a Rússia, que ficou com os territórios situados à leste do rio Dniepre, enquanto a Áustria ficou com a Ucrânia Ocidental (com o nome de província da Galícia). Em 1796, a Rússia passou a dominar também territórios a Oeste do Dniepre, a “Nova Rússia”. Os ucranianos tiveram um papel importante no Império Russo, participando das guerras contra as monarquias europeias orientais e o Império Otomano, assim como ascendendo aos mais altos postos da administração imperial e eclesiástica russa.
Posteriormente, o regime czarista passou a executar uma dura política de “russificação”, proibindo o uso da língua ucraniana nas publicações e publicamente. No século XIX, o “pan-eslavismo” se desenvolveu em toda a Rússia como ideologia de uma “modernização conservadora”, favorecida pelo czarismo em suas relações com o Ocidente: a meados do século XIX, na Rússia, que possuía o maior índice absoluto de produção de Europa, França assumiu a liderança do investimento externo no país. Rússia representava mais de 25% de seus investimentos externos no período compreendido entre 1870 e 1914, contra pouco mais de 3% para a Grã-Bretanha e pouco menos de 8% para a Alemanha. A autocracia czarista, economicamente dependente, no entanto, não renunciou à sua política imperialista.
O expansionismo russo foi um dos fatores que provocaram a Guerra da Crimeia, que se estendeu de 1853 a 1856 na península desse nome (no mar Negro, ao sul da Ucrânia), no sul da Rússia e nos Bálcãs. A guerra implicou de um lado o Império Russo e, do outro, uma coligação integrada pelo Reino Unido, a França, o Reino da Sardenha – formando a Aliança Anglo-Franco-Sarda – e o Império Otomano. A coalizão, que contou ainda com o apoio do Império austríaco, foi criada em reação contra as pretensões expansionistas russas.
Desde o fim do século XVIII, os russos tentavam aumentar sua influência nos Bálcãs. Em 1853, além disso, o Czar Nicolau I invocou o direito de proteger os lugares santos dos cristãos em Jerusalém, que eram parte do Império Otomano. Sob esse pretexto, suas tropas invadiram os principados otomanos do Danúbio (Moldávia e Valáquia, na atual Romênia). O Sultão da Turquia, contando com o apoio do Reino Unido e da França, rejeitou as pretensões do Czar, declarando guerra à Rússia. A frota russa destruiu a frota turca na Batalha de Sinop, provocando uma comoção política internacional.
O Reino Unido, sob o governo da rainha Vitória, temia que uma possível queda de Constantinopla para as tropas russas pudesse lhe retirar o controle estratégico dos estreitos de Bósforo e de Dardanelos, tirando-lhe as comunicações com a Índia. Por outro lado, Napoleão III da França mostrava-se ansioso para mostrar que era o legítimo sucessor de seu tio, buscando obter vitórias militares externas. Depois da derrota naval dos turcos, as duas nações, França e Inglaterra, declararam guerra à Rússia, seguidos pelo Reino da Sardenha.
Em troca, o auxiliado Império Otomano permitiria a entrada de capitais ocidentais. O conflito iniciou-se em março de 1854. Em agosto, Turquia, com o auxílio de seus aliados ocidentais, expulsou os russos dos Bálcãs. As frotas dos aliados convergiram sobre a península da Crimeia, desembarcando suas tropas a 16 de setembro de 1854, iniciando o bloqueio naval e o cerco terrestre à cidade portuária fortificada de Sebastopol, sede da frota russa no mar Negro.
Embora a Rússia fosse vencida em diversas batalhas, o conflito arrastou-se com a recusa russa em aceitar os termos de paz. A guerra terminou com a assinatura do tratado de Paris em março de 1856. Pelos seus termos, o novo Czar, Alexandre II da Rússia, devolvia o sul da Bessarábia e a embocadura do rio Danúbio para o Império Otomano e para a Moldávia, renunciava a qualquer pretensão sobre os Bálcãs e ficava proibido de manter bases ou forças navais no mar Negro. Por outro lado, o Império Otomano era admitido na comunidade das potências europeias, tendo o sultão se comprometido a tratar seus súditos cristãos de acordo com as leis europeias.
A Valáquia e a Sérvia passaram a estar sob a “proteção” franco-inglesa. Isso fortaleceu as ambições inglesas sobre o Oriente Próximo. A indústria militar e o numeroso exército russo não haviam impedido que a Rússia fosse derrotada pelos corpos expedicionários franco-britânicos, que a impediram de atingir Constantinopla e de ter acesso ao Mediterrâneo, às “águas quentes”, motivo principal de seu expansionismo, que se apresentava com uma ideologia de reconquista cristã dos lugares santos.[iv]
A guerra da Crimeia evidenciou o descompasso russo com a civilização ocidental: o Czar Alexandre II pôde avaliar as debilidades de seu império e compreender que a mera inércia era incapaz de proporcionar as vitórias com as que sonhava. O primeiro grande fracasso do expansionismo russo teve fortes repercussões internas. O czarismo, impressionado pela eficiência militar ocidental, passou a importar técnicos e especialistas estrangeiros na arte militar, até começar a formá-los localmente no século XIX, assim como também importou quadros para a crescente burocracia estatal. Os recursos materiais para isso eram extraídos do próprio país, o que significava a imposição de impostos enormes às classes burguesas em vias de formação, e principalmente aos camponeses e pequenos comerciantes, que se viam forçados a escolher entre a fome e a fuga.
O antissemitismo de Estado, um dos instrumentos de dominação do absolutismo ruso, teve na Ucrânia um teatro principal, ao longo do século XIX e inicios do século XX. Em abril de 1903 ocorreu, na porção ucraniana da “zona de residência judia” na Bessarábia, o maior pogrom antissemita já visto até aquela data. Os bairros judeus de Kisinev foram destruídos, as casas, devastadas, centenas de judeus foram feridos e mortos. O “pogrom de Kisinev” chocou o mundo todo e naturalizou o termo russo, pogrom, massacre, para todos os idiomas.
O massacre foi incitado por agentes policiais czaristas e pelas Centúrias Negras; a massa dos pogromistas eram trabalhadores, como também o eram os judeus que perseguiram. A Rússia de 1904, maior império em terras contínuas do mundo, tinha nessa altura mais de 145 milhões de habitantes, e estendia-se desde a Polônia ao Estreito de Behring, incluindo a Finlândia, os países bálticos, a Ucrânia, Bielorrússia, Moldávia e vários outros países orientais.
Ao atraso econômico e à opressão da população camponesa (os mujiks), a autocracia czarista acrescentava o jugo sobre as populações alógenas submetidas pela expansão russa, que faziam parte do Império, tendo algumas delas, no entanto, conhecido no passado um desenvolvimento estatal autônomo. Em seu apogeu, o Império Russo incluía, além do território etnicamente russo, os países bálticos (Lituânia, Letônia e Estônia), a Finlândia, o Cáucaso, a Ucrânia, a Bielorrússia, boa parte da Polônia (o antigo Reino da Polônia), a Moldávia (Bessarábia) e quase toda a Ásia Central. Também contava com zonas de influência no Irã, na Mongólia e no Norte da China. O Império estava dividido em 81 províncias (guberniyas) e 20 regiões (oblasts).
O movimento operário do Império czarista se desenvolveu vigorosamente nas últimas décadas do século XIX e inícios do século XX, sob hegemonia dos socialdemocratas (vinculados à Internacional Socialista, fundada em 1889). A concorrência mais importante dos socialistas no movimento operário “russo” era a representada pelos anarquistas, que criticavam todas as maneiras de se fazer “política”. O anarquismo europeu estaba circunscrito a algumas regiões da Itália, França e Portugal, na Ucrânia (o que teria importância na guerra civil posterior à Revolução de Outubro de 1917) e, em menor escala, em outras áreas da Rússia czarista.
O capitalismo russo, entretanto, progredia, ao sabor de fortes investimentos externos: a construção da ferrovia transiberiana e as mudanças econômicas levadas adiante pelo ministro Sergei Witte atraíram o capital estrangeiro e estimularam uma rápida industrialização nas regiões de Moscou, São Petersburgo, Baku, bem como na Ucrânia, suscitando a formação de um operariado urbano e o crescimento da classe média. A nobreza mais abastada e o próprio Czar procuravam manter intactos o absolutismo russo e sua autocracia.
Nos prolegómenos do primeiro conflito mundial, uma das questões estratégicas era que a Rússia não poderia manter o controle sobre a parte Oeste industrializada do seu império – Polônia, Ucrânia, os estados do Báltico e a Finlândia – se a Áustria humilhasse seu aliado sérvio; a Rússia dependia dessas províncias para o grosso dos impostos que seu governo absolutista arrecadava. Quando explodiu, em fevereiro de 1917, no meio de catástrofes e derrotas bélicas do exército russo, a revolução contra a autocracia czarista, em Ucrânia, um movimento nacionalista rudimentar (basicamente reduzido à intelectualidade) proclamou em junho de 1917 uma república autônoma sob a autoridade da Rada, uma Assembleia Nacional.
Em outubro do mesmo ano, como é sabido, uma nova revolução proclamou o “governo soviético”, emanado dos sovietes (conselhos de operários, soldados e camponeses). Depois da Revolução de Outubro, que levou os bolcheviques ao poder político e retirou a Rússia da guerra mundial, os países beligerantes que haviam sido aliados da Rússia sustentaram o governo da Rada ucraniana, hostil ao bolchevismo, sendo o país dividido com a proclamação de um governo soviético ucraniano (com Rakovsky e Piatakov) e com a passagem da Rada (com Petliura)[v] para a órbita alemã. A revolução soviética concedeu o pleno direito de independência às nacionalidades alógenas do velho Império czarista.
A Geórgia dominada pelo menchevismo (fração moderada da socialdemocracia russa) escapou da sorte da Armênia e do Azerbaijão, esmagadas pelo Império Otomano logo após a independência, aliando-se em maio de 1918 à Alemanha. A resolução soviética da questão nacional provocou o protesto de Rosa Luxemburgo, dirigente socialista alemã: “Enquanto Lênin e seus companheiros esperavam manifestamente, como defensores da liberdade das nações ‘até à separação enquanto Estado’, fazer da Finlândia, da Ucrânia, da Polônia, da Lituânia, dos países bálticos, das populações do Cáucaso, aliados fiéis da Revolução Russa, nós assistimos ao espetáculo inverso: uma após outra, essas ‘nações’ utilizaram a liberdade recentemente oferecida para se aliarem, como inimigas mortais da Revolução Russa, ao imperialismo alemão e para levarem, sob sua proteção, a bandeira da contrarrevolução para a própria Rússia”, criticou Rosa Luxemburgo, para quem “o ilustre ‘direito das nações à autodeterminação’ não passa de oca fraseologia pequeno-burguesa, de disparate…”.
O texto citado não estava destinado à publicação, daí provavelmente a desenvoltura com que sua autora qualificou o nacionalismo ucraniano “(que) na Rússia era completamente diferente do tcheco, do polonês ou do finlandês, nada mais que um simples capricho, uma frivolidade de algumas dúzias de intelectuais pequeno-burgueses, sem raízes na situação econômica, política ou intelectual do país, sem qualquer tradição histórica, pois a Ucrânia nunca constituiu um Estado ou uma nação, não tinha nenhuma cultura nacional, exceto os poemas romântico-reacionários de Chevtchenko”.[vi]
Nem precisa dizer que os ucranianos da época, nem os de hoje, ficariam contentes em ler essas palavras. Para o bolchevismo tratava-se de fazer do movimento nacional, não um fim em si mesmo, mas um elo com a luta socialista da classe operária: a política posta em prática pelo governo soviético (a independência das nacionalidades oprimidas pelo Império Russo) não era, porém, mero recurso tático circunstancial (nocivo, segundo Rosa Luxemburgo, aos interesses da revolução social) mas baseada em razões estratégicas e de princípio.
Em função dele, a Rússia soviética abriu mão do controle sobre a Finlândia, os países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), Polônia, Bielorrússia e Ucrânia, bem como dos distritos turcos de Ardaham e Kars, e do distrito georgiano de Batum. A Rússia imperial era uma aglomeração de nações que assumiu, historicamente, a forma de um Estado absolutista sob a pressão de outras potências. A revolução bolchevique tentou superar essas contradições mediante a criação da URSS, como livre associação de nações, e impulsionando a revolução internacional. Com exceção da Finlândia, da Polônia e dos três países bálticos, os povos do império czarista decidiram ficar com o novo Estado fundado com base na revolução de outubro de 1917.
O Tratado de Brest-Litovsk, assinado entre o governo soviético e as Potências Centrais (Império Alemão, Império Austro-Húngaro, Bulgária e Império Otomano) em 3 de março de 1918, possibilitou a saída imediata da Rússia do primeiro conflito mundial. O governo bolchevique também anulou todos os acordos do Império Russo com seus aliados da Primeira Guerra Mundial. Os termos do Tratado de Brest-Litovsk eram humilhantes para a Rússia soviética. Lênin, defendendo sua assinatura, chamou o tratado de “paz vergonhosa”.
Os territórios concedidos aos alemães continham um terço da população da Rússia e 50% de sua indústria. A maior parte desses territórios se tornou, na prática, em partes do Império Alemão. O IV Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia examinou o Tratado, que era combatido pelos SRs (”esseristas”) de esquerda e pela fração dos “comunistas de esquerda” do bolchevismo, chefiada por Bukhárin e Kalinin, defensores de uma guerra revolucionária contra a Alemanha que se combinaria, segundo esperavam, com a revolução proletária no Ocidente. Os defensores desta política foram derrotados na convenção da fração bolchevique do congresso soviético.
Entretanto, após a revolução alemã iniciada em 9 de novembro de 1918, que derrubou o regime monárquico desse país, o Comitê Executivo Central dos Sovietes declarou anulado o Tratado. Paralelamente, a derrota da Alemanha na guerra, marcada pelo armistício firmado com os países aliados, em 11 de novembro de 1918, permitiu que Finlândia, Estônia, Letônia, Lituânia e Polônia se tornassem Estados independentes. Por outro lado, a Bielorrússia e a Ucrânia envolveram-se na guerra civil russa e terminaram por ser novamente anexadas, ocupação mediante, ao território soviético.
Devido à guerra civil, em finais de 1918 a Rússia soviética encontrava-se rodeada de protetorados de fato governados por líderes locais aliados da Alemanha: a Ucrânia, com Skoropadsky, a Finlândia, com Mannerheim, o Don, com Krasnov; os japoneses ocuparam a fronteira da Manchúria chinesa. Na guerra civil, os grupos “brancos” contrarrevolucionários eram chefiados por generais czaristas e apoiados pelos “republicanos liberais” (os “cadetes”); o Exército Vermelho era dirigido pelo governo bolchevique; havia também milícias anarquistas (o “Exército Insurgente Makhnovista”, também conhecido como “Exército Negro”) na Ucrânia, aliado ou adversário do Exército Vermelho segundo as circunstâncias; os “Exércitos Verdes” camponeses e as tropas estrangeiras de intervenção, enviadas pela França, Reino Unido, Japão, Estados Unidos e mais dez países.[vii]
Aproveitando-se do confronto bélico e político, as nações aliadas beligerantes da Primeira Guerra Mundial resolveram intervir na guerra civil russa a favor do Exército Branco, que estava dividido. Tropas inglesas, holandesas, americanas e japonesas desembarcaram tanto nas regiões ocidentais (Crimeia e Geórgia) como nas orientais (com a ocupação de Vladivostok e da Sibéria Oriental). Seus objetivos eram derrubar o governo bolchevique e instaurar um regime favorável à continuação da Rússia na guerra, com suas alianças precedentes; seu objetivo maior, porém, era evitar a propagação do comunismo na Europa.
Em 1919, já finda a guerra, os brancos, dirigidos por Kolchak, ameaçaram o próprio centro do poder soviético, com Kolchak nos Urais, Denikin no Sul, Iudenitch indo da Estônia para a capital. Entre os brancos e os vermelhos, os governos locais passavam de um campo para outro: negociavam na Ásia central com os ingleses, dividiram a Ucrânia entre os partidários do nacionalista Petliura e os do líder anarquista ucraniano Makhno, enquanto a população, aterrorizada pelas mudanças e batalhas violentas (Kiev foi tomada e retomada 16 vezes pelos diversos campos beligerantes) se escondia na floresta. Kolchak, líder militar “branco”, não ocultava sua vontade de reconstituir o velho Império Russo.
Houve consenso entre os bolcheviques em que o principal erro do Exército Vermelho durante a guerra civil foi a ofensiva sobre Varsóvia, em 1920, na expectativa de que o proletariado polonês se levantasse com a chegada dos “vermelhos”. Nada disso aconteceu, e a Rússia soviética teve que suportar a contraofensiva militar polonesa comandada pelo regime nacionalista e anti-bolchevique de Pilsudski, que chegou a tomar Kiev e parte da Ucrânia para estender as fronteiras étnicas da Polônia.
Apesar disso, a falta de união, coordenação e estratégia comuns entre os diversos líderes “brancos”, foram as principais causas da derrota da reação russa anti-bolchevique, que chegou a contar com forte apoio externo (principalmente da França, Grã-Bretanha e Japão) durante o primeiro ano do conflito. Com o fim do apoio aliado, o Exército Vermelho foi capaz de infligir derrotas ao Exército Branco e as restantes forças antissoviéticas levando ao colapso à contrarrevolução interna. Durante a intervenção externa, a presença de tropas estrangeiras foi usada eficazmente como meio para propaganda patriótica pelos bolcheviques, conquistando inclusive o apoio de parcelas do antigo oficialato imperial; alguns antigos oficiais imperiais, como Tukhachevski, fizeram brilhante carreira no novo exército revolucionário.
A crise internacional somada ao apoio majoritário da população camponesa mais pobre determinou a vitória “vermelha” na guerra civil. Houve, inclusive, motins nas tropas intervencionistas externas, a exemplo dos marujos da frota francesa no Mar Negro, realizados por tropas exaustas e contrárias à continuação do conflito mundial.
Quem era Rakovsky, principal dirigente bolchevique relacionado com Ucrânia? Christian Rakovsky (Krystiu Gheorgiev Stanchev, 1873-1941), revolucionário romeno-búlgaro, era médico, de origem abastada. Desde 1890, militou em organizações políticas da Internacional Socialista, na Romênia, Bulgária, Suíça, França e Alemanha, tendo chegado a ser o principal dirigente do Partido Social Democrata da Romênia. Em 1914, qualificou a Primeira Guerra Mundial de imperialista, e desde setembro de 1915 fez parte da “Esquerda de Zimmerwald”, com Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo.
Encarcerado pelo governo romeno, em agosto de 1916, por seu ativismo contra a guerra, foi libertado por soldados russos em 1° de maio de 1917. Transferindo-se para a Rússia, passou a ser perseguido pelo governo provisório da Revolução de Fevereiro, por opor-se à guerra. Ajudado pelos bolcheviques, conseguiu sair do país, chegando à Suécia, de onde regressou com a Revolução de Outubro. Foi presidente do soviete da Ucrânia (1918) e líder dessa república até 1923, quando foi nomeado embaixador da URSS no Reino Unido, e depois na França (1925). Foi o inspirador-redator do Tratado de Rapallo (entre Alemanha e a URSS, proclamada em 1922). Sua carreira política, que teve um trágico final, não concluiu ai.[viii]
Nem concluiu, com a guerra mundial e a guerra civil, o “drama ucraniano” da revolução bolchevique. O fato marcante do conflito bélico na Ucrânia foi a atuação nela, relativamente independente dos bandos em disputa, do “exército makhnovista”, chefiado por anarquistas. O movimento anarquista ucraniano iniciou-se no vilarejo de Gulai-Pole, sob a liderança de Nestor Makhno (1888-1934), e se alastrou pelas regiões vizinhas de Aleksandrovsk até alcançar Kiev.
Durante a revolução russa, Makhno fora eleito presidente do soviete de Gulai-Pole, berço natal de Makhno, em agosto de 1917, e organizou uma pequena milícia para expropriar os latifúndios e dividi-los entre os camponeses mais pobres. Após o Tratado de Brest-Litovsk, que cedeu Ucrânia ao Império Austro-Húngaro, uma milícia “makhnovista” se formou e executou com sucesso ações de guerrilha contra o exército invasor. Com o armistício de novembro de 1918, as tropas estrangeiras se retiraram. A milícia makhnovista se voltou nesse momento contra o líder nacionalista ucraniano Petliura, reacionário e aliado dos alemães.
Em seguida, Petliura foi derrotado pelo Exército Vermelho; durante o embate entre “vermelhos” e nacionalistas Gulai-Pole ficou sob o domínio dos makhnovistas. Makhno aproveitou a temporária calmaria para convocar congressos de camponeses com a finalidade de implantar um “comunismo libertário”: suas discussões se voltaram principalmente para a defesa da região contra os outros exércitos.
O poder local permaneceu com o grupo de Makhno, que se esforçou para criar uma economia de trocas livres entre o campo (Gulai-Pole, Aleksandrovsk) e a cidade (Kiev, Moscou, Petrogrado). A relativa calmaria terminou em 15 de junho de 1919, quando, após atritos menores entre o exército makhnovista e grupos armados “vermelhos”, o IV Congresso Regional de Gulai-Pole convidou os soldados da base do Exército Vermelho a enviar seus representantes. Isso era um desafio direto ao comando do Exército Vermelho. Em 4 de julho um decreto do governo soviético proibiu o congresso e tornou o movimento makhnovista ilegal: suas tropas atacaram Gulai-Pole e dissolveram as “comunas anarquistas”. Poucos dias depois as forças brancas de Denikin chegaram à região, obrigando ambas facções a se aliarem novamente.
Durante os meses de agosto e setembro, Denikin avançou a passo firme em direção a Moscou, enquanto makhnovistas e comunistas eram obrigados a retroceder, chegando a recuar até as fronteiras ocidentais da Ucrânia. Em setembro de 1919, Makhno, cujas tropas somavam vinte mil soldados, surpreendeu Denikin lançando um ataque vitorioso à aldeia de Peregonovka, cortando as linhas de abastecimento do general branco e semeando pânico e desordem na sua retaguarda; ao final do ano o Exército Vermelho forçou Denikin a recuar até as margens do Mar Negro.
O clímax da “revolução ucraniana” aconteceu nos meses que se seguiram a essa vitória. Durante os meses de outubro e novembro, Makhno esteve no poder nas cidades de Ekaterinoslav e Aleksandrovsk, sua oportunidade de aplicar a concepção anarquista em ambiente urbano. O primeiro ato de Makhno após entrar nessas cidades (depois de esvaziar as prisões) foi anunciar aos cidadãos que a partir de este momento eram livres para organizarem suas vidas conforme preferissem, sem reconhecer qualquer autoridade. Se proclamou a liberdade de imprensa, palavra e reunião; em Ekaterinoslav surgiram imediatamente meia dúzia de jornais que representavam uma ampla gama de tendências políticas. Makhno, porém, dissolveu os “comitês revolucionários” bolcheviques, aconselhando seus membros a se dedicarem a “algum trabalho honesto”.[ix]
Para os camponeses “novos proprietários” da Ucrânia, a política de total liberdade de comércio era a realização de suas aspirações. O conflito com a centralização econômico-militar defendida pelo governo bolchevique foi inevitável e cresceu. Os makhnovistas adotavam o princípio da eleição direta dos comandos militares, que os bolcheviques já tinham rejeitado. Na sua propaganda e proclamações, os anarquistas agrários (os anarquistas das grandes cidades, em geral, não participaram do movimento) chegaram a equiparar os bolcheviques com as antigas classes dominantes.
A classe operária ucraniana não respondeu ao movimento makhnovista com o mesmo entusiasmo dos camponeses. Ao negar-se a abandonar sua independência em relação ao Exército Vermelho, o movimento makhnovista, qualificado pelo bolchevismo de variante do banditismo, foi novamente declarado ilegal em 1920 pelo governo soviético. O Exército Vermelho voltou a combatê-lo; durante os oito meses que se seguiram ambos os lados sofreram pesadas baixas.
Em outubro de 1920, o barão Wrangel, sucessor de Denikin no comando dos brancos do Sul, lançou uma importante ofensiva, partindo da Crimeia rumo ao Norte. Novamente o Exército Vermelho solicitou a ajuda dos makhnovistas, e novamente a frágil aliança se refez: “Para os makhnovistas era apenas um acordo militar, em absoluto político, porque os bolcheviques continuavam sendo seus adversários. Para Moscou, o ponto de vista era outro: a partir do momento em que existia aliança militar havia automaticamente dependência política, reconhecimento oficial da autoridade do poder político soviético na Ucrânia. Essas duas interpretações contrapostas estavam na base de um conflito latente”.[x]
Um conflito que levaria ao fim (não raro trágico) das tentativas de acordo entre ambos setores (chegaram a se realizar entrevistas entre Lênin e Makhno no Kremlin, durante visita deste a Moscou, onde se desiludiu com o “anarquismo urbano” russo, proclamatório e escassamente ativo) e os flertes, que incluíram Trotsky, chefe do Exército Vermelho, sobre a possibilidade de um acordo duradouro entre bolcheviques e anarquistas na Ucrânia, onde os bolcheviques eram escassos.[xi] Um problema que esteve longe de concluir com a guerra civil: o poder soviético e o bolchevismo na Ucrânia se viram sistematicamente comprimidos, nos anos vindouros, entre o nacionalismo urbano e o “anarquismo camponês”, amplamente majoritários, e o governo central bolchevique.
O “poder soviético” ucraniano praticamente não compreendia ucranianos de nascimento ou de nacionalidade; foi inicialmente, como vimos, chefiado por um búlgaro, Christian Rakovsky. Os makhnovistas, em contrapartida, careciam de armamento bom e suficiente, que os bolcheviques lhes forneceram para lutar contra os “brancos”.
Já com a guerra civil praticamente ganha pelos “vermelhos”, a aliança anarco-bolchevique foi novamente desfeita, e se reiniciaram as hostilidades mútuas, muito violentas: “Maknho e seus companheiros fuzilavam apenas os chefes, soldados de altíssima patente dos bolcheviques, libertando todos os soldados rasos”,[xii] o que, evidentemente, não era considerada uma atitude magnânima por parte da liderança do Exército Vermelho, potencial candidata à degola. Em 25 de novembro, líderes do exército makhnovista, reunidos na Crimeia por ocasião da vitória sobre Wrangel, foram presos e executados pela Tcheka. No dia seguinte, por ordem de Trotsky, Gulai-Pole foi atacada e ocupada pelo Exército Vermelho. Os enfrentamentos com os partidários da makhnovitchina se generalizaram, e a Tcheka (polícia política soviética) não vacilou em realizar fuzilamentos, sem qualquer tipo de processo, próprios de guerra civil.[xiii] Makhno conseguiu fugir e se exilar na França, onde continuou defendendo o anarquismo e, sobretudo, seu papel na revolução russa, antes de morrer pobre, ainda jovem e relativamente esquecido.
Qual foi a lógica política desse conflito? As tropas de Nestor Makhno, na Ucrânia, aliavam-se ao Exército Vermelho na luta contra os “brancos”, mas mantinham um enfrentamento com a liderança do Exército Vermelho na questão do comando militar único para a guerra civil e contra a intervenção estrangeira, o que também aconteceu com unidades militares comandadas pelos SRs, os socialistas revolucionários. Segundo Leon Trotsky, “os camponeses haviam aprovado os ‘bolchevistas’, mas tornavam-se cada vez mais hostis aos ‘comunistas’… (Makhno) bloqueava e pilhava os trens destinados às fábricas, às usinas e ao Exército Vermelho… Denominava tudo isto de luta anarquista contra o Estado. Em realidade, era a luta do pequeno proprietário exasperado contra a ditadura proletária… Eram convulsões da pequena burguesia camponesa que queria livrar-se do capital mas, ao mesmo tempo, não aceitava submeter-se à ditadura do proletariado”.[xiv]
A Rússia soviética concluiu a guerra civil economicamente esgotada: “No caso da agricultura, em 1921 as cabeças de gado eram menos de dois terços de seu total, as ovelhas 55%, os porcos 40% e os cavalos, 71% (se comparados a 1913), enquanto a área agricultável fora cortada pela metade, o que levou a uma significativa diminuição da colheita de culturas diversas. Isso para não falar de uma seca extrema na região do baixo Volga (assim como nas planícies dos Urais, Cáucaso, Crimeia e partes da Ucrânia), entre 1920 e 1921, que eliminou cinco milhões de pessoas (movimentos migratórios intensos, com várias cidades perdendo boa quantidade de mão de obra qualificada, também foi outro fenômeno daquele momento; só Petrogrado, o maior centro industrial, perdera 60% de sua população)”.[xv] Em 1921, a situação econômica e as condições de vida da população eram mais que preocupantes.
A indústria soviética representava apenas 20% da produção de 1914. A produção de ferro, 1,6% e a de aço, 2,4%. Os setores do carvão e do petróleo, menos afetados pela guerra, alcançavam 27 e 41% respectivamente. 60% das locomotivas e 63% das vias férreas estavam inutilizadas. A extensão da superfície cultivada havia retrocedido 16% e os intercâmbios entre o campo e a cidade se haviam reduzido ao mínimo. Os trabalhadores mais favorecidos recebiam entre 1.200 e 1.900 calorias diárias das 3.000 necessárias. O proletariado industrial se encontrava desfeito. Em 1919 havia três milhões de operários, um ano depois esse número havia caído pela metade, e em 1921 não passava de 1.250.000. As revoltas internas eram mais vencidas pela fome (que provocou três milhões de mortes no campo em 1920-1921) do que militarmente: entre 20 de março e 12 de abril de 1921, sete mil insurretos de Tambov, incluído um regimento inteiro, se renderam sem disparar um tiro diante de uma divisão de 57 mil homens do Exército Vermelho, chefiada pelo general Tukhachevski.
A célebre revolta de Kronstadt, de 1921, segundo Karl Radek, “tinha sido o eco das sublevações camponesas da Ucrânia e de Tambov”. Por isso, a NEP (Nova Política Econômica soviética, que incluiu medidas liberalizantes), adotada em 1921 pe3lo X Congresso do Partdo Comunista (bolchevique), “coincidiu com a assinatura do acordo comercial anglo-russo e com o esmagamento da rebelião de Kronstadt (com os que) teve uma vinculação interna, estrutural”.[xvi] Nos anos sucessivos, a penúria interna e o isolamento externo determinaram a burocratização (na prática, anulação) do poder soviético, que se identificou com a ascensão política de Stalin e sua fração do Partido Comunista, o stalinismo, que a partir do final da década de 1920 impôs uma política de coletivização forçada do agro e industrialização a toque de caixa.
A “coletivização forçada” do campo impulsionada por Stalin não foi, obviamente, voluntária, nem poderia sê-lo: a indústria era incapaz de fornecer as máquinas que convenceriam o camponês a aderir às explorações coletivas. Por isso, apesar de certo entusiasmo da parte dos camponeses pobres e da juventude operária com a coletivização agrária, não era possível falar em um “Outubro do campo”.
A “coletivização do campo” iniciada em 1929 foi administrativa, burocrática e violenta: os camponeses ucranianos matavam o gado para não o entregar às autoridades soviéticas, as perdas foram enormes, houve aproximadamente dez milhões de deportados; a fome da Ucrânia, em 1932-1933, causou aproximadamente 4,5 milhões de mortes, além de três milhões de vítimas em outras regiões da URSS.[xvii] A brutalidade da coletivização forçada do agro incluiu a “grande fome” na Ucrânia e foi complementar à violência social do Plano Quinquenal da indústria contra os operários fabris.
Na coletivização agrária, no total, foram deportadas cerca de 2,8 milhões de pessoas: 2,4 milhões, dos quais 300 mil ucranianos, no contexto da campanha de deskulakização (1930-1932) – combate aos kulaki, supostos camponeses abastados; 340 mil devido à repressão durante as requisições forçadas de cereais efetuadas pelos organismos estatais. Em muitos casos, as vítimas foram abandonadas em territórios distantes e inóspitos: aproximadamente 500 mil deportados, entre os quais muitas crianças, morreram devido ao frio, à fome e ao trabalho extenuante. O termo Holodomor foi aplicado especificamente aos fatos ocorridos nos territórios com população de etnia ucraniana.
A parte mais pesada da consolidação do regime stalinista foi paga pela Ucrânia, onde as requisições de cereal eram destinadas à exportação, que devia fornecer divisas necessárias para a importação do maquinário industrial, uma das bases para a industrialização acelerada do país. A Ucrânia foi inicialmente obrigada a contribuir com 42% da sua produção cerealífera. Em agosto de 1932, entrou em vigor a lei sobre o “roubo e delapidação da propriedade social” (“lei das cinco espigas”) que declarava punível esse delito com dez anos de campo de trabalho forçado, ou com a pena capital, em face das dificuldades para se atingir a tonelagem planificada pelo Gosplan.
Em vários distritos ucranianos as autoridades soviéticas registraram casos de canibalismo e necrofagia na primavera de 1933. Ucrânia padeceu uma taxa de mortalidade superior às das outras repúblicas (a taxa de mortalidade por mil habitantes, em 1933, foi de 138,2 na Rússia e de 367,7 na Ucrânia), o que provocou um decréscimo de 20% a 25% da população de etnia ucraniana, tendo a natalidade decaído de uma média de 1.153.000 nascimentos (1926-1929) para 782.000, em 1932 e 470.000, em 1933, em toda a Rússia.
O processo era garantido pela atuação dos militares e da polícia política soviética na repressão dos opositores e da população espoliada: os que resistiam eram presos e deportados. Os camponeses ucranianos viam-se obrigados a lidar com os efeitos devastadores da coletivização sobre a produtividade agrícola e as exigências de quotas de produção ampliadas. Tendo em vista que os integrantes das fazendas coletivas não estavam autorizados a receber grãos até completaram as suas impossíveis quotas de produção, a fome tornou-se generalizada.
Algumas fontes afirmam que 25% da população ucraniana morreu de fome: “Um levantamento demográfico atual sugeriu cerca de 2,5 milhões de mortes por inanição na Ucrânia soviética. Um número bem próximo do registrado oficialmente, de 2,4 milhões. Este último número parece baixo, muitas mortes não foram registradas. Outro cálculo, realizado para as autoridades da Ucrânia independente, fornece o número de 3,9 milhões. Parece razoável supor 3,3 milhões de falecimentos por inanição e doenças correlatas na Ucrânia soviética no período 1932-1933”.[xviii] Apenas em dois anos…
Na mesma época, os líderes soviéticos acusaram a liderança política e cultural ucraniana de “desvios nacionalistas”, quando as políticas de nacionalidade precedentes foram revertidas no início dos anos 1930. Duas ondas de expurgos (1929-1934 e 1936-1938) resultaram na eliminação da elite cultural da Ucrânia. A “limpeza” de opositores políticos chegou ao Partido e à Internacional Comunista: direções inteiras de diversos partidos comunistas foram executadas, afetando duramente o comunismo ucraniano. Relatou Leopold Trepper (futuro chefe da espionagem soviética no Ocidente durante a Segunda Guerra Mundial) que, quando aluno da Universidade para estrangeiros em Moscou, pereceram 90% dos militantes comunistas estrangeiros residentes na cidade.
Stalin assinava listas de condenações que continham, às vezes, milhares de nomes. Foram “depurados” os partidos comunistas da Ucrânia e Bielorrússiame as Juventudes Comunistas (Komsomol). As cifras ucranianas afetaram e fizeram parte dos problemas demográficos da URSS como um todo. A “contabilidade criativa” foi usada pelos planejadores soviéticos para maquilagens demográficas: o número efetivo de mortes entre 1927 e 1940 foi, para toda a URSS, de estimadas 62 milhões, não os 40,7 milhões (21,3 milhões a menos) declarados; o crescimento total da população viu-se superestimado, em virtude disso, em 4,6 milhões para o período indicado.[xix]
Os cálculos do historiador Stanislav Kulchytsky, com base em fontes dos arquivos soviéticos, indicam um número de entre 3 a 3,5 milhões de mortes na Ucrânia, no primeiro quinquênio dos anos 1930. Calcula-se que 1,3 a 1,5 milhões tenham morrido no Cazaquistão (exterminando entre 33% e 38% dos cazaques), além de centenas de milhares no Cáucaso do Norte e nas regiões dos rios Don e Volga, onde a área mais duramente atingida correspondia ao território da República Socialista Soviética Autónoma Alemã do Volga, totalizando entre cinco e seis milhões de vítimas da fome entre os anos de 1931 e 1933. Durante o expurgo de 1936/1937 quase 100% dos dirigentes políticos da Ucrânia foi substituído por pessoas desconhecidas da população local, quase nenhuma delas ucraniana. Como surpreender-se se, durante a Segunda Guerra Mundial, chegasse a existir uma importante guerrilha antinazista ucraniana de base nacionalista?
Em maio de 1940, no último texto publicado de Trotsky, exilado, A Guerra Imperialista e a Revolução Proletária Mundial, declaração da IV Internacional diante da eclosão da Segunda Guerra Mundial, lia-se:[xx] “A aliança de Stalin com Hitler, que levantou o pano de fundo sobre a guerra mundial, levou diretamente à escravização do povo polonês. Foi uma consequência da debilidade da URSS e do pânico do Kremlin frente à Alemanha. O único responsável por essa debilidade é o mesmo Kremlin, por sua política interna, que abriu um abismo entre a casta governante e o povo; por sua política exterior, que sacrificou os interesses da revolução mundial aos da camarilha stalinista. A conquista da Polônia oriental, presente da aliança com Hitler e garantia contra Hitler, foi acompanhada da nacionalização da propriedade semifeudal e capitalista na Ucrânia Ocidental e na Rússia Branca Ocidental. Sem isto o Kremlin não poderia haver incorporado à URSS ao território ocupado. A Revolução de Outubro, estrangulada e profanada, deu mostras de estar viva ainda”.
Houve um importante apoio inicial de setores da população ucraniana à invasão nazista de 1941, depois da ruptura do “Pacto Hitler Stalin” pela Alemanha nazista. No início da invasão, em junho de 1941, as tropas alemãs foram recebidas como libertadoras na Ucrânia, até os alemães começarem a queimar as aldeias, expulsar as mulheres e crianças e executar os homens.[xxi] Quando ficou claro que os planos de Hitler eram “naturalizar” (sic) a Rússia e a Ucrânia, transformá-las num vasto celeiro baseado no trabalho escravo, a mobilização patriótica russa foi imensa. Mas ela pouco teria conseguido sem “o transplante da indústria na segunda metade de 1941 e no começo de 1942, e a sua reconstrução no Leste (que) deve figurar entre as mais estupendas realizações de um trabalho organizado pela União Soviética durante a última guerra.
O crescimento rápido da produção bélica e sua reorganização sobre novas bases, dependia da urgente transferência da indústria pesada das zonas ocidentais e centrais da Rússia europeia e da Ucrânia para a retaguarda longínqua, fora do alcance do exército alemão e da aviação”.[xxii] Tal feito teria sido impossível num país onde existisse propriedade privada da grande indústria.
Em outubro de 1941, quando os objetivos operacionais das tropas nazistas na Ucrânia e na região do Báltico foram alcançados (apenas os cercos de Leningrado e Sebastopol ainda continuavam), a grande ofensiva alemã contra Moscou foi renovada. Após dois meses de intensos combates, o exército alemão quase atingiu os subúrbios da capital soviética, onde as tropas alemãs, esgotadas, foram forçadas a suspender sua ofensiva. Grandes territórios haviam sido conquistados pelas forças do Eixo, mas sua campanha não tinha atingido seus objetivos principais: duas cidades importantes permaneciam nas mãos da URSS, a capacidade de resistência dos soviéticos não tinha sido eliminada; a União Soviética mantinha uma parte considerável do seu potencial militar, embora pagando um preço humano enorme.
As perdas totais civis durante a guerra e a ocupação alemã na Ucrânia são estimadas em entre cinco e oito milhões de pessoas, inclusive mais de meio milhão de judeus. Dos onze milhões de soldados soviéticos mortos em batalha, cerca de um quarto eram ucranianos étnicos. Com o término da Segunda Guerra Mundial e a derrota do Eixo, as fronteiras da Ucrânia soviética foram ampliadas na direção oeste, unindo a maior parte dos ucranianos sob uma única entidade política. A maioria da população não ucraniana dos territórios anexados foi deportada. Nas “terras de sangue” da Segunda Guerra Mundial, anteriormente compostas por territórios e países multiétnicos e multinacionais, incluídos os países bálticos, Ucrânia e Polônia, voltou-se a fronteiras delimitadoras de unidades políticas que coincidiam com unidades étnicas, com expulsão dos ucranianos que habitavam Polônia desde há séculos, o mesmo acontecendo com os poloneses da Ucrânia.
Ilya Ehrenbug e Vassilij Grossman, intelectuais de destaque do regime soviético, viram, primeiro, censurado, e depois não publicado, seu trabalho de grande fôlego chamado Livro Negro sobre as atrocidades praticadas pelas tropas nazistas contra os judeus durante a invasão e ocupação da URSS, em especial na Ucrânia. Os judeus húngaros e poloneses prisioneiros na URSS (geralmente na Sibéria ou na Ásia Central) com seus compatriotas, para os quais o “Comitê Judeu” soviético, assim como personalidades internacionais, pediram a liberdade, continuaram presos até serem repatriados nos anos seguintes, em virtude de acordos realizados por seus países com a URSS.[xxiii]
Nos seus países de origem os aguardava a hostilidade, oficial e até popular, a mesma que recebeu os sobreviventes do Holocausto na Ucrânia e na Polônia, onde houve verdadeiros pogroms no imediato pós-guerra; só uma parte menor de seus bens, e nenhuma de suas propriedades, lhes foi restituída. O historiador Timothy Snyder estimou em mais de dez milhões o número de ucranianos, judeus incluídos, mortos em decorrência de ações políticas (Stalin) ou de invasão bélica (Hitler) entre 1933 e 1945. Após a guerra, a Ucrânia tornou-se membro independente das Nações Unidas.
No segundo pós-guerra, a “Campanha das Terras Virgens”, a partir de 1954, levou à prática um programa de reassentamento massivo de agricultores da União Soviética que trouxe mais de 300.000 pessoas para a Ásia Central, principalmente da Ucrânia, que foram assentadas ao norte do Cazaquistão e da região de Altai, o que levou a uma grande mudança cultural e étnica na região. As reformas econômicas de Kruschev se orientaram no sentido da descentralizarão econômica, com a criação dos sovnarkhozes (conselhos econômicos regionais) em parcial substituição do Gosplan (Conselho Econômico do Estado): em 1957, foram definidos 105 sovnarkhozes (70 para a Rússia, 11 para a Ucrânia, 9 para o Cazaquistão).[xxiv]
Resta o fato da URSS ter conseguido uma grande industrialização e índices de crescimento da produção num período assolado pela Segunda Guerra Mundial e suas consequências, na qual os povos soviéticos, especialmente ucranianos e russos, pagaram o pior preço em sacrifício. Apesar disso, até os anos de 1960, a União Soviética conseguiu manter-se num relativo isolamento em concorrência com o mercado capitalista global. As formas de integração havidas no COMECON, pacto econômico do Leste europeu e da URSS, se ampliaram para parcerias com a Europa Ocidental.
A partir dos anos de 1960, surgiram joint ventures, no período brezhnevista, como a famosa cidade automobilística rebatizada de Stavropol para Togliatti, onde a Fiat e o estado soviético começaram a fabricar veículos desde 1966. A propriedade estatizada e a planificação centralizada conseguira expandir a URSS numa taxa de crescimento excepcional desde os anos de 1930. Isso ocorreu por causa do preço social que foi pago por camponeses coletivizados à força, por nacionalidades oprimidas, como os ucranianos, que sofreram a “Grande Fome” e por um regime opressivo e prisional que chegou a ter nos campos de trabalhos forçados um setor significativo da produção industrial.
O crescimento industrial de pós-guerra teve consequências de todo tipo. Um exemplo trágico foi o acontecido em 26 abril de 1986, quando ocorreu na Ucrânia o acidente nuclear de Chernobyl, a 130 quilômetros ao Norte de Kiev, considerado o mais grave acidente nuclear da história, que afetou fortemente 600 mil habitantes. Até 1993, a causa de pelo menos sete mil mortes foi atribuída às elevadas doses de radiação recebida pela população vizinha à catástrofe nuclear, além disso 135 mil pessoas foram evacuadas. O reator foi revestido com uma camada de concreto de vários metros de espessura, formando uma estrutura chamada de sarcófago.
A nuvem radioativa de Chernobyl afetou a Ucrânia, a Bielorrússia, a Rússia, a Polônia e partes da Suécia e da Finlândia. Nos anos seguintes, pesquisadores estrangeiros na área registraram um aumento de casos de câncer e outras doenças associadas à radioatividade. Em inícios dos anos 1990, ainda durante a “perestroika” de Mikhail Gorbachev, as forças armadas, ainda “soviéticas”, exigiram um acordo entre, ao menos, as principais repúblicas, Rússia, Ucrânia, Belarus, e em torno desta unidade a incorporação das repúblicas asiáticas. Em 16 de julho de 1990, no meio da tormenta política que agitava os estertores da URSS, o Soviete Supremo da Ucrânia proclamou a soberania da república.
Pouco antes disso, foram os mineiros ucranianos, o mesmo setor de um proletariado que, nas regiões periféricas geladas do país, havia sido o elemento central da mobilização social e sindical, os que protagonizaram as grandes greves de julho de 1989, que começaram exigindo a renúncia de Gorbachev e terminaram por resistir à tentativa de golpe de agosto de 1991, determinante do fim da URSS. Em 24 de agosto de 1991 foi aprovada a Declaração de Independência da Ucrânia e foi convocado um plebiscito para ratificá-la, que ocorreu em dezembro de 1991, no qual 90% dos votos foram favoráveis à sua ratificação; no mesmo dia, Leonid Kravchuk (ex-primeiro-secretário do Partido Comunista da Ucrânia) foi eleito presidente da nova entidade nacional, com 60% dos votos.
Em 8 de dezembro de 1991, os presidentes da Ucrânia, da Federação Russa e da Bielorrússia declararam o fim da URSS e estabeleceram a Comunidade de Estados Independentes (CEI). As grandes potências mantiveram, até o golpe de Estado de agosto de 1991, uma política de conservação da unidade da URSS, mas no marco de um novo Tratado da União. Um informe do FMI sobre a URSS, de inícios de 1991, defendia as propostas de centralização em matéria monetária – o contrário do que previa o Tratado cuja assinatura foi suspensa pelo golpe. Em agosto desse ano aconteceu o colapso da URSS e a transição, para a formação da CEI, da Rússia e dos demais 14 países em que a URSS se dividiu: Ucrânia, Bielorrússia, Moldova, Lituânia, Letônia, Estônia, Geórgia, Armênia, Azerbaijão, Cazaquistão, Turcomenistão, Uzbequistão, Quirguistão e Tadjiquistão (para não mencionar enclaves anômalos como a Transnístria). No início de 1992, o governo ucraniano anunciou a liberação de preços, criou uma nova moeda e criou incentivos para o investimento estrangeiro.
A independência das antigas repúblicas soviéticas foi apresentada como uma revanche contra a centralização compulsória imposta por Lênin e o bolchevismo, na revolução de 1917 e na guerra civil ulterior.[xxv] Sem entrar no detalhe desse problema histórico, cabe apontar que a Revolução de Outubro concedeu a independência às nacionalidades oprimidas pelo Império czarista, e que Lênin se distinguiu, neste ponto, por defendê-la contra os que sustentavam ser essa uma concessão inadmissível ao nacionalismo.
Trotsky, exilado do stalinismo, declarou que a opressão nacional grã-russa era um fator de desagregação da URSS, e reivindicou novamente a independência das nacionalidades da URSS, em especial da Ucrânia. A questão, portanto, não foi “descoberta” por Hélène Carrère d’Encausse, que se tornou célebre na década de 1970 com seu livro L’Empire Éclaté, acerca da questão nacional da URSS.[xxvi] O capitalismo se estabeleceu na Rússia e Ucrânia em uma forma particularmente violenta de disputa entre máfias oligárquicas derivadas de quadros ex comunistas com antigas posições no aparelho de Estado.
A usina de Chernobyl, na Ucrânia pós-soviética, continuou em atividade, a despeito dos protestos internacionais, devido à grave crise de energia do país, às portas do inverno sem combustível suficiente para o aquecimento, existindo ao menos cinquenta outras usinas semelhantes à Chernobyl em funcionamento nos países da CEI. Um mês após o golpe e o “massacre do parlamento”, os mineiros e demais trabalhadores de Vorkuta e de Nadim ameaçam com greves gerais contra o governo de Boris Iéltsin, principal agente da restauração capitalista na Rússia. Em 5 de maio de 1992, a Crimeia ucraniana declarou a independência, mas cedeu às pressões de Kiev e cancelou a declaração em troca da concessão de autonomia econômica. Em junho de 1992, a Rússia cancelou o decreto de 1954, que cedeu a Crimeia para a Ucrânia e exigiu a sua devolução, sem ser atendida.
Em 1993, na Ucrânia, em julho, os mineiros paralisaram o país. Previamente, em junho, a Rada Suprema ucraniana decidiu que pertenceria à Ucrânia todo o arsenal nuclear da extinta URSS estacionado naquele país e, desse modo, a Ucrânia tornou-se a terceira potência nuclear do mundo. Nessa época de crise econômica, Leonid Kutchma renunciou ao cargo de primeiro-ministro. Em setembro de 1993, a Ucrânia cedeu à Rússia parte da Frota do Mar Negro correspondente à Ucrânia, como pagamento de dívidas pelo fornecimento de petróleo e gás. Além disso, foi firmado um convênio de cooperação para desmontar mísseis intercontinentais que a Ucrânia queria manter como garantia contra possíveis projetos expansionistas russos. A oposição política ucraniana denunciou o acordo em Kiev.
Em junho e julho de 1994 ocorreram as primeiras eleições presidenciais ucranianas na era pós-soviética: o ex-primeiro-ministro Leonid Kutchma derrotou o então presidente Leonid Kravchuk com 52 % dos votos e confirmou a sua intenção de reforçar os laços com a Rússia e ingressar na união econômica da CEI. Em 1997, Pavlo Lazarenko renunciou ao cargo de primeiro ministro, em meio a denúncias de corrupção, e foi substituído por Valery Pustovoytenko.
Nas eleições parlamentares de março de 1998, o Partido Comunista da Ucrânia ganhou 113 assentos (24,7%), estabelecendo-se, de fato, uma maioria parlamentar para a esquerda e centro-esquerda. Depois de uma década de relativa estabilidade interna e externa, em janeiro de 2006 Rússia cortou o fornecimento de gás à Ucrânia, que se recusava a aceitar um aumento de preço de 460%. Para as autoridades ucranianas, o aumento do vital insumo seria uma retaliação por tentativas para se tornar mais independente de Moscou e desenvolver laços mais estreitos com a Europa. Nesswe clima político, em março de 2006 foram realizadas eleições parlamentares, nas quais o Partido das Regiões, liderado por Víktor Yanukóvytch conquistou 186 assentos de um total de 450. Em segundo lugar ficou o “Bloco Timoshenko”, com 129 assentos, enquanto Nossa Ucrânia, liderado por Yushchenko, obteve 81 assentos. Em agosto, Víktor Yanukóvytch foi nomeado primeiro ministro, à frente de uma coalizão pró-Rússia.
Em 2013, já presidente, Yanukovych rejeitou um acordo negociado com a União Europeia e preferiu uma reaproximação política e econômica com a Rússia, contra pressões políticas que favoreciam melhores relações com o Ocidente capitalista (a União Europeia) em detrimento de Moscou. O resultado foi uma série de protestos de rua em Kiev e outras partes do país, no que ficou conhecido como “Euromaidan”, e a “revolução laranja” de 2014. A então subsecretária de Estado para Assuntos Europeus e Eurasianos dos EUA, Victoria Nuland,[xxvii] apoiou ativa e pessoalmente os atos de grupos neonazistas da Ucrânia, anunciando que a “revolução” era apenas o primeiro passo de uma escalada levaria os aliados dos EUA na região até as portas de Moscou.
Com a grave crise política, e a intervenção externa na Ucrânia, se estendendo, o Parlamento votou por remover Yanukovych do poder. Em resposta, o governo russo ordenou uma invasão militar da Crimeia e anexou a região ao seu território, anulando a concessão de 1954.
As nações ocidentais, encabeçadas pelas potências imperialistas, não reconheceram essa anexação e impuseram graves sanções econômicas contra a Rússia. Em boa parte das regiões Leste e no Sul da Ucrânia houve grandes protestos pró-Rússia e em favor do presidente Yanukovych. A crise escalou ainda mais quando duas regiões no Leste declararam independência, se proclamando “República Popular de Donetsk” e “República Popular de Lugansk”. O governo ucraniano respondeu não reconhecendo as regiões separatistas e enviando tropas que iniciaram uma verdadeira guerra na área de Donbass.
A Ucrânia, ainda sofrendo com o rescaldo dos protestos e em crise econômica, não conseguiu sufocar a rebelião, que chegou a matar mais de nove mil pessoas até 2016. A partir de 2016, o conflito em Donbass desacelerou e uma série de cessar-fogo foram firmados. Os Acordos de Minsk estabeleceram uma solução para o conflito baseada na federalização da Ucrânia; os acordos, no entanto, não foram respeitados pelo governo ucraniano. Com o conflito se alastrando e internacionalizando cada vez mais, com a Ucrânia se aproximando da OTAN, em 2021, a Rússia começou a mobilizar tropas na fronteira ucraniana, iniciando uma enorme crise na região, que teve um desfecho bélico.
Em fevereiro de 2022, finalmente, as forças armadas russas iniciaram uma invasão em larga escala da Ucrânia. A guerra resultante, que se mantém até o presente, não é uma “guerra local”, mas a expressão da passagem da crise mundial do terreno econômico e político para o bélico, com repercussões, inclusive militares, no mundo inteiro, das quais nenhum país pode fugir, e nenhuma força política lavar as mãos, declarando-se neutra ou defendendo uma posição “equidistante”.
Embora Rússia apareça como “agressora”, o clima político da guerra foi cuidadosamente preparado pela grande mídia ocidental, pressionando seus governos, ao ponto de um pesquisador australiano concluir, na véspera do 24 de fevereiro de 2022, que “o roteiro para a invasão já parece ter sido escrito, e não necessariamente pela caneta do líder russo. As peças estão todas no lugar: a suposição da invasão, a prometida implementação de sanções e limites na obtenção de financiamento, além de uma forte condenação”. Pouco ou nada foi dito na grande mídia ocidental sobre como a aliança da OTAN se expandiu, desde a dissolução e colapso da União Soviética em 1991, cada vez mais ameaçadoramente para a Federação Russa, o principal Estado sucessor da antiga federação de nações que compunham a URSS.
Retomemos a sequência dos fatos. Os mesmos EUA que impulsionaram a extensão da OTAN até às fronteiras da Rússia, visando, através de pressão e chantagem militar, a penetração de seus capitais por todo o antigo território soviético, anunciaram pouco antes disso uma forte retomada do seu crescimento econômico simultaneamente ao maior orçamento militar de sua história, dois fatos estreitamente vinculados. A retaliação russa à “revolução laranja” foi a retomada da Crimeia, território cedido pela URSS à Ucrânia, como vimos, em 1954. Depois da anexação da península, forças separatistas no Leste da Ucrânia, em regiões de maioria russa, fortaleceram seu pleito independentista.
Ante a possibilidade de redução do território ou mesmo de autonomia dessas regiões, o novo governo ucraniano, encabeçado por Volodymir Zelensky, recuperou o projeto de seu país para compor a OTAN. Muito antes disso, treze países, a República Checa, Polónia, Hungria (1999), Estónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia, Roménia, Bulgária, Eslovénia (2004), Albânia, Croácia (2009) e Montenegro (2017) aderiram à OTAN. O cerco pelo Ocidente estava quase concluído, agora era hora do cerco pelo Sul, com a Ucrânia, a Geórgia, a Moldávia, e o Azerbaijão apresentando sua candidatura. A operação estava marcando passo no Leste, com os países da Ásia Central apoiando sua poderosa vizinha, a Rússia, também atendendo aos interesses de seu outro gigante vizinho, a China.
Washington acusou Moscou, mas não parou de deslocar porta-aviões e tropas para a fronteira russa. A adesão da Ucrânia à OTAN trazia imediatamente para a agenda geopolítica a implantação de ogivas nucleares em seu território: um míssil nuclear poderia cair sobre Moscou em um período de poucos minutos, uma situação em que uma arma nuclear carregada estaria sendo apontada contra o coração da Rússia. Esta máquina de guerra é o que ameaça o futuro da humanidade na Europa e na Ásia. Diante do ataque russo, The Economist, histórico porta-voz britânico do grande capital, sugeriu que a OTAN aproveitasse a circunstância para ocupar toda a Europa do Leste, independentemente dos limites fixados pelos acordos precedentes.
A responsabilidade pela invasão militar da Ucrânia foi, portanto, da OTAN, que se espalhou do Atlântico Norte para a Ásia Central e militarizou todos os estados ao redor da Rússia: Segundo John Mearsheimer, da Universidade de Chicago, “os Estados Unidos e os seus aliados europeus partilham a maior parte da responsabilidade pela crise. A raiz principal do problema é o alargamento da OTAN, o elemento central de uma estratégia mais ampla para tirar a Ucrânia da órbita da Rússia e integrá-la ao Ocidente. Ao mesmo tempo, a expansão da UE para Leste e o apoio do Ocidente à o movimento pró-democracia na Ucrânia – começando com a Revolução Laranja em 2004 – também foram elementos críticos.
Desde meados da década de 1990, os líderes russos opuseram-se veementemente ao alargamento da OTAN e, nos últimos anos, deixaram claro que não aceitariam que seu vizinho estrategicamente importante se transformasse em um país ocidental bastião. Para Putin, a derrubada ilegal do democraticamente eleito presidente da Ucrânia e pró-Rússia – um fato que ele justamente rotulou de ‘golpe’ – foi a gota d’água. Ele respondeu tomando a Crimeia, uma península que temia que acolhesse uma base naval da NATO, e trabalhando para desestabilizar a Ucrânia até que esta abandonasse os seus esforços para se juntar ao Ocidente”.[xxviii]
Os dois meses de discussões desde o início da mobilização de tropas dentro da Rússia, depois para a Bielorrússia e os mares Báltico, Norte e Negro, terminaram em um impasse completo. Os EUA e a União Europeia se recusaram a assinar um compromisso de não incorporar a Ucrânia à OTAN, desmilitarizar os estados que fazem fronteira com a Rússia e reativar o tratado que contemplava a reunificação da Ucrânia, na forma de uma república federal. Eclodiu uma guerra, como consequência, em primeiro lugar, de uma política de extensão da OTAN a todo o mundo. O mesmo procedimento acontece no Extremo Oriente, onde EUA, Austrália, Nova Zelândia e Japão estabeleceram um acordo político-militar às portas da China. A escalada é mundial: a OTAN ocupou o Afeganistão, corredor entre o Oriente Médio e o Extremo Oriente.
Também participou no bombardeio e desmembramento da Líbia e armou as formações “islâmicas” para derrubar o governo da Síria. Os governos da OTAN implementaram sanções econômicas, incluindo a suspensão, pelo governo alemão, da certificação do gasoduto NordStream2, que deveria completar o fornecimento de gás russo à própria Alemanha.
No contexto mais amplo, internacional, o conflito ucraniano é a expressão profunda da crise da política imperialista (não só dos EUA), que foi antecipada pela retirada sem glória do Afeganistão, o desastre norte-americano na Líbia (“uma merda”, nas palavras textuais de Barack Obama) e, sobretudo, no Iraque. Reduzi-lo a um episódio de uma reformulação geopolítica internacional, em favor de um potencial bloco China-Rússia, contra os dominantes ocidentais tradicionais, seria um enfoque unilateral, incapaz de considerar o contexto de crise capitalista mundial e o conjunto de fatores políticos internacionais, e até as dimensões históricas implicadas no conflito.
Por trás da movimentação agressiva impulsionada pelos EUA, filtraram-se as condições precárias da retomada econômica norte-americana, que mal ocultavam as condições de crise do maior capitalismo do planeta. Na sua retomada de atitudes semelhantes às da “guerra fria”, os EUA aproveitaram as contradições das políticas dos governos dos países antigamente subtraídos ao domínio imperialista pelas revoluções socialistas. China e Rússia avançaram no caminho da restauração capitalista após os acontecimentos de 1989-1991. Presos às contradições do processo de restauração, estes países enfrentaram uma escalada da pressão militar, econômica e política imperialista para impor-lhes, por todos os meios, subjugação total, fragmentação, e lhes impor um novo tipo de colonização, mascarado como uma “mudança de regime democrático”. Esses regimes não são capazes nem estão dispostos a derrotar a ofensiva imperialista, buscam um compromisso improvável e uma acomodação impossível com o agressor, em nome da “cooperação internacional”, a “multipolaridade”, um “acordo ganha-ganha”, todos avatares das velhas fórmulas fracassadas de “coexistência pacífica” e do “socialismo em um único país”.
Não estamos diante do retorno da “Guerra Fria”, reciclando seus velhos protagonistas e opondo capitalismo e “socialismo real” (ou mesmo imaginário). Comparar a “expansão étnica” da Rússia impulsionada por Putin com a expansão, também “étnica”, hitleriana em direção dos Sudetos tchecos e da Áustria em 1938, como fez a grande mídia, significa simplesmente esquecer que esta última foi explicitamente anuída pelas potências ocidentais na Conferência de Munique, do mesmo ano. A semelhança é, portanto, apenas formal.
A resistência russa à OTAN lança uma luz sobre a potencial desintegração da Rússia, encoberta pela sua “expansão”. A dissolução da URSS representou um passo em direção da desintegração nacional. A integração russa ao mercado mundial resultou em um retrocesso de suas forças produtivas e de sua economia. Putin enfrentou uma guerra internacional como defensor dos interesses da oligarquia capitalista russa, depurada de alguns elementos mafiosos e beneficiária desse processo, contra o capital mundial. O regime político na Rússia é uma expressão da tendência dissolvente existente na Rússia capitalista: uma sorte de bonapartismo buscando submeter as contradições sociais e nacionais da Federação Russa no espartilho da repressão política e da militarização.
As Forças Armadas da Rússia podem ocupar a Ucrânia, mas o sistema russo, muito enfraquecido, não poderia resistir à pressão do imperialismo capitalista mundial. A fratura do bonapartismo de Putin reporia a alternativa da dissolução nacional. Embora realizada em resposta à expansão do bloco imperialista chefiado pelos EUA, a possível anexação da Ucrânia, direta ou encoberta, para integrar o espaço da Comunidade de Nações Independentes comandada pela Rússia, foi e é uma operação imperialista do território vizinho, que multiplicaria as contradições dos anexionistas.
Ignorar a dimensão histórica da crise, considerando-a “anacrônica”, em nome da “geopolítica internacional”, é ignorar que Putin se referiu de modo bem explicito a ela na véspera do ataque à Ucrânia, em entrevistas com jornalistas ocidentais, que haviam adotado um tom agressivo em defesa da “soberania nacional” da Ucrânia: “A Ucrânia moderna foi inteiramente criada pela Rússia ou, para ser mais preciso, pelos bolcheviques, pela Rússia comunista. Esse processo começou praticamente logo após a revolução de 1917, e Lênin e seus associados o fizeram de uma maneira extremamente dura para a Rússia – separando, cortando o que historicamente era terra russa. Ninguém perguntou aos milhões de pessoas que vivem lá o que eles pensavam”.
Toda a discussão de Putin sobre a história, desde o estabelecimento da URSS em 1922 até seu desmoronamento em 1991, foi uma argumentação para um objetivo: a refundação da Federação Russa com base nas fronteiras da Rússia czarista. Tendo superado o trauma do colapso nacional, as classes dominantes russas voltaram seu olhar para as antigas fronteiras da URSS, cujas fronteiras correspondiam, mais ou menos, às do território do império do czar. O território geral da Rússia czarista e o da União Soviética eram, aproximadamente, semelhantes. Putin anseia restabelecer as fronteiras não da União Soviética, mas as da Rússia histórica.
Falar sobre o desejo de Putin de restabelecer a União Soviética é uma mentira, já que Putin é explicitamente hostil à URSS e a vê, de acordo com os líderes da classe dominante da Rússia, como um desvio transitório do curso da história russa. Putin aspira à uma reedição da Rússia czarista sem czar: inventou uma narrativa histórica que se limitou às relações entre a Rússia e a Ucrânia, que o establishment russo eventualmente estenderá a outros antigos territórios imperiais.
O epicentro da crise internacional provocada pela guerra se situou no próprio sistema imperialista mundial, chefiado pelos EUA. A inadequação crescente da OTAN às relações internacionais abaladas tornava-se evidente à medida que suas operações militares culminavam em repetidos fracassos, revelando uma contradição histórica mais aguda. A dissolução da União Soviética e a abertura da China ao mercado mundial pareciam anunciar uma expansão excepcional do capitalismo, mas as sucessivas crises mundiais mostraram suas limitações intransponíveis: a contradição entre o monopólio financeiro e militar dos EUA, por um lado, e seu recuo sistemático no mercado mundial, pelo outro.
Na OTAN, o imperialismo norte-americano tinha confrontos mais frequentes com seus aliados, suas operações internacionais, como no Iraque, não mais conseguiam se apoiar em “coalizões internacionais”. Na véspera da guerra ucraniana, a Rússia negociou com quatro ou cinco governos separadamente: os EUA, a Alemanha, a França e até a Turquia e a própria Ucrânia. A guerra ucraniana acentuou, primeiro em baixo do pano e depois em cima dele, a desintegração do aparelho político-militar ocidental.
Num plano mais geral, as sanções econômicas da OTAN contra a Rússia foram o reverso da badalada “globalização” capitalista. A chamada “globalização” propiciou, nos anos 1990, a recuperação temporária da taxa de lucro, até o fim do século passado. A partir de 1997 essa taxa começou a cair caracterizando uma situação de “longa depressão”. O crescimento do PIB diminuiu em todo o lado, e em 2020 registou-se a recessão mais grave desde o fim da Segunda Guerra Mundial, como resultado da pandemia. A desaceleração econômica tem sido mais pronunciada nos principais países avançados e menos acentuada em alguns países ditos “emergentes”. Este fenómeno pode ser observado comparando os países do G7 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá) com os BRICS (China, Índia, Brasil, Rússia e África do Sul), tanto no período anterior à crise do hipotecária, entre 1980 e 2007, como no período posterior, entre 2007 e 2023.
Medidas econômicas “de exceção”, em função da guerra, foram adotadas por muitos países. A guerra ensejou uma crise do comércio e das finanças internacionais, afetadas pelo golpe que as cadeias produtivas internacionais receberam no quadro da pandemia. O governo Putin desencadeou operações militares sob a pressão de um impasse estratégico, da mesma forma que a OTAN buscou esse resultado e insistiu em provocá-lo, como uma saída para o seu. Rússia está sob o domínio de uma oligarquia e de uma burocracia sem outro título além da sua recente ascensão e expropriação da propriedade estatal, um capitalismo rastaquera que o capital internacional quer deslocar para seu próprio benefício.
O motivo da guerra não é a independência da Ucrânia; a atual é uma guerra pela reconfiguração política internacional de um mundo em crise. O objetivo da última reunião do G-7 foi preparar a contraofensiva da Ucrânia contra o exército russo em toda a faixa oriental. A contraofensiva incluiu ataques ao território russo. Porta-vozes dos EUA e da Alemanha justificaram isso pela necessidade de atingir as rotas de abastecimento militar do exército de ocupação russo. Os drones que atacaram o Kremlin ou a Crimeia, ou os mísseis contra cidades russas, porém, vão muito além desse propósito.
O “bloco ocidental” reafirmou, nas suas reuniões internacionais, sua intenção de “apoiar Ucrânia em tudo que for necessário”, ensejando um cenário europeu (potencialmente mundial), após mais de um ano e meio hostilidades, para a uma guerra. A ajuda militar e econômica da OTAN à Ucrânia terá de aumentar, mesmo que os Estados Unidos entrem numa espécie de calote, determinado pela sua volumosa dívida pública. Por trás do cerco à Rússia, o que se desenha é uma tentativa de pressão extrema do bloco imperialista ocidental contra a China, como parte da disputa pelo mercado mundial, em que se verifica uma cada vez mais importante participação chinesa.
A guerra da OTAN na Ucrânia vem, por isso, acompanhada de forte pressão sobre a China. Faz parte da guerra econômica promovida pelos EUA de Biden e pela implantação da OTAN na Ásia, baseada nos acordos entre Estados Unidos, Japão e Austrália. Desenvolve-se assim uma escalada bélica internacional. Considerada em todas suas dimensões, verifica-se que crise do capitalismo ameaça com uma tragédia humanitária sem precedentes. A importância da disputa internacional explica o cenário cada vez mais amplo dos conflitos. A presença, nesta crise, de uma estratégia internacionalista dos trabalhadores, em defesa de uma paz baseada na derrota das provocações militares imperialistas e dos atropelos aos povos oprimidos, da perspectiva de uma livre associação dos povos e nações, depende de uma política anti-imperialista e anticapitalista, baseada na classe trabalhadora e independente das burocracias e das oligarquias neocapitalistas, unificada no mundo todo. Essa é a grande tarefa política pendente.
Notas
[i] Francisco disse, dirigindo-se a jovens russos: “Nunca esqueçam a sua herança. São os filhos da grande Rússia: a grande Rússia dos santos, dos reis, da grande Rússia de Pedro I, de Catarina II, esse grande império culto, de grande cultura e de grande humanidade. Nunca renunciem a esse legado. Vocês são herdeiros da grande Mãe Rússia, sigam em frente. E obrigado, obrigado pelo seu jeito de ser, pelo seu jeito de ser russos”.
[ii] O termo “Rus'”, que deu origem a “Rússia”, deriva provavelmente da palavra finlandesa ruotsi e da estoniana rootsi, que derivam por sua vez de rodr, remadores: rus era a forma de os vikings se autodenominarem quando viviam fora de sua terra natal.
[iii] Paul Robert Magocsi. A History of Ukraine. Toronto, University of Toronto Press, 1996.
[iv] Orlando Figes. Crimea. The last Crusade. Londres, Penguin Books, 2011.
[v] Symon Vasylyovych Petliura (1879-1926) foi um político ucraniano, líder nacionalista. Em 1905 foi co-fundador do Partido Ucraniano do Trabalho, mas foi colaboracionista com as tropas alemãs durante a Primeira Guerra Mundial. Conhecido como “Hetman Supremo”, conduzia grupos armados, maioritariamente compostos por pequenos comerciantes e criminosos, responsáveis por pogroms contra judeus, massacres contra trabalhadores e populações, além de violentamente hostil aos bolcheviques durante a guerra civil russa de 1918-1921. Derrotado e exilado, foi assassinado em 1926 em Paris.
[vi] Rosa Luxemburgo. A Revolução Russa. Petrópolis, Vozes, 1991.
[vii] Jean-Jacques Marie. Histoire de la Guerre Civile Russe 1917-1922. Paris, Tallandier, 2015.
[viii] Politicamente próximo de Leon Trotsky, Rakovsky foi um dos primeiros dirigentes da Oposição de Esquerda no PCUS, sendo deportado para a Ásia Central, em 1928, onde sofreu graves doenças, sem cuidados médicos. Em 1930, juntamente com Vladimir Kossior, Nikolai Muralov e Varia Kasparova, escreveu uma carta ao Comitê Central do Partido Comunista da URSS: “Diante de nossos olhos, se formou uma grande classe de governantes que tem seus próprios interesses internos e que cresce mediante uma cooptação bem calculada, através de promoções burocráticas e de um sistema eleitoral fictício. O elemento aglutinador dessa classe original é uma forma singular de propriedade privada: o poder estatal”. Depois de perseguições e prisões, em 1934 Rakovsky “capitulou” perante o regime stalinista, o que lhe permitiu um breve período de liberdade, durante o qual ocupou postos de segundo escalão no governo, no Comissariado do Povo da Saúde. Detido novamente em 1937, em 1938 se tornou um dos principais acusados no “Processo dos 21”, sendo condenado a 20 anos de cárcere. Em setembro de 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, Rakovsky foi fuzilado. Foi reabilitado na URSS em 1988, durante o governo de Mikhail Gorbachev (Cf. Pierre Broué. Rakovsky. La révolution dans tous les pays. Paris, Fayard, 1996).
[ix] Paul Avrich. Les Anarchistes Russes. Paris, François Maspéro, 1979.
[x] Alexandre Skirda. Les Cosaques de la Liberté. Nestor Makhno, le cosaque de l’Anarchie et la guerre civile russe 1917-1921. Paris, Jean-Claude Lattès, 1985.
[xi] Janus Radziejowski. The Communist Party of Western Ukraine 1919-1929. Edmonton, University of Alberta, 1983.
[xii] Nicolau Bruno de Almeida. Makhno, um cossaco libertário. Mouro nº 12, São Paulo, janeiro de 2018.
[xiii] Pedro (Piotr) Archinov. Historia del Movimiento Maknovista (1918-1921). Buenos Aires, Argonauta, 1926.
[xiv] Leon Trotsky. Muito barulho acerca de Kronstadt. In: Gérard Bloch. Marxismo e Anarquismo, São Paulo, Kairós, 1981.
[xv] Luiz Bernardo Pericás. Planificação e Socialismo na Rússia Soviética: os Primeiros Dez Anos. Texto apresentado no Simpósio Internacional “Cem Anos que Abalaram o Mundo”, Departamento de História (FFLCH), Universidade de São Paulo, 2017.
[xvi] Karl Radek. Las Vias y las Fuerzas Motrices de la Revolución Rusa. Madri, Akal, 1976.
[xvii] Fabio Bettanin. A Coletivização da Terra na URSS. Stalin e a “revolução do alto” (1929-1933). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981.
[xviii] Timothy Snyder. Terras de Sangue. A Europa entre Hitler e Stalin. Rio de Janeiro, Record, 2012.
[xix] Georges Sokoloff. 1933, l’Année Noire. Témoignages sur la famine em Ukraine. Paris, Albin Michel, 2000.
[xx] A IV Internacional e a Guerra. Manifiesto de emergencia. Buenos Aires, Acción Obrera, 1940.
[xxi] Ben Abraham. Segunda Guerra Mundial. São Paulo, Sherip Hapleita, 1985.
[xxii] Alexander Werth. A Rússia na Guerra 1941-1945. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966.
[xxiii] Antonella Salomoni. L’Unione Sovietica e la Shoah. Bolonha, Il Mulino, 2007.
[xxiv] Pierre Gilormini. Histoire Économique de l’URSS. Paris, Marketing, 1974; Alec Nove. Historia Económica de la Unión Soviética. Madri, Alianza, 1973.
[xxv] Por exemplo: Catherine Samary e Enzo Traverso. La cuestión nacional en la URSS: fuerza y debilidad de una tradición marxista. Inprecor n° 77, Madri, julho 1990.
[xxvi] Hélène Carrère d’Encausse. The Nationality Question in the Soviet Union and Russia. Oslo, Scandinavian University Press, 1995. A respeito, ver o artigo de Zbigniew Kowalewski: O fim da prisão dos povos. In: Osvaldo Coggiola (org.). Trotsky Hoje. São Paulo, Ensaio, 1991.
[xxvii] Diplomata e lobista das principais empresas produtoras de armas nos EUA, casada com Robert Kagan, neoconservador duro e belicista. Entre 2003 e 2005, Nuland foi assessora do vice-presidente Dick Cheney e promotora da invasão e ocupação do Iraque, com um saldo de um milhão de mortos, aproximadamente. George W. Bush nomeou-a sua embaixadora na OTAN, entre 2005 e 2008, quando organizou o apoio internacional à ocupação dos EUA no Afeganistão. Em 2013, Barack Obama nomeou-a subsecretária de Estado para Assuntos Europeus e Eurasianos, cargo a partir do qual promoveu os protestos de grupos nacionalistas e neonazistas contra o governo de Yanukovych, participando pessoalmente das manifestações que a extrema direita organizou na Praça Maidan em dezembro de 2013.
[xxviii] John J. Mearsheimer. Why the Ukraine crisis Is the West’s fault: the liberal delusions that provoked Putin. Foreign Affairs Vol. 93, nº 5, Washington, setembro-outubro 2014.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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