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Obituários servem para falar da vida e não da morte
É tradição brasileira, talvez mundial. Morreu vira santo e, se famoso foi, ganhará pelo menos um dia inteiro de homenagens. Jornais e sites publicam páginas e páginas de rebuscados perfis e a televisão, essa faz uma biografia completa, recheada com inesquecíveis momentos e depoimentos dos amigos e amigas. Então, vem a despedida dos fãs, da gente comum. Dali, brotam lágrimas e audiência.
É assim mesmo: no dia da morte conta-se o melhor da vida.
Antes de ser jornalista eu me perguntava: se a pessoa morreu agora à tarde como jornal da hora do jantar conseguiu levantar tantas informações em tão pouco tempo e apresentar essa reportagem tão completa?
Dentro das redações, encontrei a resposta. A reportagem estava pronta muito antes do último suspiro. Quando um famoso ou famosa, passa dos 80, ou, se antes disso, está com a saúde abalada, o departamento de jornalismo adianta um histórico com os principais fatos da vida e um profundo levantamento de imagens. Em redação que se preze, surpresa é palavra maldita.
Não se engane, FHC, Sarney, Maluf, Silvio Santos, Faustão, Fernanda Montenegro, Alaíde Costa, Glória Menezes, Laura Cardoso, Parreira, Veríssimo – brasileiros muito diferentes e às vezes de biografias controversas - já estão com seus perfis adiantados.
Jornalistas não são agourentos ou apreciam tragédias. Essa antecipação é uma estratégia para dar ao personagem, depois de morto, a importância que ele teve quando vivo.
Eu trabalhava num telejornal que ia ao ar de madrugada, o ano era 2004. Na noite de 28 de outubro a redação do Rio de Janeiro avisou que Bezerra da Silva tinha sido internado em estado grave com enfisema pulmonar. Faltava menos de uma hora para o jornal começar e meu chefe decidiu: “Cosme, faz aí um perfil do Bezerra. Não demora.”
Ri de nervoso e comecei do zero, os colegas ajudaram e quando jornal foi ao ar tínhamos o perfil possível. No final, demos a notícia da internação. O perfil, escrito e editado, ficou guardado.
Bezerra lutou por semanas, meses. O partideiro nunca soube, mas, lá do hospital, me ajudou. Com sua resistência, me deu a chance de aperfeiçoar aquele texto feito no sufoco. Enquanto cuidava de outras reportagens do jornal, falei com amigos dele, parceiros e descobri outro homem. Bezerra não era um Silva qualquer.
O “bom malandro” que eu achava brincalhão e engraçado, era pontual e exigia responsabilidade dos músicos. Levava a mulher, Regina, aos ensaios, mas muito ciumento, não gostava de ver seu amor de papo com estranhos. Dizia a quem quisesse ouvir, “aqui não é lugar de gavionagem”.
Sisudo, brincava pouco e ensaiava muito. Nas horas de folga, sim, se divertia com os amigos, sem cigarro ou bebida. Tinha um jeito de tocar pandeiro batendo com o polegar que era só dele, me revelou o músico Marquinho Basílio.
Bezerra era pernambucano do Recife e chegou ao Rio de Janeiro escondido num navio. Ganhou a vida como pedreiro e depois conquistou uma vaga na orquestra da TV Globo.
Conviveu com a verdade dos morros. Não aqueles mais famosos da zona sul, com vista pro mar. Bezerra subia as vielas da Baixada Fluminense, ia às quebradas do subúrbio mais humilde e trazia de lá a riqueza maior de sua música. Numa entrevista, revelou que não era cantor, era porta-voz.
“O morro não tem voz. O morro só tem o direito de ouvir calado. O compositor do morro, ele diz compondo o que queria dizer cantando. Então, eu sou o porta-voz.”
Reescrevi, incluí novos depoimentos e ainda mudei uma última vez. Os nomes dos parceiros chamavam a atenção. Quase vinte anos depois vale a pena relembrar os “irmãos de samba”.
1000tinho. Beto Sem Braço. Claudio Inspiração. Adelzonilton. Evandro do Galo. Walmir da Purificação.
E mais, Tonho Magrinho. Elso Boa Gente. Barbeirinho do Jacarezinho. Sarabanda. Beto Pernada. Sassarico. Moacir Bombeiro.
Com exceção de Beto Sem Braço, conhecido compositor da escola de samba Império Serrano, os outros autores talvez fossem anônimos como tantos artistas populares, mas encontraram Bezerra e sua voz calejada.
Com malícia e arte Bezerra surpreendeu o Brasil com músicas que denunciavam a injustiça e brincavam com o preconceito: Overdose de Cocada, Sua Cabeça Não Passa na Porta, Sequestraram Minha Sogra, Defunto Caguete.
Às 7:45, de 17 de janeiro de 2005, Bezerra morreu. Tinha 77 anos.
O perfil foi a última notícia do jornal. A apresentadora se despediu com um seco “até amanhã”. O tradicional “boa noite” não tinha lugar naquela segunda-feira.
*Agradeço a ajuda do jornalista, produtor musical e amigo Paulo Cesar Figueiredo.
*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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