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    Helena Brasileiro

    Promotora de Justiça do MPDFT desde 1989. Autora do livro "O Feminino do Sul e suas Falas: um anseio de Justiça para além das bocas e togas do Direito"

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    Um convite, um pedido, quase empático, para Jaque Muniz

    No último dia 01/02, tive a alegria de dividir com a Professora Jaqueline Muniz, Jaque para os íntimos, lugar que, mesmo sem permissão, me coloco, uma conversa na TV Xapuri. Falamos sobre polícia, autonomia da polícia, segurança pública, tema caro a nós duas, mas inteiramente colocado, bem colocado, nas enormes competências de minha interlocutora. Claro, tinha que ouvir mais do que falar. Minhas reflexões sobre o tema não passam de rotineiras manifestações em processos judiciais marcados pelo abuso policial, punivitismo especialmente contra a população preta, pobre e periférica. O ambiente judicial, seja do lado ministerial, seja do lado do judiciário, afigura-se quase totalmente marcado pela síndrome do medo a converter segurança pública em proteção pessoal; desmando policial em “normalidade”/ em defesa do patrimônio, da vida(de quem?) e do que é “certo” (para quem?). “A polícia, doutora, é muito importante porque nos protege”, afirma o juiz após eu ter admoestado um policial que mal entendeu o papel social que sua função desempenha, bem como os limites legais e constitucionais de sua ação. Aqui, um primeiro ponto a nos guiar: não há função social, pública, que prescinda da pessoa; não há agir privado ou público que prescinda do que se é, do que se é feito, da história que contam cor, raça, sexo, gênero, opção sexual, lugar socioeconômico, lugar de fala ou de silêncio. Falamos mais daqui um pouco. 

    Tratando da rotina doméstica, na televisão, mais uma “live” durante o resguardo social, ouvi: “que tal trocar o guarda com um revólver na esquina por alguém que saiba conversar?” Imediatamente, olhei para a tela e quis saber quem era aquela pessoa, uma mulher, que trazia esperança a meu anseio explorado na construção da minha tese no final do século passado e, ainda, sem expressão pública. Ninguém soube me dizer quem era aquela mulher até que a Professora Jaqueline voltou a minha atenção quando recebi uma fala vibrante de menos de 18 min, sem pausa para respirar, da mesma professora. Ela começa dizendo: “o maior desafio que temos na segurança pública é a mentalidade, é a forma de olhar a realidade. Para que a gente possa enxergar as soluções, é preciso mudar o enquadramento da vida social; é preciso mudar o modo de enxergar o outro e a si mesmo e poder, então, descobrir que as soluções de segurança estão ao alcance de nossas mãos. Para isso, então, é preciso romper preconceitos em favor de uma coisa que é sentir a dor dos outros, ter compaixão.”

    Definitivamente, a Professora Jaque Muniz, a Jaque, cuja autoria da primeira fala não foi confirmada, entrava na minha lista de ansiadas e distantes conquistas. Precisava chegar perto dela e conquistá-la para meu projeto edílico de uma polícia empática, amorosa, cooperativa, amiga. Na verdade, meu projeto inclui no mesmo enquadramento toda ação estatal. Como anúncio dos céus, recebi um convite para uma conversa com Jaque Muniz para falar de polícia. Convidei algumas pessoas com o texto: “Vale muito pela Professora Jaqueline Muniz”. Na manhã do dia 01/02, levantei com uma crise de sinusite e, embalada pelo ritmo Jaque Muniz, ouvi e ouvi, dei risada e confirmei que ela parece fundamental para os meus projetos de Amor Institucional, Justiça Feminina do Cuidado, NUDIPAZ (Núcleo de Diálogos Interpessoais para a Paz), Ministério Público Resolutivo, CNV (Comunicação não Violenta) e mais. 

    Perguntei a algumas pessoas o que elas acharam da “live” e 3 falas me chamaram a atenção:

    1 - “A Professora Jaqueline é plugada não tomada hein? Não sei como consegue respirar. Gostei dela defender o concreto, gostei dela defender o profissionalismo do policial. O policial pode ser racista, homofóbico, gay o que quiser mas tem que ser profissional. Enfim, não sei se algum lugar no mundo consegue fazer essas medições que para ela parece tão natural. Mas concordo que a métrica, uma metodologia, a aferição das ações policiais são de grande valia para profissionalização da polícia. (…) Foi ótima a live. Beijo”

    2-”Boa discussão, um tema importante e pouco debatido, de forma técnica e com métrica. Parabéns, que possam aumentar está discussão que inclusive não foi ideológica.”

    O que seria, para vc, uma discussão ideológica?

    “Bom dia, é que o tema da conduta policial foi tratado pelo seu aspecto técnico, necessidade de protocolos de conduta, de métricas para avaliação  de desempenho e contrária à unificação de forças policiais para evitar a possibilidade de desvio de função. Foram usados exemplos tanto dos EUA, com boas e más polícias, mas sempre descentralizadas por estados e condados, impedindo a tomada  de controle por algum lunático e a Venezuela onde houve uma unificação de comando e uma cooptação das forças policias. Foi uma ótima discussão técnica. Bom dia e semana.”

    Temia por isso ... mas muito obrigada

    3-”Bastante técnica, ela falou sobre a necessidade da polícia seguir normas (internacionais inclusive) sobre o tiro, uso da arma e da força, abordagem etc que tenham amparo constitucional; e que são violadas pelos policiais e governantes. Pareceu falar bem demais da polícia estadudinense, mas tocou num ponto legal: da existência de normas técnicas que, porque não obedecidas pelos policiais que mataram o tal do Floyd (não lembro o nome dele direito), permitiram a punição deles. Teve uma frase dela sobre o vigia que vc põe em casa, que vc não pode nem dar muito poder nem pagar pouco demais; não lembro a frase, logo no início da fala dela, que parece resumir tudo: Policial sofre a pressão da baixa remuneração e isso interfere na sua atuação. Mas se tu dá muito poder e estrelismo ao policial, licença pra matar, etc, acaba fodendo tudo.”

    Excelente resumo. Mas o que ganhou seu coração? Caso não tenha sido ganho, por que não?

    “O todo ganhou meu coração. Acho importantíssimo o combate à violência policial. Costuma-se dizer, aqui no estado de Goiás, que ninguém tem 3 ou + passagens pela polícia. Porque é executado pela polícia. Aqui a polícia mata muito mesmo. De vez em quando tem notícias no jornal. Há alguns anos houve a prisão de vários policiais que matavam muito e isso ganhou as páginas dos jornais.”

    Vc não tem ideia como a direita escuta a Jaque de forma perigosa.

    Escolhi 3 (três) diálogos para explorar aqui. Começando pelo último deles, mantido com um jovem Senhor, eleitor da esquerda, com formação humanista, podemos notar como um jovem eleitor maduro da esquerda não é capaz de fazer uma apreciação que, no meu entender, possa revelar um modelo potente contra a cultura do medo, contra o senso comum dominado pela necessidade de punição, de separação, de “nós os bons e eles os maus”, de exclusivismos no acesso e gozo dos bens materiais e imateriais da vida, porque é o que eu gostaria de oferecer no meu trabalho acadêmico e institucional como anseio democrático para realização comunitária, econômica, política em sentido amplo e social. Terminei o diálogo 3, pontuando a forma perigosa com que a direita escutou a Jaque. Vamos a elas. 

    Primeiramente, o diálogo 2 foi mantido com um avô de meia idade, com formação técnica, antipetista, lavajatista, antilulista, eleitor do Novo, partido de velhacos. Ele pontuou a mesma apreciação do eleitor da esquerda, mais jovem que ele e com formação em humanidades, quanto ao valor da métrica, da medição, ainda que tenha concluído com uma apreciação válida da violência policial em Goiás, repetida, em diferentes proporções em vários estados da federação brasileira e nos aclamado EUA, uma unanimidade de modelo a ser seguido nas cabeças direitistas, de centro e da extremidade; contra a qual a esquerda, alguma parte dela, às vezes, levanta objeções. Todavia, nosso avô conclui com uma pérola acerca do caráter não “ideológico” da “live”. Perguntado o que seria “ideológico” para ele, respondeu com o exemplo ideologicamente escolhido da Venezuela. Anotemos …. aqui mais uma vez: “nós os bons e eles ….”. 

    A primeira apreciação, por sua vez, também pontou a métrica, a medida, foi feita por uma avó de meia idade, aposentada, economicamente privilegiada, com formação técnica, e nos mostra um dilema, talvez uma aporia, de grande importância para todo o sistema de persecução criminal, ou mesmo, todo o sistema judicial de dicção do direito. Vamos a ela: quem acha que um distintivo policial, uma farda, ou uma cartilha com instruções claras de como agir faz de um racista, um profissional cumpridor de regras, achará também que um homem que abraça e tem proximidade político-partidária com o inimigo de seu réu; que combina estratégias midiáticas e processuais com a acusação e com agências de espionagem internacional, pode e é um juiz imparcial quando veste a toga. Olha onde estamos: a maior aporia do sistema de dicção do direito é que ele é operado por pessoas de carne e osso e inseridas em uma dada cultura, um passado individual, familiar, comunitário, econômico e social irrenunciáveis, indeclináveis. Por isso juiz suspeito não vira imparcial só porque vestiu a toga e “cumpriu” todas as regras. A subjetividade humana não pode ser nunca apartada do agir humano. Especialmente quando se trata de lidar com conflitos e maus feitos de outros humanos.

    Aqui, justiça feminina do cuidado, NUDIPAZ, Ministério Público resolutivo e mais … Aqui minha pergunta retórica: como trazer para a vida do MP acusador, do sistema extrajudicial de persecução penal as falas da Jaque Muniz citadas acima?

    Por que a fala da Jaque Muniz não pôde, pelo menos, não nas minhas interlocuções, alavancar um projeto emancipatório de resolução das aporias aparentemente insuperáveis da polícia de segurança pública em face dos tempos sombrios pelos quais estamos todos submetidos?
    Gostaria de pontuar duas objeções básicas. A primeira de aparência meramente teórica, quanto ao erro em caracterizar a polícia como detentora do poder de polícia, a segunda de colocar na elaboração normativa a saída para “normalizar” a atuação policial.

    Quanto ao poder de polícia, usaremos um ótimo artigo do Professor Doutor Jorge Galvão (https://www.conjur.com.br/2019-ago-31/constitucional-delegacao-poder-policia-particulares, último acesso em 17/02/2021), onde lemos: “Delimitar o conceito de “poder de polícia” não é tarefa simples. Porém, em linhas gerais, a doutrina “clássica” o define como o poder ou a função que a Administração Pública dispõe para condicionar, restringir e/ou limitar as esferas de liberdade e de propriedade dos particulares, em prol de objetivos de interesse público. É dizer: trata-se de instituto jurídico-administrativo que, ao menos em tese, é responsável por dosar legitimamente a intervenção estatal, de um lado, e o exercício de direitos e liberdades, de outro.”

    Ora, a polícia não é Administração Pública e nem tem o poder de limitar direitos e liberdades. A polícia é o braço armado do exercício do monopólio estatal da violência. A polícia não administra nada, a polícia persegue, vigia, concretiza o poder estatal de aplicar a lei penal com a observância estrita dos direitos e garantias individuais. Os parâmetros de legalidade e moralidade pelos quais deve agir a administração no exercício legítimo do poder de polícia são inteiramente diferentes dos critérios de legitimidade do agir policial. Enquanto a Administração afasta o exercício individual de direitos e liberdades, a polícia age na certeza de que o fim é respeitar direitos e liberdades. 

    Uma pesquisa sobre o que é a polícia militar no Google, encontra-se a caracterização dela como sendo responsável pela concretização do poder de polícia do Estado. O Código Tributário é o quanto basta para definir o que é poder de polícia, aliado à disciplina constitucional que estabelece critérios do agir administrativo do Estado. A polícia, por sua vez, também tem disciplinamento suficiente no sistema penal e constitucional de garantias individuais. Assim, habemus lex e nutro, por vício juvenil, confesso, uma argumentação contra hegemônica em desfavor do aprofundamento do controle normativo, seja de que espécie for, e a favor, com radicalidade, do abolicionismo penal, do MP resolutivo, da justiça feminina do cuidado e das lições do diálogo empático, nos termos da CNV.

    Tenho notícias de que Jaque Muniz é, de alguma forma, responsável por práticas de resolução pacífica de conflitos. Confesso que não tenho detalhes. Todavia, assim, “de orelhada” parece que este poderia ser um canal de colaboração. Pois bem, momento do pedido quase empático. Tem que ser preciso ... ou o mais preciso possível, o que, certamente, não tenho condições de fazê-lo. Entendo que o texto acima está pontuado de subentendidos, nomes, siglas sem a devida explicação. Todavia, peço a tolerância do leitor para o fato de que eventualmente os subentendidos e afins sejam esclarecidos em um outro encontro/conversa com Jaque Muniz. Talvez eu precise muito da ajuda dela para fazer sentido a toda essa malha imatura de elaborações que se pretendem contra majoritárias e que, na verdade, não têm dado conta de todo o fazer da contestação capaz de produzir novos modelos, novas propostas. Essa minha ambição: fazer sentido enquanto construo espaço emancipatório, dentro e fora, para além da simples contestação, ou seja, em direção desta mudança de mentalidade; desta outra forma de se ver, de me ver, de ver o outro … longínquo horizonte que peço a Jaque Muniz que me ajude a desenhar melhor, com cores da vida, com formas reais, com o desejo de fazer sentido, porque esta a pulsão que pode florescer para além dos exercícios mórbidos sobre corpos mortos, em torno de conflitos mortos tão somente para alimentar o poder violento com o qual tudo, todos, todas  e todes temos sofrido, sofremos e continuaremos a sofrer.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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