Um emocionado Chico Buarque recebe Prêmio Camões das mãos de Lula
Leia a íntegra do discurso do cantor, compositor e escritor Chico Buarque em cerimônia no Palácio de Queluz, em Sintra, Portugal
“Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim”
(“Tanto Mar”, Chico Buarque)
“Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.” Com essas palavras, o cantor, compositor e escritor Chico Buarque recebeu hoje, em cerimônia no Palácio de Queluz, em Sintra, Portugal, o Prêmio Camões das mãos dos presidentes Lula, do Brasil, e Marcelo Rebelo de Sousa, de Portugal. Chico recebeu o prêmio, o mais importante da literatura de língua portuguesa, depois de quatro anos de espera. O anúncio do Prêmio foi feito no dia 21 de maio de 2019, na sede da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.
Na época, o então presidente Bolsonaro se recusou a assinar o diploma e Chico se considerou um escritor com dupla sorte: recebeu o Prêmio e não teve o diploma assinado por Bolsonaro. "A não assinatura do Bolsonaro no diploma é para mim um segundo prêmio Camões", disse ele. Por essa razão e por causa da pandemia, Chico recebeu o Prêmio, quatro anos depois, vestindo um elegante terno escuro e uma gravata branca que, segundo disse com sua fina ironia, foi comprada pela mulher Carol Proner em uma loja de Lisboa, fazendo uma brincadeira com a gravata de Lula, comprada por Janja, que tanta “perplexidade” causou.
Emocionado, Chico homenageou Sergio Buarque de Hollanda, ao relembrar a veia literária e os ensinamentos recebidos do pai. “Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade.”
Chico Buarque venceu os prêmios Jabuti de melhor livro do ano por "Leite Derramado" e por "Budapeste". Na categoria romance, ele também foi premiado por sua obra "Estorvo". No caso do Prêmio Camões, a escolha é pelo conjunto da obra.
Chico Buarque estreou como escritor de ficção em 1974, com a novela Fazenda Modelo. Em 1979, publicou o livro infantil Chapeuzinho Amarelo. Seu primeiro romance, Estorvo, foi lançado em 1991. Quatro anos depois, publicou o segundo, Benjamin. Em 2003, lançou Budapeste; em 2009, Leite Derramado e em 2014, Irmão Alemão. Escreveu as peças de teatro Roda Viva (1968); Calabar (1972, juntamente com Ruy Guerra); Gota D’Água (1974, com Paulo Pontes), e Ópera do Malandro (1978).
O prêmio Camões foi criado em 1988 com o objetivo de consagrar um autor de língua portuguesa que, pelo conjunto de sua obra, que tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural do idioma", segundo o Ministério da Cultura (Minc).
Na véspera das comemorações da Revolução dos Cravos em Portugal, Chico assegurou que “valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos”.
A seguir, a íntegra do discurso de Chico Buarque:
“Ao receber este prêmio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária. Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade. Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro. No fim dos anos sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo.
O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco. Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por duodecavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI. Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos sinto-me em casa e esmero-me nas colocações pronominais. Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema Morte e Vida Severina com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de arquitetura. O grande João Cabral, primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música, e não sei se chegou a folhear algum livro meu.
Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de prêmio Camões. De vários autores aqui premiados fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde - sou leitor e admirador. Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim.
Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.
Muito obrigado.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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