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    Boaventura de Sousa Santos

    Sociólogo português

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    Um tempo de poucas certezas

    "Em que tipo de dialética certeza/incerteza se encontram as sociedades contemporâneas?"

    (Foto: Romulo Faro)

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    Tanto no plano pessoal como no coletivo, as certezas do presente trazem sempre consigo o gérmen das incertezas futuras. Mas há momentos ou épocas em que as certezas são mais vincadas e as incertezas mais remotas, e momentos ou épocas em que ocorre o inverso. Em que tipo de dialética certeza/incerteza se encontram as sociedades contemporâneas? Como sempre, a história ajuda a compreender, mas nada prescreve pela simples razão de que nunca se repete. As certezas podem ser abaladas por dois tipos de incertezas: as incertezas ascendentes e as incertezas descendentes. As primeiras são os desafios que se podem superar com um pouco mais do mesmo tipo de esforço que deu origem às certezas; as incertezas descendentes são as que representam desafios que, à partida, parecem perdidos. Mas o mais importante da classificação é saber que classe ou grupo social tem certezas e beneficia delas e que classe ou grupo social tem incertezas e que consequências delas decorrem.

    No início do século passado, a burguesia europeia, que então se arrogava ser a protagonista do único mundo civilizado, estava plena de certezas. Os avanços científicos e tecnológicos eram vertiginosos. No plano tecnológico, os dois lados do Atlântico Norte (A Europa e a Europa-fora-do-lugar) rivalizavam na velocidade das invenções nas áreas da aviação, da deslocação motorizada, da rádio e do cinema. Em 1900, os comboios franceses eram mais rápidos que os ingleses ou alemães, respectivamente 94 kms/h, 90 kms/h e 50 kms/h. Mas os norte-americanos superavam-nos a todos: 107 km/h. Eram igualmente excitantes os avanços na ciência, ainda que muitos deles se traduzissem em novas tecnologias. Por exemplo, em 1895, Wilhem Rӧntgen descobre raios com uma imensa capacidade de penetração. Como não se sabia do que se tratava, chamou-lhes raios-x. Seguiram-se depois as descobertas (às vezes, redescobertas) da radioactividade, da estrutura atómica da matéria, dos raios alfa e beta, da teoria dos electrões, da teoria da relatividade. O espaço absoluto da mecânica clássica cedia ao impacto do tempo e da velocidade, às relações entre matéria e carga eléctrica, e às relações entre partículas e campos. Rutherford descrevia o átomo como uma miniatura do sistema solar e Niels Bohr procurava a síntese entre a teoria atómica e a teoria quântica, um esforço coroado em 1925 por Schrӧdinger e Heisenberg e pelo conceito de entropia. Por sua vez, a matemática, através de George Cantor e a sua teoria dos conjuntos, entrara num domínio que antes era campo exclusivo dos teólogos: o infinito e os vários tipos de infinito. Mas talvez a mais importante certeza do início do século XX era a de que a biologia transformaria a humanidade com uma profundidade sem precedentes nos séculos vindouros. É que a biologia unia a física, a química, a psicologia, a sociologia e até a ética e a religião. O triunfo da ciência estendia-se à medicina, à psiquiatria. Era um mundo de certezas. Havia incertezas, mas eram ascendentes, ou seja, desafios a conquistar apenas com mais esforço. 

    Mas esta é apenas uma parte da história. Afinal, a Primeira Guerra Mundial estava à porta. Duas incertezas descendentes (ou seja, difíceis de conceber como desafios fáceis de superar) assombravam a burguesia europeia: o poder crescente da classe operária como actor social e político e o acordar da Ásia, ilustrado pela emergência do poder do Japão, “o perigo amarelo” de então. A primeira era para a classe operária a primeira incerteza ascendente da sua história: o desafio de que com um pouco mais de esforço poderia derrotar os dois pilares do poder burguês: a propriedade e o privilégio. A segunda incerteza descendente da burguesia acabaria indirectamente por conduzir à guerra: o lado benigno da ciência e da tecnologia ocultava o lado obscuro das lutas de poder, das rivalidades imperiais, do espaço vital, da propaganda da guerra como exercício de purificação e de progresso, da busca desesperada de matérias primas, da selvática destruição da natureza e dos povos seus fieis guardiães. A guerra foi o desenlace lógico do progresso anterior? E se sim, o progresso anterior foi real ou ilusório? Teria havido alternativas? Porque não se tentaram?

    As certezas de hoje

    As certezas de hoje são herdeiras das do século passado só que, com o tempo, são mais frágeis e quase sempre à beira da incerteza descendente. E os protagonistas também se transformaram profundamente. Analisemos o caso paradigmático.

    A ciência e a tecnologia. Cada sociedade tem a ciência que merece. Os conflitos e contradições na sociedade acabam sempre por se reflectir na ciência. No início do século XX, devido em grande medida à força crescente da classe operária, a contradição fundamental era entre prosperidade e produtividade: maximizar a plena humanidade ou maximizar a riqueza. A prosperidade apontava para a distribuição dos benefícios por toda a humanidade (mesmo que a humanidade estivesse confinada ao Atlântico Norte). A distribuição não tinha de ser igualitária, mas devia ser suficientemente significativa para evitar “a rebelião das massas”. Pelo contrário, a produtividade centrava-se na acumulação e na concentração da riqueza porque, dada a escassez dos recursos, ninguém poderia enriquecer sem causar o empobrecimento de outrem.

    Tanto na teoria económica como no direito dominava a ideia da prosperidade. Longe de ter motivos altruístas, a ideia de prosperidade vivia assombrada com o medo do socialismo. Teorizava-se sobre “a obrigação moral da economia”, a “função social da propriedade”, “o novo direito natural”, “a moralidade da competição”. Max Weber angustiava-se com o problema da objectividade ante as contradições que ele aprendera de Marx (sem o dizer). Os mais arrojados falavam do solidarismo, de democracia económica, da associação livre, e da legislação da protecção social, de socialismo integral e de imperialismo. Toda esta criatividade científica destinava-se a gerir as contradições nascentes, mas tinha pouco impacto nas decisões políticas, cada vez mais dominadas pela ideia do progresso enquanto produtividade e acumulação da riqueza. Como sempre, a ciência e a tecnologia seguiam a política.

    As certezas no avanço científico e tecnológico são hoje as mesmas, mas a contradição intelectual e política entre prosperidade e produtividade desapareceu. Para entender tal desaparecimento é preciso responder à pergunta: onde estão hoje os protagonistas do benefício das certezas e os protagonistas das incertezas que elas causam? 

    Uma possível resposta é que as duas categorias contraditórias do início do século XX estão hoje enraizadas no mais fundo da subjectividade de cada um. Todos somos burgueses e todos somos trabalhadores. Convertemo-nos num magma burguês-trabalhador. Estamos paralisados sem saber que identidade preferir. Somos escravos dos magros benefícios que cada identidade nos dá. A nossa indecisão é o outro lado da falta de alternativas:  matamos o burguês em nós ou matamos o trabalhador em nós? O identitarismo que agora está na moda tem uma ponta de verdade. É o paliativo para o desastre da falta maior: prosperidade com plena humanidade contra a produtividade como acumulação de riqueza. 

    Enquanto durar a paralisia não é possível distinguir entre utilidade, futilidade e danosidade, quer no avanço científico, quer no avanço tecnológico (se é que ainda há diferença entre um e outro). Daí, o caracter das incertezas de hoje.

    As incertezas de hoje

    As incertezas de hoje são descendentes para a esmagadora maioria do magma burguês-trabalhador em que o mundo (e não apenas o mundo europeu) se tornou. São três as incertezas perante as quais o magma burguês-trabalhador pasma com tanta clarividência quanto impotência.

    Vai vir a guerra? O espectro da guerra aproxima-se inexoravelmente. O magma não pensa. É pensado pela poderosa máquina da guerra em curso. Nas palavras dos próprios propagandistas desta máquina fatal, a Terceira Guerra Mundial será muito mais devastadora do que as anteriores. Apesar de isso ser sabido até à exaustão, não há um movimento mundial pela paz, e quem se propuser organizá-lo será silenciado ou neutralizado como terrorista. Entretanto, o magma está preocupado com temas mais urgentes (a fome, o desemprego, o desamparo no infortúnio), ou está drogado com ansiolíticos ou antidepressivos, ou está simplesmente distraído com safaris ao interior da sua própria bestialidade com a ajuda de psicanalistas que precisam de ganhar a vida.A democracia vai sobreviver? O magma burguês-trabalhador esqueceu durante tanto tempo que a política neoliberal era um sistema de corrupção legalizada com o objetivo de transferir riqueza dos mais pobres para os mais ricos que agora apela aos poucos políticos que julga honestos sem saber que eles só existem (quando existem) para legitimar a continuidade da corrupção sistémica global. E angustia-se com o futuro da democracia, mas vota na extrema-direita que a quer eliminar.A espécie humana está em extinção? Esta é a mais radical incerteza descendente, dado o período de colapso ecológico em que já entrámos. E é onde o magma burguês-trabalhador mais revela a sua paralisia. Afinal, o maior inimigo desta estranha espécie reflexiva, a que chamei, o magma burguês-trabalhador, é ela própria quando se recusa a reflectir.

    Que fazer?

     Felizmente, esse mundo-magma não é todo o mundo. Os que conseguiram ou conseguem fugir ao magma são os protagonistas das incertezas ascendentes. São os povos, as culturas, as classes, os grupos que mais sofreram com a dominação capitalista, colonialista e patriarcal moderna e que souberam resistir sem abrir mão dos conhecimentos e dos modos de conviver e de ser que os seus antepassados e os companheiros ou camaradas de hoje lhes foram transmitindo nas lutas e na resistência. Aprenderam a ciência e a tecnologia eurocêntricas, mas só aproveitaram delas os que lhes convinha e nunca deixaram de pensar que a ciência, sendo um conhecimento válido, não era o único conhecimento válido. Com base nessas ecologias de saberes eurocêntricos e não eurocêntricos, resistiram à dominação, à discriminação, ao esquecimento e ao próprio extermínio. No seu conjunto, são o que chamo o Sul global epistémico. São o Sul apenas porque há um Norte que os quis nortificar para melhor os mortificar. 

    Serão suficientes para tamanha tarefa? Afinal, bastou uma só pessoa e uma semana para criar o universo. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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